O Supremo Tribunal Federal e a norma supralegal: apontamentos frente à estrutura hierarquico-normativa brasileira

Resumo: A Constituição Federal de 1998 prevê em seu art. 59 como espécies normativas primárias, a emenda à constituição (enquanto projeto), as leis complementares, as leis ordinárias, as mediadas provisórias, as leis delegadas, os decretos legislativos e as resoluções. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº. 349.703-1 concebeu os tratados internacionais sobre direitos humanos anteriores ao § 3º do art. 5º da Constituição Federal como norma supralegal, paralisando ao mesmo tempo, a aplicação da Constituição e das espécies normativas primárias que com ele conflitem. Por meio desta pesquisa, analisa-se o papel do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição, frente à internalização dos tratados internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil, tendo como norte a supralegalidade declarada no referido Recurso Extraordinário e a estrutura hierárquico-normativa brasileira.

Palavras-chave: Supremacia constitucional; direito supranacional; Supremo Tribunal Federal; neoconstitucionalismo; direitos humanos.

Abstract: Is the 1998 Federal prev in his art. 59 as especies, the amendment rules prim is the (while project), the complementary laws, laws ordin rias, the mediated provis, delegated laws, legislative decrees and resolution. It happens that the Supreme Court, when the trial of the Extraordinary Feature no river. 349,703-1 conceived the international treaties on human rights prior to 3 of art. the 5 is the Federal standard supralegal, paralyzing at the same time, the implementing of the esp and prim rias that with regulatory cies it conflict. Through this research, analyses the role of the Supreme Court as guardi of is the opposite of international treaties on internalizes human rights agreed upon by Brazil, having as the North declared in that Extraordinary Resource supralegalidade River and the normative structure hierarchy hier Brazilian.

Keywords: constitutional Supremacy; supranational law; Supreme Court; neoconstitucionalism; human rights.

Sumário: Introdução. 1 O Supremo Tribunal Federal e o Neoconstitucionalismo. 2 Os direitos humanos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 A estrutura hierárquico-normativa brasileira. 4 O Supremo Tribunal Federal e os tratados internacionais sobre direitos humanos. Conclusão. Referências.

Introdução

Por meio do presente trabalho, busca-se analisar o papel do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, diante da problemática que envolve seu posicionamento quando do Recurso Extraordinário nº. 349.703-1, no qual aponta a supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil antes do advento do § 3º, do art. 5º da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº. 45 de 2004.

O tema internalização hierárquico-normativa dos tratados internacionais sobre direitos humanos sempre foi objeto de discussão no Brasil, tendo o Supremo Tribunal Federal até a prolação judicial acima mencionada, entendido que tais tratados ingressam no Brasil com status de lei ordinária.

Toda discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos pactuados pelo Brasil, deu-se em razão da previsão do § 2º, do art. 5º da Constituição Federal, concentrando-se nas teses de que dados tratados teriam natureza supranacional, de norma constitucional ou de lei ordinária.

Em 2004, o constituinte derivado reformador, ao que parece, almejando solucionar o problema, por meio da emenda Constitucional n.º 45, inseriu o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal de 1988, estabelecendo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil, que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Quando as dúvidas pareciam estar sanadas, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 349.703-1, que envolvia a prisão civil do devedor-fiduciante, decidiu a partir do voto do Relator Ministro Gilmar Mendes, que desde a adesão do Brasil sem qualquer reserva ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ambos em 1992, que já não há base legal para a prisão civil do depositário infiel, sendo que o caráter especial destes diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes confere natureza supralegal, estando abaixo da Constituição e acima da legislação interna, tornando inaplicável, desse modo, toda a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato (o entendimento tornou inaplicáveis os art. 1217 do Código Civil de 1916, Decreto Lei nº. 911/69 e art. 652 do Código Civil de 2002), ainda que o art. 5º, inciso LXVII da CF, preveja que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

A doutrina, em decorrência desse julgado tem desenvolvido que os tratados e convenções internacionais terão status de norma constitucional, norma supralegal ou lei ordinária, dependendo da sua natureza e procedimento de aprovação.

