Interesse de agir como condição da ação: crítica a partir da matriz teórica do Estado Democrático de Direito

Resumo: Em função da identificação do interesse com o mérito da ação, demonstrado a partir do questionamento da clássica conceituação de direito subjetivo como interesse juridicamente protegido, este artigo propõe a supressão, do projeto do Novo Código de Processo Civil, do interesse processual como condicionante da propositura da ação.


Sumário: 1.  Introdução; 2. Concepção clássica de interesse; 3. Reformulação do conceito de interesse sob a matriz teórica do Estado Democrático de Direito; 4. O interesse como objeto da atividade jurisdicional: impossibilidade de condicionamento do exercício da faculdade de agir à prévia demonstração de interesse; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


O projeto do Novo Código de Processo Civil (PLC 8046/2010) anuncia a redução do rol das condições da ação, com a exclusão da possibilidade jurídica do pedido, que já fora descartada por Liebman desde a terceira edição do Manuale di Diritto Processuale Civile (MARINONI, 2011). No entanto, essa alteração é ainda um tímido passo em direção ao implemento da garantia de inafastabilidade da jurisdição[1].


Esse artigo pretende demonstrar que eventual permanência do interesse de agir como condicionante à propositura da ação, no futuro Código de Processo Civil, consolida inconstitucional exclusão, pela lei, da apreciação de lesão ou ameaça a direito – rectius, a interesse.


2. CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE INTERESSE


“É fundamental que tenhamos claro que os interesses são manifestações unilaterais de vontade um sujeito em face de um ou mais bens” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 39). Essa aparentemente singela afirmação deita luz sobre o conceito de interesse, o que é imprescindível para o desfazimento de uma compreensão equivocada do chamado interesse de agir ou interesse processual.  Diz-se que a afirmação é singela somente na aparência porque, para alcançá-la – e, mais que isso, para perceber sua repercussão –, é preciso desconstruir conceitos arraigados na cultura jurídica.


Um desses conceitos vem a ser, precisamente, o de direito como interesse juridicamente protegido (IHERING, 1946), que, ao prestigiar o interesse qualificado pela proteção normativa, reflexamente reputa irrelevante o interesse simples. Pois se somente ao primeiro é de ser reconhecido o status de direito, resta, desprestigiado, o mero “liame psicológico que existe entre um sujeito e determinado objeto ou bem de natureza material ou não” (LEONEL, 2002, p. 88).


A compreensão dicotômica do interesse traz, subjacente, a noção de que ao Direito somente importam as aspirações devidamente abrigadas pelo ordenamento nos estritos contornos por ele definidos. Tais contornos alcançam não só o conteúdo do interesse – o bem da vida efetivamente protegido – mas também a sua titularidade – quem é legítimo para reivindicar o bem da vida, quem tem o “poder de agir” –, elementos compreendidos pelo prisma da positivação, ou seja, do reconhecimento prévio da proteção jurídica.


Essa concepção é oriunda de um momento histórico em que se lutava pela consolidação de uma esfera de atuação individual que não pudesse ser usurpada por uma noção despótica de obediência total ao Estado[2]. A teoria de Ihering, dotada de forte apelo idealista, contribuiu para que o direito privado ganhasse força sem que – ao menos abertamente – fosse contestado o papel do Estado. Anunciava-se que o cidadão, ao repelir corajosamente a violação a seu direito individual, serve ao Estado de maneira similar a quando combate em uma batalha militar:


“Se o Estado tem o direito de chamá-lo [o indivíduo] para lutar contra o estrangeiro, e se pode obrigá-lo a sacrificar-se e a dar sua vida pela salvação pública, — porque não terá o mesmo direito quando é atacado pelo inimigo interno que não ameaça menos a sua existência que os outros? […] Que alta importância assume a luta do indivíduo pelo seu direito, quando ele diz:— o direito inteiro, que foi lesado e negado em meu direito pessoal, é que eu vou defender e restabelecer!” (IHERING, 2002, p. 41)


Para Ihering, era crucial afirmar a equivalência entre o direito objetivo e o subjetivo, pois a conclusão de que toda violação a direito individual é uma violação ao Direito como um todo atribui perspectiva jurídica à pretensão filosófica de situar o indivíduo no centro do sistema. Ao titular do direito é finalisticamente atribuída a defesa do interesse prestigiado pela norma positivada em face de violações, num ato individual que, longe de egoísta, visava a proteção de toda a comunidade. Em suma, a previsão da tutela jurídica se apresentava como única via legitimadora da atuação individual perante um Estado de feição cesarista[3] mas que se afirmava Estado de Direito.


