Descriminalização do porte de drogas para uso pessoal: um aporte ao caso Arriola da corte Argentina

Resumo: O presente trabalho vem no intuito de analisar a sentença Arriola ditada pela Suprema Corte Argentina, que descriminalizou o crime de porte de drogas para uso pessoal, desde que respeitados determinados limites mínimos, fazendo em síntese um estudo referindo-se aos crime de perigo concreto e abstrato, além de fazer referencia aos princípio da autonomia de vontade referida na sentença argentina e garantida constitucionalmente, e também ao princípio da lesividade (nullun crime sin injuria) para se poder ter uma opinião a respeito de tal descriminalização, que atualmente encontra-se em vigência no território argentino.


Palavra chave: Crimes de perigo. Porte de drogas. Nullun crime sin injuria.


Abstract: The present work in order to analyze the sentence dictated by the Supreme Court Arriola Argentina, which decriminalized the offense of drug possession for personal use, subject to certain thresholds, in short doing a study referring to the real danger and crime abstract, and makes reference to the principle of autonomy of will in the sentence that Argentina and constitutionally guaranteed, and also detrimental to the principle of (nullun crime sin injuria) in order to have an opinion about such decriminalization, which currently is in force in Argentina.


Keywords: Crimes of danger. Drug possession.


Sumário: 1- Introdução. 2- Princípio da autonomia pessoal. 3- Crimes de perigo. 3.1- Crimes de perigo concreto. 3.2- Crimes de perigo abstrato. 4- Princípio da lesividad. 5- Conclusão. 6- Bibliografia.


1- Introdução


O presente trabalho tem o intuito de demonstrar a atipicidade do crime de porte de drogas para consumo próprio, em especial a “cannabis sativa”, conhecida popularmente como maconha, crime o qual se encontra expresso em leis especiais tanto na Argentina como no Brasil, levando em conta, ademais de vários outros elementos existentes para se fazer valer essa defesa, os princípios do livre arbítrio garantidos aos indivíduos, e a noção do conceito de crimes de perigo abstrato.


Buscaremos analisar nas legislações penais de Brasil e Argentina especificamente, e no caso ditado pela Suprema Corte Argentina onde declarou a inconstitucionalidade da norma que sanciona penalmente o porte de drogas para consumo pessoal, denominado caso Arriola[1], quais os fundamentos utilizados para se defender a atipicidade do crime em questão, tendo em vista que o mesmo, baixo determinados limites como se verá, não atenta contra o bem jurídico “saúde pública” que busca proteger as normas relativas ao uso de drogas não autorizadas pelos sistemas jurisdicionais dos dois países citados.


O que se pretende portanto, em síntese, é defender a tese de que o crime de porte de drogas para uso pessoal não possui as características de o colocarem como crime penalmente punido pelas legislações anti drogas vigentes em Brasil e Argentina, devendo o mesmo ser considerado inconstitucional, assim como o foi pelo menos pela Suprema Corte Argentina, com base na não afetabilidade de direitos de terceiros pela liberdade individual do indivíduo de fazer uso da maconha baixo determinados limites, e nem mesmo ao bem protegido pela lei penal de combate às drogas.


2- Princípio da autonomia pessoal


Começaremos a análise pelo conceito e discussão do princípio da autonomia pessoal. Tal princípio encontra-se garantido constitucionalmente nas Constituições de Brasil e Argentina.


Na Constituição Brasileira de 1988 o referido principio encontra-se respaldo no artigo 5º caput, o qual diz que a todos, independente de qualquer tipo de descriminação, fica assegurado o direito à liberdade, a qual se entende liberdade de atuar, desde que em conformidade com as normas legais, e também à liberdade pessoal quando elevada ao âmbito prisional. Vejamos:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […].”[2]


No mesmo sentido, a Constituição Argentina vai mais longe ao expressar que somente a Deus cabe regular as liberdades dos homens, dando a idéia de que também se encontram respaldados a agir da forma que lhes convém, também desde que respeitados os limites de suas ações. Vejamos o texto constitucional Argentino:


“Art. 19 – Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe.”[3]


Se pode notar ainda na normativa Constitucional Argentina, que os magistrados, de forma expressa, diferente do que ocorre com a Constituição Brasileira, estão impedidos de atuar sobre a liberdade pessoal de cada cidadão, cabendo somente a eles próprios e a Deus regular suas atitudes, ressaltando sempre que estas atuações encontram-se limitadas à não afetabilidade de um terceiro ou do bem comum.


