Breve análise do histórico do positivismo jurídico, a partir da obra “positivismo jurídico”, de Norberto Bobbio

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Resumo: O presente trabalho objetiva apresentar uma breve análise do histórico do positivismo jurídico, a partir da leitura da obra de Norberto Bobbio “Positivismo Jurídico”, de 1960-1961. Referida obra não sofreu atualizações de conteúdo vez que, como coloca o autor, “apesar de toda água que se passou sob as pontes do positivismo jurídico, os pilares centrais resistiram”[1]. Preferiu-se o enfoque no histórico à doutrina do positivismo jurídico em si em razão da necessidade de conhecimento do embasamento que originou o positivismo jurídico, já que decorrente de uma seqüência de acontecimentos ocorridos ao longo da história (com enfoque à formação do Estado Moderno), sendo impossível analisá-lo, portanto, apartado desse aparato histórico. Referida análise tem importante espaço no atual contexto em que se fala de pós-positivismo, pouco se verificando da construção do positivismo em si. Essa abordagem histórica é, também, essencial à compreensão de demais textos do autor, tais como a “Teoria da Norma Jurídica” e a “Teoria Geral do Direito”. Para o presente trabalho, considera-se como Estado Moderno a forma de organização de poder na qual houve centralização do poder (monopólio), concomitante com a afirmação dos territórios europeus. “A história do surgimento do Estado moderno é a história desta tensão: do sistema policêntrico e complexo dos senhorios de origem feudal se chega ao Estado territorial concentrado e unitário através da chamada racionalização da gestão do poder e da própria organização política importa pela evolução das condições históricas materiais[2]. Esse é o período em que ocorreram as discussões na seqüência ilustradas e que compreendem o próprio fundamento de legitimidade do Estado Moderno.


Palavras-chave: Norberto Bobbio, positivismo jurídico, pós-positivismo


Sumário: 1. Direito natural e direito positivo. 2. Nascimento do positivismo jurídico. 2.1. Alemanha. 2.2. França. 2.3. Inglaterra. 2.4. Significado histórico do positivismo jurídico. 3. Considerações finais.


Direito natural e direito positivo


Para que se possa falar em positivismo jurídico necessário, inicialmente, num trabalho de construção histórica da expressão, analisar, também, o direito natural e o direito positivo.


A idéia de positivismo jurídico parte da distinção entre direito positivo e direito natural, a qual existe desde a Idade Clássica. Em Aristóteles, tem-se que o direito natural surte efeitos, da mesma forma, em todas as partes, e “prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas a alguns ou más a outros”[3]; o direito positivo, por sua vez, tem eficácia no âmbito em que foi posto e estabelece determinadas ações que, uma vez previstas em lei, devem ser desempenhadas tal como nela previsto (assim, a lei diz como agir). Aos romanos, a distinção entre direito natural e direito positivo equivalia a jus gentium e a jus civile. O primeiro, imutável, não tem limites e é posto pela naturalis ratio; o segundo, limita-se a um certo povo e por ele é posto. Nesse período clássico, tinha-se o direito natural como geral e o direito positivo como particular, aplicando-se o entendimento de que a regra particular prevalece sobre a geral.


No período medieval, considerava-se como direito positivo aquele posto pelos homens e o direito natural como advindo de outrem (natureza ou Deus). Nesse sentido, para São Tomás de Aquino, a lei positiva deriva da lei natural. Em razão da origem, o direito natural prevaleceria ao direito positivo, donde vem a tendência do jusnaturalismo de sobreposição entre ambos.


Para os jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, o direito natural advém na natureza racional do homem, enquanto o direito civil vem do poder civil, que compete ao Estado. Tem-se, portanto, que o direito positivo é aquele posto pelo Estado, de modo que o critério diferenciador entre direito natural e direito positivado está na sua origem.


Outra distinção também pode ser feita a partir dos destinatários e como esses conhecem as normas: normas do direito natural vêm da razão; do direito positivo, vêm da manifestação do legislador.


Ademais, com relação à valoração das ações, do direito natural decorre aquilo que é bom e do direito posto aquilo que é útil.