A estratégia, no entanto, implicou o abandono da própria essência do conceito de interesse, uma vez que este, desprovido de proteção normativa, de nada valia. Houve, assim, um completo deslocamento do referencial de aferição do interesse, que não mais se poderia afirmar existente a partir da simples manifestação do indivíduo, mas somente a partir da previsão normativa.


3. REFORMULAÇÃO DO CONCEITO DE INTERESSE SOB A MATRIZ TEÓRICA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


A manutenção do parâmetro de análise resultante da teoria de Ihering mostra-se anacrônica e incompatível com o Estado Democrático de Direito.


Anacrônica porque a realidade contemporânea faz prova da heterogeneidade de interesses manifestados a par de previsão legal expressa, os quais são, muitas vezes, realizados por seus titulares, quer por aceitação social espontânea, quer por meio de decisão judicial que, recorrendo a princípios de direito, extrai da norma positiva um sentido até então não vislumbrado, pressionando, até mesmo, por futura alteração legislativa. Para ficar apenas com um exemplo significativo, cite-se a atual onda de propositura de ações declaratórias de união estável homoafetiva, com repercussão no direito de família e sucessório, alçando os interessados a status jurídico até a pouco inimaginável.


Incompatível com o Estado Democrático de Direito porque este, tendo o povo como fonte e destinatário de todo o poder, submete o próprio Estado à observância das liberdades fundamentais e dos demais princípios constitucionais preordenados à intensificação da participação popular nos centros de poder. Esclarece Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias que, por povo, deve-se entender “a comunidade política do Estado, composta de pessoas livres” e afirma que “no Estado Democrático, o povo pode e deve exercer participação ostensiva e preponderante na resolução dos problemas e questões nacionais […], principalmente, por meio do processo constitucional” (DIAS, 2010, p. 59 e 64).


Ronald Dworkin também aborda a relação entre Estado e cidadão sob a ótica da liberdade, ressaltando a necessidade de que cada indivíduo encontre na comunidade “circunstâncias que lhes permitam chegar a crenças firmes em matéria de ética e política através de sua própria reflexão e, por fim, de sua convicção individual” (DWORKIN, 2006, p. 40). Essa exigência, que o autor denomina “independência moral”, permite a cada cidadão atuar na construção do projeto político em favor do que ele considera meta ou objetivo da democracia, a saber, que as “decisões coletivas sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a mesma consideração e o mesmo respeito” (DWORKIN, 2006, p. 24-26).


Uma vez que no Estado Democrático de Direito a liberdade de opinião encontra-se conectada à participação do cidadão no Estado, há relevante significado democrático no resgate, efetuado por Vicente de Paula Maciel Júnior, do conceito de interesse como “afirmação unilateral da vontade em face de bens, que sempre ocorre e se exaure na esfera particular do indivíduo” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 43). Explica o autor que, por sua essência, o interesse é sempre particular, “nasce e se exaure na intenção do sujeito” a cuja esfera psíquica pertence – diversamente do direito, que depende “do reconhecimento pelo Estado, pelos outros sujeitos, de que os poderes ou faculdades exercidos pela parte sobre o bem são legítimos”.


A relação entre interesse e direito não é, portanto, de identidade, mas de ordenação: “o direito pressuporia um processo de validação racional da manifestação do interesse da parte em face do ordenamento jurídico” (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 54-55). É a manifestação do interesse que dá origem a um processo de validação, espontâneo (consenso) ou formal (processo judicial), que poderá culminar na formação do direito (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 42).


4. O INTERESSE COMO OBJETO DA ATIVIDADE JURISDICIONAL: IMPOSSIBILIDADE DE CONDICIONAMENTO DO EXERCÍCIO DA FACULDADE DE AGIR À PRÉVIA DEMONSTRAÇÃO DE INTERESSE


Compreendido o direito subjetivo como resultado da atividade jurisdicional, tem-se como consectário do princípio democrático a vedação à exclusão apriorística da faculdade de submeter interesses ao respectivo processo de validação. Se, conforme assinalado por Dworkin, as instituições políticas devem dedicar a todos os cidadãos igual respeito e consideração, o acesso ao Judiciário deve ser amplamente assegurado aos que o procurem, porque a provocação da função jurisdicional contém implícita a reivindicação de que o poder de coerção estatal seja posto a serviço do interessado, o qual considera ter sua pretensão respaldada pelo ordenamento jurídico.