Em outras palavras, com relação ao tema aqui tratado, o que se pretende mostrar é que os indivíduos estão livres para eleger se usam ou não a maconha, independente aqui se motivados por questão religiosa, cultural ou psíquica, devendo claro demonstrarem respeito aos que têm uma opinião contrária ao uso de tal droga, portanto aí uma idéia de liberdade restringida, que podemos dizer que se faz necessária para a preservação de uma vida harmônica dentro de um Estado Democrático como o qual vivemos, brasileiros e argentinos.


Tal entendimento é de se notar quando da leitura da sentença ditada pela Corte Suprema Argentina, no conhecido caso que recebeu o nome de Arriola, que reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 14, §2º da Lei Argentina 23.737, que criminaliza o fato do indivíduo ter consigo droga para consumo próprio. Em vários trechos de dita sentença são citados atributos que somente nos faz reforçar a idéia e o princípio de liberdade que o Estado dispõe aos seus cidadãos.


O parágrafo 17 das considerações dessa sentença nos fala que


“Com relación a tal derecho (derecho a la privacidad) y su vinvulación con el principio de “autonomía personal”, a nivel interamericano se ha señalado que “el desenvolvimiento del ser humano no queda sujeto a las iniciativas y cuidados del poder público. Bajo una perspectiva general, aquél posee, retiene y desarrolla, en términos más o menos amplios, la capacidad de conducir su vida, resolver sobre la mejor forma de hacerlo, valerse de medios e instrumentos para ese fin, seleccionados y utilizados con autonomía – que es prenda de madurez y condición de libertad – e incluso resistir o rechazar en forma ligítima la injerencia indebida y las agresiones que se le dirigen.” [4]


E continua, agora de forma a concluir que o trecho acima vislumbra e exalta a idéia de autonomia.


“Esto exalta la idea de autonomía y desecha tentaciones opresoras, que pudiera n ocultarse bajo un supuesto afán de beneficiar el sujeto, establecer su conveniencia y anticipar o iluminar sus decisiones.” [5]


Em outro parágrafo das considerações da mesma sentença do caso Arriola, ainda podemos notar com relação ao artigo constitucional que garante a liberdade individual que:


“… al original artículo 19 (de la Constitución Argentina), que ha sido el producto elaborado de la pluna de los hombres de espíritu liberal que construyeron el sistema de libertades fundamentales en nuestra Constitución Naconal, recordándonos que se garantiza un ámbito de libertad personal en el cual todos podemos elegir y sostener un proyecto de vida proprio” [6]


Um outro trecho da sentença Arriola, para finalizar a idéia de que tal princípio da autonomia pessoal é de suma importância no assunto da (in)constitucionalidade do porte de drogas para uso próprio, e para a sua questão também referente a sua (a)tipicidade, ainda que não fazemos, como deveríamos, referencia aos votos dos Senhores Ministros, é que, ainda nas considerações se encontra os dizeres que:


“… esta Corte … declara que el artículo 14, segundo párrafo, de la Ley 23.737 debe ser invalidado, pues conculca el artículo 19 de la Constitución Nacional, en la medida en que invade la esfera de la libertad personal excluida de la autoridad de los órganos estatales.” [7]


Nos resta então defender aqui, de acordo com os fundamentos apresentados e os demais que se citaram no decorrer da sentença do caso argentino Arriola, e nas doutrinas consultadas, que o crime de porte de uso de droga para uso pessoal implica sim em uma ofensa ao princípio da autonomia dos indivíduos.


Entretanto, deveremos também analisar uma outra questão relacionada com o crime aqui em questão, que é a que diz respeito ao princípio da Lesividade. Porém para se discutir esse princípio, devemos antes nos remeter a um estudo sobre o que se entende por crimes de perigo, e suas subdivisões, que o que passaremos a analisar por agora. Vejamos.