Tanto na Época Clássica quanto na Idade Média, ambos, direito natural e direito positivo, eram considerados direito. O positivismo jurídico (final do século XVIII), porém, exclui o direito natural da categoria de direito. Por essa razão, a partir de então, não caberia mais falar-se em direito positivo, já que não existe direito que não este.


Na sociedade medieval, o direito advinha da sociedade civil, o que mudou com a instituição do Estado Moderno[4], único a estabelecer o direito, diretamente através da lei ou indiretamente “através do reconhecimento e controle das normas de formação consuetudinárias”[5].


Essa passagem é verificada a partir da atuação do juiz. Antes do Estado Moderno, ao juiz era possível escolher o direito aplicável,


“o juiz podia obter a norma a aplicar tanto de regras preexistentes na sociedade (direito positivo) enquanto de princípios equitativos e de razão (direito natural)[6].”


Depois, o juiz passa a integrar o Estado, de tal forma que só pode aplicar as normas dele emanadas. Isso faz com que o Estado seja o único criador do direito, já que edita normas e as aplica (juízes).


Essa criação localizada de normas decorreu de um processo de oposição ao direito romano, que foi colocado como superior aos micro-sistemas vigentes à época. A centralização dos reinos, quebrando com o antigo Império, fez nascer o ente político organizador produtor de normas locais, que aos poucos se sobrepuseram ao direito romano.


O monopólio da produção jurídica é parte do Estado absoluto e culminou nas codificações (séculos XVII/XIX)[7].


Na Inglaterra, a distinção direito natural e direito positivo dava-se na norma de oposição entre common law e statute law, sendo que o direito posto pelo poder soberano seria válido enquanto não contrariasse aquele nascido das relações sociais. Dois pensadores representavam esse contraponto: Sir Edward Coke pela common law, e Thomas Hobbes pela statue law. As concepções de Hobbes acerca da prevalência do direito positivo parte da premissa por ele adotada em seus estudos de que os homens, antes do Estado, viviam num estado de natureza. Nesse, o homem respeita o direito natural em consciência e para com os outros respeita desde que haja reciprocidade (tal como no pacta sunt servanda). Vez que no estado de natureza tem-se que o homem está contra o homem, acaba por acontecer o “contra-ataque” antes mesmo do ataque sob argumento de defesa; isto é, deixa-se de observar o direito natural porque parte-se do pressuposto que o outro não observará e irá, de alguma forma, prejudicá-lo. Com a vinda do Estado, que recebe todo o poder, os homens devem respeitar os pactos, sabendo que o outro também respeitará em razão do poder coercitivo do Estado estar atrelado ao seu poder normativo.


“De fato, por um lado o Estado possui o poder de pôr normas regulamentadoras das relações sociais porque surgiu para esta finalidade; por outro lado, somente as normas postas pelo Estado são normas jurídicas porque são as únicas que são respeitadas graças à coação do Estado”[8].


Nisso, o direito natural perde o valor e o direito passa a ser a expressão de quem tem o poder.


Assim, tem-se que a concepção positiva do direito está vinculada ao formalismo (a autoridade põe as normas) e ao imperativismo (a autoridade ordena ou proíbe comportamentos, emite comandos).


O poder, portanto, é conferido e manifestado pelo legislador. Essa posição absolutista é partilhada pelo pensamento liberal, pois a ausência de intermédios (que evitam o arbítrio do juiz) trazem segurança ao cidadão ante ao Estado. A preocupação liberal está na possibilidade de arbítrios por parte do legislador, donde vem a separação entre os poderes legislativo e executivo e a representatividade, no sentido de que o legislativo deve falar por toda a nação (passagem para a concepção democrática).


Nesse contexto, tem-se pensadores como Montesquieu e Beccaria, que defendem a necessidade de o juiz estar adstrito à lei, não podendo “legislar”, de modo a garantir a segurança do direito.


Nesse ínterim, o direito natural ainda estava “vivo”, como se verificado do pensamento jusnaturalista das Constituições dos Estados Unidos e da França, da idéia de contrato social e de direito naturais fundamentais.