Neste trabalho, desenvolve-se, primeiramente, a natureza jurídica do Supremo Tribunal Federal, composição e principais competências, procurando-se evidenciar que com o neoconstitucionalismo não há dúvidas que a Suprema Corte, fazendo valer sua condição de guardiã da Constituição, tem seus atos condicionados à efetiva tutela dos direitos fundamentais.

Posteriormente, discorre-se sobre os direitos humanos fundamentais na Constituição Federal de 1988, fomentando-se que a Constituição elencou-os em capítulo próprio, por mais que seja possível encontrar direitos fundamentais por toda a Constituição, bem como que outros podem ingressar no ordenamento jurídico brasileiro por meio de tratados internacionais pactuados pelo Brasil.

Ademais, disserta-se sobre a estrutura hierárquico-normativa brasileira, com enfoque nas espécies normativas primárias, previstas no art. 59 da Constituição Federal, quando se adentra, mais propriamente, na problemática que envolve este trabalho.

Por derradeiro, chega-se à conclusão de que por mais que a atividade judicante do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição que é, deva coadunar-se à efetiva tutela dos direitos fundamentais, não lhe compete criar nova espécie normativa por meio dos seus julgados, ultrajando a vontade do Constituinte originário que alocou as espécies normativas previstas no art. 59 da CF, logo abaixo da Constituição.

1 O Supremo Tribunal Federal e o Neoconstitucionalismo

A Constituição Federal de 1988 reservou ao Supremo Tribunal Federal a posição de órgão de cúpula do poder judiciário, cabendo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituição (art. 102, caput, da CF).

O Supremo Tribunal Federal é composto por 11 ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101, caput da CF), nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (parágrafo único, do art. 101 da CF).

Nosso tribunal constitucional detém variadas competências, destacando-se a competência de julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, I, a, da CF); a de julgar mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição (art. 102, III, a, da CF), a de declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (art. 102, III, b, da CF), além da de julgar a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º, da CF).

Com a evolução do Direito, notadamente, pela chegada do neoconstitucionalismo, os tribunais constitucionais passaram a exercer uma função revitalizadora dos direitos fundamentais à vida humana, devendo efetivar, o Supremo Tribunal Federal, nos termos da Constituição Federal de 1988, referida função.

O Neoconstitucionalismo é identificado por Luís Roberto Barroso como:

um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser mencionadas a formação do Estado constitucional de direito cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX (marco histórico); o pós positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a ética (marco filosófico); e o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional” (BARROSO, 2007, p. 60).

Neste prisma, conforme Flávia Piovesan o valor da dignidade humana, como fundamento constitucional, “[…] impõe-se como um núcleo básico e informador do ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valorização a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional” (PIOVESAN, 2002, p. 75).

Reforçando a importância da efetividade dos direitos fundamentais no neoconstitucionalismo vale apreciar:

A doutrina passa a desenvolver, a partir do século XXI, uma nova perspectiva em relação ao constitucionalismo, denominada neoconstitucionalismo, ou, segundo alguns, constitucionalismo pós-moderno, ou, ainda, pós-positivismo. Busca-se, dentro dessa nova realidade, não mais apenas atrelar o constitucionalismo à ideia de limitação do poder político, mas, acima de tudo, buscar a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais” (LENZA, 2010, p. 59).

À luz do referido, não há dúvidas que nossa Suprema Corte, fazendo valer sua condição de guardiã da Constituição, deva condicionar seus atos jurisdicionais à efetiva tutela dos direitos fundamentais.

2 Os direitos humanos fundamentais na Constituição Federal de 1988

Os direitos fundamentais são direitos intimamente ligados à dignidade humana (art. 1º, III da CF), consagrados como tais (direitos fundamentais) por normas positivadas nas constituições de diversos países.

Antes de se estabelecer os devidos comentários acerca dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, necessário enfrentar a distinção existente entre os conceitos de direitos fundamentais, direitos do homem e direitos humanos.