3- Crimes de perigo


Por crimes de perigo há muito se destaca seu entendimento. Por ele (perigo), significa ameaçar ou por em risco a existência ou a integridade de um bem jurídico tutelado, bastando que exista a/uma possibilidade de ocorrência do dano, para que se caracterize a infração penal.


BACIGALUPO, nos traz um conceito sobre o que para ele seria o crime de perigo, e já fazendo uma distinção entre o perigo concreto e o perigo abstrato, que trataremos mais adiante. Vejamos:


 “En los delitos de peligro la acción debe haber producido un peligro real para el bien jurídico – delitos de peligro concreto -. En estos delitos debe comprobarse que la acción representó un peligro para el bien jurídico. En esta comprobación debe procederse considerando la acción en el momento de su realización – después de realizada la acción que no produjo el resultado se pone de manifiesto que no era peligrosa para el bien jurídico-.


En los delitos de peligro abstrato habrá que excluir la tipicidad sí se demuestra que la acción de ninguna manera había podido significar un peligro para el bien juridico. Los delitos de peligro abstracto y los de pura actividad apenas si pueden diferenciarse.”[8]


O autor brasileiro REALE JÚNIOR nos remete ainda, de acordo com seus entendimentos, que para que exista uma potencialidade danosa em determinado objeto ou ação, é que esse seja capaz de modificar o mundo exterior com resultados que causem a perda ou a diminuição de um determinado bem, que no caso do crime de porte de drogas para uso pessoal se caracteriza como sendo a saúde pública.


Vejamos o que nos diz:


“a aptidão, a idoneidade de um fenômeno de ser causa de dano, ou seja, é a modificação de um estado verificado no mundo exterior com a potencialidade de reproduzir a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou a restrição de um interesse.” [9]


Em outras palavras, os crimes de perigo são aqueles onde é suficiente que a ação coloque um bem jurídico em estado de anormalidade onde possa aparecer como possibilidade real a produção de um dano.


Importante também conforme destacado acima, é fixar que este tipo de crime, os de perigo, se subdivide em algumas categorias como os de perigo concreto, de perigo abstrato, de perigo individual, de perigo comum ou coletivo, de perigo atual, de perigo iminente, e também de perigo futuro ou imediato. Entretanto, deixaremos de lado algumas dessas categorias, em função da discussão proposta neste trabalho, e analisaremos em especial duas delas, a de perigo concreto e a de perigo abstrato, que por si nos serão úteis para chegar a uma conclusão acerca do problema proposto.


3.1 – Crime de perigo concreto


Nesse tipo de crime tem-se claro que o intuito do legislador é proteger um bem jurídico, onde considera que o por em perigo basta para que se justifique a pena criminal.


Nesse sentido, esses crimes de perigo concreto são aqueles que para sua verificação, basta a possibilidade de produção de um resultado, de real perigo de dano ao bem jurídico protegido na norma penal. Entretanto, sua verificação, como o crime de lesão por exemplo, importa critérios de imputação divergentes, pois não apresenta um resultado lesivo de dano, senão somente um resultado de criação de perigo de resultado de dano.


Segundo JAKOBS[10], nos crimes de perigo concreto, além da execução de uma ação existe ainda a verificação de que esta ação ocasiona objetivamente uma determinada situação de perigo para determinado objeto ou pessoa. Em outras palavras, nos delitos de perigo concreto o autor da ação possui o pleno conhecimento do perigo que está produzindo com seu atuar, fala Ele (Jakobs) então, que existe um dolo de perigo e as vezes até mesmo um dolo eventual de lesão.


Por sua vez RODRÍGUEZ MONTAÑÉS é objetiva quando nos fala que nos crimes de perigo concreto, “el tipo requiere la concreta puesta em peligro del bien jurídico: el peligro concreto es el resultado típico.”[11]


Por sua vez, o autor SANTOS, referindo-se à teoria do resultado adotada por Schunemann, nos diz que


“segundo a moderna teoria normativa do resultado de SCHUNEMANN, o perigo concreto se caracteriza pela ausência casual do resultado, e a causalidade representa circunstância em cuja ocorrência não se pode confiar.” [12]


Ou seja, não se faz necessário a ocorrência do fato, senão que a simples noção de sua ocorrência seja a causadora de um dano ao bem jurídico protegido.