O legislador, porém, não cobre todas as possibilidades de relações jurídicas, de modo que no direito positivo há lacunas, que eram negadas pelos juspositivias negassem a existência de lacunas. Sendo o direito positivo fundado no direito natural, suas lacunas deveriam ser por ele preenchidas. O direito natural adquire, portanto, função sub-rogatória ao direito positivo, posição inclusive partilhada por Hobbes. Essa visão estende-se até as codificações dos séculos XVIII e XIX.


Nascimento do positivismo jurídico


Alemanha


Sendo o positivismo jurídico uma ruptura com a consideração do direito natural enquanto direito, admitindo-se, portanto, apenas aquele direito positivo, faz-se necessário demonstrar o modo como se deu referida ruptura.


Num primeiro momento, tem-se o momento do historicismo, nascido na Alemanha do século XIX. Conquanto não seja um precursor de fato do positivismo jurídico, sua importância está no contraponto feito ao iluminismo e ao racionalismo, que defendiam o direito natural. Para Gustavo Hugo, o direito natural seria como considerações filosóficas do direito, que pode não necessariamente vir do legislador (conquanto o direito positivo seja o direito posto pelo Estado), podendo ter outras fontes.


Para o historicismo, em antagonismo ao racionalismo, a diversidade dos homens não pode ser desconsiderada, assim como a mutabilidade dos indivíduos, não cabendo, portanto, um direito universal, imutável. Analisando a história, considera-se que não se trata de uma ciência exata, regida pela razão, motivo pelo qual também não se pode falar que a origem do Estado seja decorrente de uma decisão racional. Outro contraponto ao iluminismo, que é otimista, o historicismo defende a tragicidade; não se vislumbra a possibilidade de um mundo melhor, apegando-se ao passado, como às origens da civilização e as sociedades primitivas e, inclusive, à Idade Média. Há apego às instituições e ao costume, arraigados na sociedade, consagrados pelo tempo. Essa ligação com a tradição eleva o costume a status de forma genuína de direito (“O costume é, portanto, um direito que nasce diretamente do povo e que exprime o sentimento e o ‘espírito do povo’ (Volksgeist)”[9]).


As principais críticas feitas pelo historicismo ao racionalismo (e, portanto, à posição por ele adotada com relação ao direito natural) é com relação à concepção de um direito universal e de que seja originário da razão. O historicismo não admite a proposta de codificações, adotadas pelos franceses, que “representaram a realização política da onipotência do legislador”[10] (direito como uma expressão da autoridade e da razão – despotismo esclarecido e racionalismo).


Com a invasão da Alemanha por Napoleão, as propostas de códigos tal como adotadas na França chegaram nesse país, trazendo consigo a idéia de igualdade formal, que não era vislumbrada na sociedade alemã da época, ainda limitada à divisão de castas feudais.


Antonio Frederico Justo Thibaut foi o jurista alemão que defendeu a necessidade de se adotar a sistemática dos códigos, opondo-se ao historicismo então vigente. Segundo Thibaut, que escreveu sobre racionalismo lógico no direito, para interpretar a norma


“não basta conhecer como ela é formada, é necessário também relacioná-la com o conteúdo de outras normas, é preciso, portanto, analisá-la logicamente e enquadrá-la sistematicamente”[11].


Thibaut aponta que uma boa legislação deve ter perfeição formal (normas claras e precisas) e perfeição substancial (normas que regulamentem todas as relações sociais), o que não seria encontrado no direito de origem germânica, nem no direito canônico e nem no direito romano. Ademais, fala que não há problemas em colocar o direito em códigos, pois são poucas as mudanças sociais em assuntos importantes, e que, embora as codificações sejam um direito único, as variações existem apenas por arbítrio dos príncipes (não seriam, portanto, diversidade locais naturais).