É o interesse o próprio objeto do processo, uma vez que a decisão de mérito dirá, à luz daquele ordenamento, se o interesse manifestado merece ou não ser tutelado. A essa resposta estatal, o cidadão sempre fará jus. Este, pois, o cerne do princípio da inafastabilidade da jurisdição.


Assim, ao contrário do verificado em um contexto totalitário, perante a ordem jurídica democrática o simples interesse é suficiente para instaurar o processo de validação, no qual seja apreciada a alegação de lesão ou ameaça a direito, o qual o autor afirma ter. Findo o processo de validação do interesse poderá o Estado dizer, primeiro, da existência do direito afirmado e, segundo, da tutela a ser concedida – o que, de modo algum, se confunde com a negativa de existência de um liame psicológico entre o autor da ação e o bem jurídico por ele visado.


Por conseguinte, é incompatível com o vigente modelo constitucional a atribuição ao Estado-juiz de prerrogativa para, previamente ao conhecimento do mérito, declarar a ausência de interesse processual em determinada demanda. Se o próprio indivíduo afirma sua vontade em face de determinado bem, não pode o pronunciamento jurisdicional ser-lhe negado por vislumbrada falta de necessidade ou adequação.


5. CONCLUSÃO


Em uma perspectiva democrática, o interesse existe tão logo o indivíduo manifesta sua vontade em relação a um bem. Cabe ao Estado, quando provocado, submeter essa afirmação unilateral de vontade, que escapa à sua ingerência, a um processo formal de validação. O princípio da inafastabilidade da jurisdição é garantia suficiente ao conhecimento da pretensão deduzida em juízo, rechaçando que a prolação de sentença de mérito seja negada ao fundamento de que falta, ao autor, interesse de agir.


Fica, de lege ferenda, a sugestão para que o futuro Código de Processo Civil incorpore essa diretriz democrática a seu texto, desvinculando o exercício da faculdade de propor a ação da prévia aferição de interesse processual.


 


Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm>, acesso em 03/07/2011.

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de lei da Câmara n. 8.046, apresentado em 22 de dezembro de 2010. Código de processo Civil. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=490267>, acesso em 03/07/2011.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário da política, 2 v. Tradução de Carmen C. Varriale et al.; Coordenação de tradução de João Ferreira; Revisão Geral de João Ferreira e Luiz Ferreira Pinto Cacais. 11. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2004.

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. Revisão técnica de Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FERREIRA, Juliana Maria Matos; GUIMARAES, Natalia Chernicharo; MACIEL JUNIOR, Vicente De Paula. Cidadania, legitimação para agir e efetividade no processo coletivo. In: ENCONTRO PREPARATÓRIO PARA O CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, XVII, 19 a 21 de junho de 2008, Salvador. Cidadania e efetividade do direito: Anais do XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 2965-2982.

IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Coleção A obra prima de cada autor. Tradução de José Tavares BASTOS. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002.

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas. São Paulo: LTr, 2006.

MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Rev.dos Tribunais, 2011.

VIGORITTI, Vicenzo. Interessi collettivi e processo: la legitimazione ad agire. Milano: Giufrfrè, 1979

 

Notas:

[1] Prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil.

[2] Trata-se, especificamente, do Estado Bismarckiano (1871-1890).

[3] Esclarece Carlo Guarnieri que, apesar da diferença contextual entre a Roma Antiga e a Alemanha do séc. XIX, “é indubitável que o bismarckismo também se caracteriza por uma relativa autonomia do Estado em face das forças sociais, constituindo, neste sentido, uma forma de Cesarismo”, compreendido este na “ideia de um poder forte, que soubesse desvincular-se dos interesses dos grupos e dos indivíduos e aliar-se estreitamente ao exército com o fim de articular uma política equilibrada que correspondesse mais aos interesses globais da comunidade” (GUARNIERI, 1998, in BOBBIO et al, 1998, p.159-160).


Informações Sobre o Autor

Roberta Maia Gresta

Pós-graduanda em direito processual pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas. Assistente da Corte Regional Eleitoral – TRE/MG, ocupante de cargo efetivo. Graduada em Direito pela UFMG.


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