3.2 – Crime de perigo abstrato


Quanto ao crime de perigo abstrato, o qual julgamos classificar o crime de porte de drogas para uso pessoal, ao contrário do que ocorre nos crimes de perigo concreto, não vem expressos no tipo penal. Referem-se a uma presunção em que o legislador entendeu que o perigo era inerente a determinada conduta.


Em outras palavras, o que se pretende demonstrar é que enquanto no crime de perigo concreto o legislador insere no tipo a possibilidade de perigo, aqui (no crime de perigo abstrato) é o próprio núcleo do tipo que irá delimitar o perigo existente na conduta do agente, onde resta presumido por exemplo, que o uso de droga causa um perigo à saúde pública, que é o bem jurídico protegido nas legislações relativas referentes ao uso de drogas.


Mais uma vez ROXIN contribui ao trazer uma definição do crime de perigo abstrato, vejamos:


“aqueles em que se castiga a conduta tipicamente perigosa como tal, sem que no caso concreto tenha que ocorrer um resultado de exposição ao perigo”.[13]


Também nos traz outro conceito, de forma objetiva, a autora RODRÍGUEZ MONTAÑÉS ao dizer que “en los delitos de peligro abstrato, por el contrario” (a los delitos de peligro concreto), “se castiga uma acción típicamente peligrosa o peligrosa en abstracto en su peligrosidad típica, sin exigir que el caso concreto se haya puesto efectivamente en peligro el bien jurídico protegido.” [14] 


E é nesse crime de perigo abstrato e a partir de seus conceitos, sendo que basta a simples suposição de colocar um bem juridicamente protegido em perigo, que se basa a maior discussão que nos interessa neste trabalho.


O que se nota, ainda que de forma rudimentar dizer isto neste momento, é que os legisladores estão usando o direito penal como que de forma preventiva, deixando de lado a aplicação do direito penal punitivo, e de ultima ratio.


Nesse sentido, tem-se que o direito penal está, nestes moldes, para castigar punitivamente a própria conduta do agente, sem levar em conta um eventual dolo quanto à lesão ao bem jurídico protegido pela norma, neste caso a saúde pública. Isso nos leva a uma idéia de uso da teoria naturalista da ação, sem que seja levado em conta o querer do agente ao realizar determinada ação, neste caso o uso de drogas de forma individual.


Importante ressaltar que esta teoria da ação natural é proibida pela legislação brasileira, e ainda de acordo com o princípio da liberdade pessoal já explicado anteriormente, também não se aplica tendo em vista que se aplicado estaria contra as normas constitucionais de Brasil e Argentina no que diz respeito a este princípio.


Quer dizer então que, como esse crime de perigo abstrato não chega ao menos a colocar em risco o bem jurídico que a lei penal veio a proteger, vindo o direito penal então a tentar evitar determinada conduta antes mesmo que venha ela a colocar em perigo um determinado bem jurídico. Pune-se portanto tão somente uma violação normativa, e não uma conduta criminosa que coloque em perigo um bem juridicamente protegido.


Neste sentido, desta vez citando alguns doutrinadores de peso, SANTOS mais uma vez nos fala sobre o tema em discussão. Vejamos:


“Jakobs fala da ilegitimidade da incriminação em áreas adjacentes à lesão do bem jurídico; Graul rejeita a presunção de perigo dos crimes de perigo abstrato; Schroder propôs admitir a prova da ausência de perigo; Cramer pretendeu redefinir o perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto. Por outro lado, destacando a finalidade de proteção de bens jurídicos atribuída aos tipos de perigo abstrato, aparentemente indissociáveis de políticas comprometidas com o controle ecológico, o controle das atividades econômicas e, de modo geral, a garantia do futuro da Humanidade no planeta, Horn e Brehm propõe fundar a punibilidade do perigo abstrato na contrariedade ao dever, como um perigo de resultado (e não como resultado de perigo) e Frisch pretende compreender os delitos de perigo abstrato como delitos de aptidão (Eignungsdelikte), fundado na aptidão concreta ex ante da conduta para produzir a conseqüência lesiva.”[15]


Assim, podemos notar mais uma vez que o resultado de uma conduta de crime de perigo abstrato é totalmente presumido, não dependendo de nenhuma maneira da produção de lesão ou de perigo real ao interesse tutelado pela norma penal.