Carlos Frederico Von Savigny apresenta uma contraposição à proposta de Thibaut de adotar as codificações na Alemanha, naquele determinado momento histórico. Sem contrariar abertamente as codificações em si, Savigny defende que o direito então vigente na Alemanha seria decadente e que, codificado, seria perpetuado. Antes, seria necessário o renascimento e o desenvolvimento do direito científico, isto é, das ciências jurídicas (uma das fontes do direito, assim como o direito popular e o direito legislativo).


França


As codificações (“corpo de normas sistematicamente organizadas e expressamente elaboradas”[12]) surgiram no século XVIII, na França, e são um instituto típico da Europa continental, decorrente do racionalismo e iluminismo cujo auge foi a Revolução Francesa, sem terem sido, contudo, teorizadas. Considera-se a existência de um legislador universal, que dita leis atemporais e sem localidades, aplicáveis a todos a qualquer tempo. O objetivo seria a criação de leis com base na simplicidade e na unidade, já que antes os direitos eram territorialmente limitados (o que, para o racionalismo, seria decorrência do arbítrio da história), esparsos e em grande volume. Tem-se a ciência da legislação, que cria Códigos fundados na natureza das coisas cognoscíveis pela razão humana e nas exigências humanas universais. Busca-se o retorno à natureza (ressaltando-se que o homem seria naturalmente bom, tal como proposto por Rousseau), com poucas leis e acessíveis a todos.


Conquanto tivesse por norte o direito natural, o Código Civil francês afastou-se das características iluministas, reaproximando-se da tradição jurídica do direito francês. Isso pode ser verificado nos projetos apresentados e no de adotado em 1804. Cambacérès apresentou três projetos para o Código relevantes para essa análise, cujas distinções são importantes de se apontar: o primeiro, de 1793, apresentada uma reaproximação à natureza, primando pela unicidade e pela simplicidade. Era dividido em duas partes, às pessoas e aos bens, e trazia a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e a liberdade pessoal (contratual, principalmente). O segundo, de 1794, foi menos técnico e mais simples, trazendo os princípios norteadores para os legisladores posteriores ao Código e para os juízes, quando da análise do caso concreto. Tinha por base três exigências do homem na sociedade: autonomia, bens para satisfazer as próprias necessidades e disponibilidade dos bens em seu interesse ou da família; o projeto de Código era divido, então, às pessoas, aos direitos reais e às obrigações. O terceiro, de 1796, voltou-se à técnica e afastou-se ainda mais das idéias jusnaturalistas.


O projeto definitivo, que “abandonou definitivamente a concepção jusnaturalista”[13], foi criado por uma comissão nomeada por Napoleão para esse fim, composta por Tronchet, Maleville, Bigot-Préameneau e Portalis. O último, Jean Etienne Marie Portalis, liberal moderado, teve atuação mais relevante, com suas críticas ao modo como o iluminismo contraria a cultura passada. A primeira edição do Código recebeu o nome de Code Civil de Français, de 1804, e a segunda, de 1807, Code Napoleón.


O artigo 4º do Código (sua redação e o modo como foi interpretado) demonstra o distanciamento dos pressupostos jusnaturalistas. Ao colocar que “o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada”[14], os redatores do Código pretendiam fosse afastado o juízo de non liquet, buscando-se de alguma forma suprir a norma para solucionar o caso concreto. Para tanto, havia duas linhas de interpretação, a auto-regração e a hetero-regração. A primeira, adotada pelos intérpretes do Código, considera que a solução está no próprio ordenamento, no sentido que a onipotência do legislador abarcou todas as soluções possíveis para eventuais obscuridades ou lacunas, por meio de princípios colocados em lei. É o positivismo jurídico em sentido estrito, que considera que o ordenamento é completo, completude da lei. A segunda admite que o aplicador busque a solução fora do ordenamento, que era o objetivo dos redatores, admitindo a interação do juiz com a lei[15], com o uso, por exemplo, da equidade, que seria um retorno (ou tratamento suplementar) ao direito natural.


A auto-regração é a escola da exegese, que busca as soluções a partir da intenção do legislador, e contra a qual se opôs a escola científica do direito.


A escola da exegese levou a uma interpretação passiva e mecânica do Código[16], em razão não apenas do próprio Código em sim, mas também do contexto em que estava inserido.


O Código trazia respostas mais fáceis e de rápido acesso, sendo desnecessárias, nessa perspectiva, maiores buscas. Os juristas tinham o legislador como autoridade, ou seja, não cabia a eles contrariá-lo, o que inclusive estava em conformidade com a separação dos poderes, que impedia o juiz de criar direito, pois estaria usurpando poderes exclusivos do legislativo, deveria ser, apenas, a boca da lei (Montesquieu), explicitando aquilo que já está nela colocado. O fato de estar “tudo” no Código traria uma segurança jurídica, já que o cidadão saberia antecipadamente que lei que seria aplicada ao seu caso, evitando arbitrariedades, pois a ciência jurídica estava limitada a explicitar, com base nos pressupostos colocados pelo legislador, não poderia criar. Politicamente, havia a pressão do regime napoleônico, que determinou o ensino do direito positivo, sem teorias gerais ou concepções jusnaturalistas.


Segundo a escola da exegese, o processo de interpretação do Código nada mais era do que


“assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código”[17].


Além dos pontos acima descritos, a escola da exegese coloca que o direito natural só terá alguma relevância se incorporado à lei (se concebido como direito positivo), não tendo, portanto, nem mesmo caráter subsidiário. Ademais, norma jurídica é somente aquela posta pelo Estado ou por ele reconhecida, admitindo-se, como já dito, a onipotência do legislador e a negação de outras fontes do direito que não sejam o direito estatal. Isso porque ao legislador foi conferido o poder de dizer o que é justo ou injusto. A interpretação deve ser fundada na intenção do legislador, busca pela vontade do legislador em casos de obscuridade. Nesse ponto, tem-se a vontade real (em caso de disciplinamento não claro, busca-se o que pretendia dizer) e a vontade presumida (quando nada disse, por meio de uma ficção jurídica, busca-se a resposta por meio de analogia e de princípios gerais). Contrário à essa idéia de busca pela vontade do legislador, que é subjetiva, tem-se a vontade da lei, objetiva e que considera que a lei tem em si mesma um conteúdo normativo, o que admite uma interpretação em conformidade com o contexto histórico e, portanto, uma interpretação progressiva e evolutiva.


Inglaterra


Na Inglaterra, conquanto não houvesse (não há) códigos, dois estudiosos elaboraram estudos de teorização das codificações, Jeremy Bentham e John Austin, ambos utilitaristas.


Bentham, empirista, apesar de adotar pensamentos da corrente iluminista, era, na verdade, contrário ao jusnaturalismo, vez que a natureza humana não é suscetível de um conhecimento experimental. Apresenta a possibilidade de uma ética objetiva, com base no empirismo[18], e crê no legislador universal e na clareza e brevidade da lei.


A posição que esse autor adotou acerca das codificações teve três momentos: a proposta de uma reforma e uma reorganização sistemática do direito inglês, que seria assistemático diante da ausência de regramentos gerias, sem uma linha legislativa, mas com várias judiciárias; o Digesto do direito inglês, “que deveria conter sistematicamente expostas as regras de direito que constituíam os princípios fundamentais do ordenamento jurídico inglês”[19]; uma reforma radical, com a codificação completa do direito civil, do direito penal e do direito constitucional.


Pretendia um código verdadeiramente universal, aplicável a toda sociedade civilizada. Não teve qualquer sucesso prático.


Bentham apresenta algumas críticas à common law, tais como a incerteza e a falta de segurança jurídica; a possibilidade de criação, pelo juiz, de uma regra aplicável retroativamente ao caso sob análise (novo precedente); não é fundada no princípio da utilidade; o juiz não tem competência para solucionar todo e qualquer conflito (o que pode ser eliminado pelo legislador); e a ausência de possibilidade de controle popular das decisões emanadas de juízes.


Para a criação de um código, Bentham entende que não pode ser feita por juristas (que teriam interesse profissional e econômico na manutenção do caos), nem por comissões[20]. Ou seja, deveria ser feito por apenas um indivíduo, não jurista, que poderia inclusive ser estrangeiro (e, portanto, apartado de pré-concepções locais). Para ser útil, o código deve atingir o maior numero de cidadãos e por eles cognoscível, em termos claros e preciso; deve ser completo, sem lacunas; e deve indicar os objetivos da lei, suas motivações.