Isso nos propicia a oportunidade de dizer até que os crimes de perigo abstrato resultam como uma afronta ao princípio do direito penal de “nullum crimen sine injuria”, e portanto também uma inobservância ao princípio da ofensividade (ou lesividade), tendo como sabido que não pode haver crime sem que haja resultado, ou ao menos tenham a possibilidade clara e fática de causar o resultado.


Passaremos agora a tratar do princípio da lesividade.


4- Princípio da lesividad


O que se pode perceber em relação ao estudo da (in)constitucionalidade ou (a)tipicidade do crime de porte de drogas para uso pessoal, é que a discussão se dá mais a respeito do princípio da autonomia pessoal que possui os indivíduos, o qual vimos anteriormente.


Entretanto, aquele princípio da autonomia pessoal nos remete a um novo ponto importante, que trata sobre a lesividade que existe em função dessa atitude livre do indivíduo de consumir a maconha.


Vários autores, como ZAFFARONI, e também todos os Ministros da Corte Suprema Argentina, dentre eles o próprio Zaffaroni, quando do julgamento do já citado caso Arriola, citaram a incapacidade do uso de droga para causar algum resultado, alguma lesão a bem jurídico ou a terceiros, considerando todos eles que o uso de tal substância (a maconha), desde que ocorra dentro dos limites que possui o indivíduo, ou seja, que o uso seja em um ambiente particular ou em condições tais que não causem os danos ao bem jurídico, não enseja lesão alguma a nenhum bem jurídico.


Neste sentido ZAFFARONI diz que “la elemental racionalidad de cualquier decisión judicial exige que no se prhíba una acción que no lesiona a otro.” [16] E diz mais cuando expressa que “donde hay un delito deve haber una lesión.” [17]


Nesse mesmo sentido diz o Sr. Ministro LORENZETTI que “no cabe penalizar conductas realizadas en privado que no ocasionen peligro o daño para terceros. Los argumentos basados en la mera peligrosidad abstracta, la conveniencia o la moralidad pública no superan el test de constitucionalidad”, e continua dizendo ainda que “la conducta realizada en privado es lícita, salvo que constituya un peligro concreto o cause daños a bienes jurídicos o derechos de terceros.” [18]


Assim, aquelas ações que não afetem um bem jurídico tutelado ou a terceiros, como a saúde pública nos casos dos crimes referentes às drogas, não merecem ser objetos de tutela do direito penal, o qual deveria cuidar tão somente das ações que gerem afetação com relação a um bem juridicamente protegido.


Portanto, se um usuário de maconha escolhe por livre e espontânea vontade fazer uso da droga, este não afeta qualquer bem jurídico, desde que o faça dentro de seus limites, já citados anteriormente. E digo mais, acompanhando o pensamento de alguns autores e também de ministros da Corte argentina, que este usuário de drogas somente causa lesões à sua saúde, e não à saúde pública, resultado este que não é considerado crime pelas normas penais, não é criminalizada a autolesão.


Reafirmando o anteriormente dito, ZAFFARONI nos diz que


“la autolesión sólo es punible em el ámbito penal militar cuando se la causa para eludir los deberes del servicio (art. 820 CJM), caso en que el bien jurídico no es la integridad física propia sino la defensa nacional.”[19]


Essa não criminalização da autolesão, portanto, somente vem a somar-se aos argumentos de que tal crime de uso de drogas não causa efeito algum em relação ao bem jurídico saúde pública e nem a tereceiros.