Austin, por sua vez, chega a fazer uma ligação entre as correntes de base do positivismo jurídico. Ele parte da divisão entre ciência da legislação (direito como deveria ser) e jurisprudência (direito vigente, como é). A jurisprudência divide-se em particular (um determinado ordenamento) e geral (princípios, noções, conceitos comuns a todo ordenamento).


Para ele, lei é uma forma típica de direito, é um comando (expressão de um desejo) geral e abstrato, que tem a equivalente sanção. As leis podem ser divinas (reveladas ou não reveladas) ou humanas (direito positivo e moralidade positiva). O direito positivo pressupõe um soberano, uma sociedade política independente (soberania como estrutura hierárquica na sociedade e que nela se esgota). A moralidade positiva é posta por um não soberano, podem ser as leis impropriamente ditas (como o costume social) e as leis propriamente ditas (que se subdividem em leis que regulam a vida dos indivíduos no estado de natureza, que regulam as relações entre os Estados, e as leis das sociedades menores, como as famílias).


Austin apresenta três princípios tidos como fundamentais do positivismo jurídico[21]:


a) a afirmação de que o objeto da jurisprudência (isto é, da ciência do direito) é o direito tal como ele é e não o direito como deveria ser (concepção positivista do direito);


b) a afirmação de que a norma jurídica tem a estrutura de um comando (concepção imperativista do direito);


c) a afirmação de que o direito é posto pelo soberano da comunidade política independente – isto é, em termos modernos, pelo órgão legislativo do Estado (concepção estatal do direito).”


Esse autor não nega a juridicidade do direito posto pelos juízes, pois estes criam direito estatizado, autoridade subordinada. Tanto o direito judiciário (produzido, portanto, por juízes) quanto o direito legislativo são de origem estatal, a diferença está no modo que cada um é produzido, pois no direito legislativo as normas são gerais e abstratas e no direito judiciário são normas particulares, para um determinado caso.


Como críticas à posição apresentada por Bentham, Austin coloca que a produção do direito pelo legislativo não o torna facilmente controlável pelo cidadão, já que esse controle, na verdade, depende da constituição do órgão produtor do direito. Além de que o juiz está submetido a controles, como os precedentes e os órgãos judiciários superiores.


Como objeções ao direito judiciário, Austin coloca que é menos acessível ao conhecimento, é produzido com menor ponderação, é, por vezes, retroativo, mais vago e incoerente, além de há a dificuldade de certificar a validade das normas[22].


Austin entende que o direito judiciário deveria ser substituído pelas codificações (por ele considerada uma forma superior de direito), mas apresenta também críticas ao Código Napoleônico, apontando que lhe faltam definições técnicas aos termos jurídicos aplicados, que não considerou o direito romano como deveria, que não foi concebido como completo (passível de lacunas) e que foi redigido apressadamente.


As codificações, segundo Austin, devem representar uma reformulação formal do direito, e não material tal como propunha Bentham, vez tratar-se de um instrumento técnico-jurídico. Em defesa das codificações, Austin entende que todo código é incompleto, mas menos lacunar que o direito judiciário; a completude dos códigos deve ser a existência de normas aplicáveis a toda uma categoria de casos; o sistema de precedentes é ainda mais cristalizado que as codificações; a ausência de maleabilidade do código traz maior segurança jurídica; e, por fim, os códigos eliminam equívocos e ambigüidades[23].


Com relação à redação, assim como Bentham, Austin entende ser necessário que seja feito por apenas um indivíduo, mas reexaminado por uma comissão. Ademais, em contraposição ao primeiro, acredita que o código deve ser acessível apenas aos juristas, afastando-o da opinião pública.