Neste sentido o Sr. Ministro ZAFFARONI diz que


“no obstante los resultados descriptos, este tipo penal genera innumerables moléstias y limitaciones a la libertad de los habitantes que llevan a cabo conductas que no lesionan ni ponen en peligro bienes jurídicos ajenos…” [20]


E continua dizendo que os processos referente ao usuário de drogas


“se convierte em um obstáculo para la recuperación de los pocos que son dependientes, pues no hace más que estigmatizarlos y reforzar su identificación mediante el uso de tóxico…” [21]


Por sua vez, a Senhora Ministra CARMEM ARGIBAY relata que


“la prohibición del artículo 14, segundo párrafo, de la ley 23.737, no incluye, a diferencia de otro tipo de delitos, ninguna referencia o precisión sobre quienes serían las víctimas de la acción consistente en consumir estupefacientes o, al menos, como es que estos últimos podrian afectarlas. Más aún, incluye dentro del ilícito los casos en que probadamente no habrá ninguna otra persona involucrada salvo el consumidor mismo. Por este motivo, es significativa la probabilidad de que dentro de la definición legal pueden caber conductas que no se conectan en absoluto, o lo hacen de una manera excesivamente vaga e imprecisa, con algún efecto dañino sobre los intereses individuales o generales que busca proteger la ley 23.737.”[22]


5- Conclusão


O que se pode concluir deste trabalho, é que os crimes de perigo abstrato, assim como o porte de droga para uso pessoal, aqui tratado, decorre de uma simples presunção do legislador de que o usuário de drogas venha a cometer algum tipo de delito em função dos efeitos da droga usada.


Entretanto, a ação de usar a droga, em si, não causa nenhum dano ou mesmo perigo de dano à saúde pública e nem mesmo a terceiros, sempre ressaltando que o uso dessa droga deve dar-se de forma comportada por parte do usuário, que deve manter-se dentro de seus limites de atuar de acordo o princípio da autonomia, garantido em ambas Constituições de Brasil e Argentina.


Portanto, tem-se como conclusão, que o porte de uso de drogas para uso pessoal não tem caráter criminal, assim como sabidamente decidiu a Corte Suprema de Argentina, por unanimidade, devendo ser considerado atípico pela jurisprudência argentina, tendo em vista que não está na esfera do direito penal regular a vontade do autor mediante a criminalização de ações que não causem danos ou prejuízos a pessoas ou bens alheios.


Assim como nos diz ZAFFARONI, devemos partir da premissa de que “sólo hay tipos de lesión y tipos de peligro, y que em estos últimos, siempre debe haber existido una situación de riesgo de lesión en el mundo real.” [23]


Fica claro então que o Direito Penal, nestes casos de crimes de perigo abstrato, atua de forma repressiva em relação às atitudes dos indivíduos, atuando não como ultimo meio (ultima ratio) de dirigir as relações sociais, mas sim como um meio de resposta rápida às normas socialmente aceitas pela maioria da sociedade, que recorre à esfera penal para impor as atitudes que considera corretas, criminalizando aquelas que julgam serem incorretas, e que por esse motivo, muitas vezes acaba por cometer erros graves, manejando a atuação dos indivíduos, que conforme se viu são livres para atuar da maneira como queiram, desde que dentro de seus limites.


Neste sentido, citando outra vez ZAFFARONI


“el estado no puede imponer una moral individual, por imperio del art. 19 constitucional, en función del cual no es admisible la moral como bien jurídico: por el contrario, el ámbito de autonomía moral es, sin duda, un bien jurídico protegido constitucional e internacionalmente.”[24]


Também se pode concluir, ainda que não esteja citado no decorrer do trabalho, mas como conseqüência da conclusão de atipicidade de crime de uso de drogas, é que o Estado, ao invés de atuar criminalizando tal conduta, deveria investir suas forças na prevenção do uso de drogas em geral, e não somente da maconha, através de campanhas educativas, principalmente em relação às classes sociais mais desfavorecidas, assim como citam em várias passagens os Senhores Ministros argentinos no caso Arriola, que por motivos vários podemos considerar mais propícias a se perderem ao uso de drogas.


E não só por isso, mas também deve ser levado em conta que alguns usuários de drogas se encontram nesta condição não porque querem, mas por serem vítimas de problemas de saúde, que causam o vício de determinadas substâncias, sendo então criminalizados ao invés de serem tratados como deveriam na qualidade de pacientes de programas de reabilitação e tratamento médico-psicológico, que cabe ao Estado como função de sua obrigação de propiciar saúde adequada aos seus cidadãos.