SIGNIFICADO HISTÓRICO DO POSITIVISMO JURÍDICO


Inicialmente, colocou-se que o positivismo jurídico seria aquela doutrina segundo a qual direito é apenas o direito positivo. Após a análise discorrida neste e no capítulo anterior, chega-se a delimitação de direito positivo como aquele decorrente de imposição do Estado (poder soberano), com normas gerais e abstratas (lei). Por essa razão, o nascimento do positivismo jurídico está atrelado ao surgimento da idéia de legislação.


Durante da formação do Estado Moderno, duas foram bases do movimento de codificação, de viés racionalista. Primeiro, que ter a lei como fonte de direito decorre da compreensão racionalista, a partir da qual as normas gerais e coerentes postas pelo ente soberano regulam a sociedade. Segundo, a prevalência dada à lei confere ao homem o poder de modificar a sociedade, já que o direito consuetudinário um reflexo da estrutura social, sem poderes de modificá-la, enquanto o direito positivo, a lei, é uma fonte ativa de direito.


A legislação, portanto, vem para combater o caos do direito primitivo e confere ao Estado um instrumento de intervenção na sociedade. Trata-se de um movimento histórico ligado ao Estado Moderno, de modo que mesmo que nem todos os países tenham adotado codificações houve o fortalecimento da lei em detrimento das demais fontes, inclusive em países como a Inglaterra.


Na Alemanha não foi adotada a codificação, dado à reação local e a fragmentação política. Porém, o historicismo partilhava da posição de que era necessário um direito unitário e sistemático, bem com das críticas de Bentham ao judiciário. A solução, porém, não estaria na criação de um código, mas na própria ciência jurídica, com maior maleabilidade do que as codificações. O direito científico alemão considera o direito “como uma realidade social ‘dada’ ou ‘posta’ e como unidade sistemática de normas gerais”[24], considerando que a parte material corresponde ao direito romano.


No movimento do direito científico alemão, que sequer considerada o direito judiciário como fonte, os padndectistas consideravam que já existia uma codificação, o Código de Justiniano, cabendo ao jurista o desenvolvimento do direito, não mais ao legislador. Assim como os franceses e ingleses,


“também os juristas alemães […] eram premidos pela quantidade de material jurídico confuso e disperso, mas sustentavam que a obrigação de trazer ordem ao caos cabia a eles mesmos e não a um legislador mais ou menos sagaz”[25].


Rudolf bom Jhering, que teorizou essa concepção de ciência jurídica, entende a ciência jurídica como universal, por possuir um método próprio refinado através do tempo, o que superou o nacionalismo de Savigny. Jhering propõe uma simplificação dos materiais jurídicos, facilitando seu manuseio, o que era similar à proposta das codificações. Para fazer a simplificação quantitativa, tem-se três operações: a análise jurídica (abstrair a “noção geral do caso particular do qual ela surgiu”[26]), a concentração lógica (que faz o caminho contrário, busca recompor o que foi decomposto, síntese por dedução, encontro dos princípios latentes) e o ordenamento sistemático (“que permite ao jurista não apenas ter uma visão do conjunto sobre dados da experiência jurídica, como ainda produzir novas regras”[27], produção do direito). Para a simplificação qualitativa, fala-se em construção, fazendo uma distinção entre jurisprudência superior (a construção de fato) e jurisprudência inferior (interpretação da lei). A construção, para Jhering, necessário individualizar os institutos jurídicos. Feito isso, parte-se para a definição do instituto (sujeito, objeto, conteúdo, etc.), a evolução do instituto, a relação desse instituto com outros e a sua inserção no sistema. Jhering aponta, também, três regras para a construção:


a) a construção deve ser aplicada exclusivamente ao direito positivo, cujo conteúdo deve ser respeitar, embora sendo livre quanto à forma;


b) deve ter em vista a unidade sistemática, por exemplo eliminando as chamas impossibilidades jurídica e procurando conciliar ao máximo possível o velho com o novo;


c) deve ter em vista uma construção simples e clara, ao contrário de confusa e deselegante (embora esta regra seja menos absoluta que as outras). [construção clara, transparente e natural]”


Essa preocupação mais com a lógica e com a estética do que com as conseqüências, demonstra claramente o pensamento do jurista positivista.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A partir da análise retro, verifica-se o importante papel desempenhado por filósofos e juristas franceses, alemães e ingleses para a formação do sustentáculo do que depois viria a ser tratado como positivismo jurídico.