E por derradeiro, também como cita todos os Ministros do caso Arriola, que as medidas e gastos direcionados ao combate e repressão dos usuários, deveriam estar direcionados e fortalecendo a política de combate ao crime de tráfico de drogas, o qual não merece nenhuma consideração quanto à sua constitucionalidade, e o qual realmente e potencialmente afeta a saúde pública, além de outros efeitos secundários com relação às leis de drogas, como a violência e os gastos públicos.


 


Referências:

ARGENTINA. Constitución Nacional Argentina. De 22 de agosto de 1994. Disponivel em http://www.dpn.gob.ar/biblio/constitucionnacionalargentina.pdf. Acceso en 06/09/2011.

BACIGALUPO, Enrique. Lineamientos de la teoria del delito. 3ª Ed. Editorial Hammurabi. Buenos Aires; 1994.

BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General. 2ª ed. Madrid, Marcial Pons Ediciones Jurídicas S/A, 1997

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Forense. 2009

RODRÍGUEZ MONTAÑÉS, Teresa. Delitos de peligro, dolo e imprudência. Rubinzal Culzoni Editores. Santa Fé; 2004.

ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Editorial Civitas: Madrid; 1997.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro. Freitas Bastos, 2000.

Sentença do caso Arriola. Ditada pela Corte Suprema Argentina, em 25 de agosto de 2009.

ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de derecho penal: parte general. 2ª Ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Ediar, 2007.

 

Notas:

[1] Bacharel em Direito pela PUC-Minas; Posgraduado em Direito Público pela Universidade Gama Filho-RJ; Mestrando em Direito Penal do Mercosul com orientação em Direitos Humanos e Sistemas Penais Internacionais pela Universidade de Buenos Aires – Argentina; e Professor assistente concursado na Universidade de Buenos Aires.

2 Neste caso, durante uma investigação por tráfico y comercialização de drogas, se realizou uma revista policial que resulto na prisão de oito pessoas que foram encontradas tendo em seu poder determinada quantidade de maconha, que por sua escassa quantidade se interpretava ser para uso pessoal.

3 BRASIL. Constituição Federal da República Federal do Brasil. 1989.

4 ARGENTINA. Constitución Nacional Argentina.  De 22 de agosto de 1994.

5 Sentença ditada pela Corte Suprema Argentina, conhecida como caso Arriola. Parágrafo 17 das considerações iniciais.

6 Ibidem.

7 Idem. Parágrafo 32 das considerações iniciais.

8 Idem. Parágrafo 36 das considerações iniciais.

9 BACIGALUPO, Enrique. Lineamientos de la teoria del delito. Pags. 79/80.

10 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Pág. 278.

11 JAKOBS, Günther. Derecho Penal: Parte General. Págs. 206/207.

12 RODRÍGUEZ MONTAÑÉS, Teresa. Delitos de peligro, dolo e imprudência. Pág. 30.

13 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Pág. 40.

14 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Pág. 407.

15 RODRÍGUEZ MONTAÑÉS, Teresa. Delitos de peligro, dolo e imprudência. Pág. 30.

16 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Pág. 41.

17 ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de derecho penal: parte general. Pág. 371.

18 Idem. Pág. 372.

19 Voto do Sr. Dr. Presidente Ricardo Luis Lorenzetti na sentença ditada pela Corte Suprema Argentina no conhecido caso Arriola.

20 ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de derecho penal: parte general. Pág. 374.

21 Voto do Sr. Dr. Eugenio Raul Zaffaroni na sentença ditada pela Corte Suprema Argentina no conhecido caso Arriola.

22 Ibidem.

23 Voto da Sra. Dra. Carmen M. Argibay na sentença ditada pela Corte Suprema Argentina no conhecido caso Arriola.

24 ZAFFARONI, Raúl Eugenio. Manual de derecho penal: parte general. Pág. 375.

25 Idem. Pág. 374.


Informações Sobre o Autor

Matheus Afonso de Faria

Bacharel en direito pela PUC-Minas; posgraduado em Direito Público pela Universidade Gama Filho-RJ; mestrando em Direito Penal do Mercosul pela Universidade de Buenos AIres, com orientação em Direitos Humanos e Sistemas Penais Internacionais; e professor assitente concursado da Universidade de Buenos Aires.


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