Conquanto referido trabalho não se volte à verificação do positivismo jurídico em sim, de pronto é possível compreender que a discussão sobre positivismo e pós-positivismo deve necessariamente passar por essa compreensão história da relação entre Estado e direito.


As concepções defendidas no que pode ser chamado de período pré-positivismo jurídico encontram eco nas atuais análises que se faz da atuação estatal, em especial da atuação do Judiciário. Veja-se, nesse sentido, a discussão colocada acerca do artigo 4º do Código Napoleônico, em que de um lado tem-se a possibilidade de o juiz criar direito no intuito de preencher eventuais lacunas e sanar eventuais obscuridades (posição adotada pelos redatores) e de outro o ditame de que o juiz é tão-somente a boca lei, isto é, nada pode criar, devendo limitar-se ao sistema, que seria completo. Isso ensejaria, inclusive, uma remissão à análise de sistema tal como coloca Niklas Luhmann, não sendo, porém, este o objeto do presente trabalho, vez que se buscou apenas trazer apontamentos. A análise comparativa entre outros autores deve partir, inicialmente, de uma leitura completa da obra “Positivismo Jurídico” para uma real compreensão do posicionamento defendido por Norberto Bobbio.


 


Referências

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 12.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política – volume 1. 12ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p. 426.

 

Notas:

[1] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 12.

[2] BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política – volume 1. 12ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p. 426.

[3] BOBBIO, p. 17.

[4] Forma de organização de poder histórica e geograficamente determinada (séculos XIII a XIX, Europa). Cf. BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política – volume 1. 12ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. p. 425-431.

[5] BOBBIO, p. 27.

[6] Ibid., p. 28.

[7] “Da codificação começa a história do positivismo jurídico verdadeira e propriamente dito”. BOBBIO, p. 32).

[8] Ibid., p. 35.

[9] BOBBIO, p. 52.

[10] BOBBIO, p. 54.

[11] BOBBIO, p. 56.

[12] BOBBIO, p. 64.

[13] Ibid., p. 72.

[14] Transcrito por Ibid., p. 74.

[15] “Assim, em todas as nações civilizadas, junto ao santuário das leis, se forma um conjunto de máximas, de decisões e de doutrina que constitui um verdadeiro suprimento desse santuário de leis”. Ibid., p. 75.

[16] A escola científica, em contrapartida, visava a “elaboração autônoma de dados e de conceitos jurídicos cuja validade fosse independente e transcendesse o próprio Código”. BOBBIO, p. 78.

[17] BOBBIO, p. 83.

[18] “localizar esse princípio fundamental e objetivo não na natureza do homem, mas no fato empiricamente verificável de que cada homem busca a própria utilidade: a ética se torna assim o complexo das regras segundo as quais o homem pode conseguir a própria utilidade do modo melhor”. Ibid., p. 92.

[19] Ibid., p. 95.

[20] “um código unitário, coerente, simples, um código, pois, que pudesse valer como lei universal só poderia ser obra de uma única pessoa, com princípios estáveis e idéias claras”. BOBBIO, p. 99.

[21] Ibid., p. 108.

[22] Austin elenca alguns criterios para verificar a validade de tais normas. Cf. BOBBIO, p. 111.

[23] “É melhor ter um direito expresso em termos gerais, sistemáticos, conciso (compact) e acessível a todos, do que um direito disperso, sepultado num amontoado de detalhes, imenso (bulky) e inacessível” AUSTIN apud BOBBIO, p. 117.

[24] BOBBIO, p. 122.

[25] Ibid., p. 123.

[26] Ibid., p. 124.

[27] Ibid., p. 125.


Informações Sobre o Autor

Elis Wendpap

Advogada, especialista em Direito Constitucional, mestranda em Direito Empresarial pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), participante do Grupo de Estudos de Direito do Comércio Internacional do UNICURITIBA


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