Os direitos fundamentais, conforme dito são conhecidos como aqueles direitos positivados na Constituição como sendo fundamentais. Ou seja, são direitos fundamentais aqueles direitos em que a Constituição de um país denomina como fundamentais à pessoa humana.

Os direitos do homem conforme George Marmelstein encontram-se ligados “a instâncias ou valores éticos anteriores ao direito positivo, podendo-se dizer que eles estão, até mesmo, acima do direito positivo, possuindo um conteúdo semelhante ao direito natural” (MARMELSTEIN, 2009, p. 25-26). Em suma, os direitos fundamentais seriam os direitos do homem positivados.

Já os direitos humanos, para o mesmo autor (MARMELSTEIN, 2009), seriam aqueles valores inerentes ao homem, positivados na esfera do direito internacional.

Os direitos fundamentais estão consagrados na Constituição de 1988, a princípio, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), abrangendo, no Capítulo I, os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º da CF); no Capítulo II, os direitos sociais (art. 6º ao 11 da CF), no Capítulo III, os direitos da nacionalidade (arts. 12 e 13 da CF); no Capítulo IV, os direitos políticos (art. 14 ao 16 da CF); e, no Capítulo V, os partidos políticos (art. 17 da CF).

Falou-se que os direitos fundamentais estão consagrados na Constituição Federal, a princípio, nesses termos, por tratar-se o Título II de um rol meramente exemplificativo. Isso porque, existem outros direitos fundamentais alocados na Constituição, em locais distintos do Título II.

Será que, por exemplo, resta alguma dúvida que o Título VIII da Constituição Federal, que regula a ordem social, trata de direitos fundamentais? Nele estão insculpidas normas relativas ao direito ao trabalho e seguridade social (art. 193 ao 195 da CF); à saúde (art. 196 ao 200 da CF);  à previdência social (arts. 201 e 202 da CF); à assistência social (arts. 203 e 204 da CF); à educação cultura e desporto (art. 205 ao 217 da CF); à ciência e tecnologia (arts. 218 e 219 da CF); à comunicação social (art. 220 ao 224 da CF); ao meio ambiente (art. 225 da CF); à família, criança e adolescente (art. 226 ao 230 da CF); e, aos índios (arts. 231 e 232 da CF).

Neste viés Paulo Gustavo Gonet Branco afirma que:

“O parágrafo em questão dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos direitos fundamentais no Título II da Constituição (…) É legítimo, portanto, cogitar de direitos fundamentais previstos expressamente no catálogo da carta e de direitos materialmente fundamentais que estão fora do catálogo. Direitos não rotulados expressamente como fundamentais no título próprio da Constituição podem ser como tal considerados, a depender da análise de seu objeto e dos princípios adotados pela Constituição” (GONET BRANCO apud Silva, 2005, p. 39).

A despeito dessa previsão art. 5º, caput, da CF, vale analisar que apesar de:

“fazer referência expressa, tão somente a brasileiros (natos e naturalizados) e estrangeiros residentes no País, a doutrina e o STF (inclusive), entendem, mediante uma interpretação sistemática, a inclusão nesse rol, dos estrangeiros não residentes, dos apátridas e das pessoas jurídicas” (LENZA, 2011, p. 963).

Reforçando a ideia de que os direitos previstos no dispositivo constitucional ora descrito abrangem além dos brasileiros e estrangeiros residentes no país, os estrangeiros não residentes, José Luiz Quadros de Magalhães afirma que:

“Artigo 5: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” Como professora de Direito Constitucional I, sua primeira prova avaliava o conhecimento dos alunos a respeito dos direito individuais. Uma das questões estava assim proposta: Os direitos individuais relativos à vida e à liberdade no Brasil são assegurados pela Constituição Federal para as seguintes pessoas: a) Apenas para os brasileiros natos e naturalizados; b) Para os brasileiros e estrangeiros residentes no país; c) Para todas as pessoas que se encontram no território brasileiro; d) Nenhuma das respostas anteriores. Note-se que a questões B transcreve parte do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. A maior parte dos alunos que assistiu às aulas e leu os textos indicados pela professora respondeu corretamente à questão assinalando a letra C. Entretanto, um aluno relapso e criador de caso assinalou a questão B e, alegando estar a professora errada, recorreu e xingou até a última instância acadêmica, perdendo, obviamente, o recurso e a razão. Ora, como dissemos, Constituição não é texto, e uma leitura literal não sistêmica e descontextualizada do texto pode sugerir então que, como a Constituição expressamente se refere à garantia dos direitos individuais para brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, aos estrangeiros, turistas, não residentes, não tem assegurado o seu direito à liberdade, o que é errado” (MAGALHÃES, 2006, p. 151-152).

Por fim, corroborando o raciocínio, o parágrafo § 2º do art. 5º da CF prevê que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Sabe-se que o sistema normativo brasileiro foi inspirado no modelo proposto por Hans Kelsen, em que encontramos um escalonamento de normas, cuja norma inferior busca fundamentos de validade na norma imediatamente superior, estando a Constituição Federal no ápice da “pirâmide” normativa.

Por ter como paradigma o modelo de Hans Kelsen, pretende-se, a partir de agora, analisar a natureza normativa supralegal dos tratados sobre direitos humanos, apontada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário 349.703-1, frente à estrutura hierárquico-normativa brasileira. 

3 A estrutura hierárquico-normativa brasileira

A Supremacia da Constituição surge como condição de validade de todas as normas jurídicas, desencadeando o processo de produção normativa disciplinado nos artigos 59 a 69 da Constituição Federal de 1988.

Quanto à Supremacia da Constituição José Afonso da Silva sustenta:

“Nossa Constituição é rígida. Em consequência, é a lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o governo federal, nem os governos dos Estados, nem os governos dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa e implicitamente, pelas normas positivas daquela norma fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos. Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal” (SILVA, 2009, p. 46).

A subseção I da seção VIII do título IV da Constituição Federal trata das disposições gerais acerca do processo legislativo. Por meio desse processo legislativo é que o Estado positiva o direito, ou seja, elabora normas.

Dessa forma, tem-se por objeto, conforme o artigo 59 da Constituição Federal, através do processo legislativo, a criação de espécies normativas como as emendas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções.

É válido lembrar, fazendo uso das palavras de José Afonso da Silva mais uma vez que:

“as medidas provisórias não constavam da enumeração do art. 59 como objeto do processo legislativo, e não tinha mesmo que contar, porque sua formação não se dá por processo legislativo. São simplesmente editadas pelo Presidente da República. A redação final da Constituição não trazia nessa enumeração. Um gênio qualquer, de mau gosto, ignorante, e abusado, introduziu-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto final (portanto depois do dia 22.9.88) e a promulgação-publicação da Constituição no dia 55-10-88” (SILVA, 2009, p. 524-525).

Referidas espécies normativas, independentemente da ressalva de José Afonso da Silva, são conhecidas como espécies normativas primárias (MORAES, 2010), aquelas que buscam fundamento de validade diretamente na Constituição. Ou seja, que derivam de pronto da Constituição.

As emendas à Constituição são normas produzidas pelo poder constituinte derivado reformador (poder legislativo federal) que, quando aprovadas, tem o mesmo efeito e, consequentemente, a mesma importância das regras contidas na Constituição originariamente. Para a elaboração de emendas constitucionais, o poder constituinte derivado reformador deverá obervar certos limites, previstos no art. 60, I, II, III, §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º da CF (limitações expressas ao poder de reforma da Constituição).

Em outras palavras, quando da confecção de uma emenda à Constituição deve-se observar as limitações materiais previstas no artigo 60, § 4º, incisos I, II, III, IV da Constituição Federal. Isso significa que o texto Constitucional pode até ser alterado por emendas constitucionais, quando se tratar de forma de estado, o voto direto, secreto, a separação dos poderes e os direitos e garantias constitucionais, desde que referida alteração não promova uma abolição desses conteúdos (art. 60, § 4º, CF).

A alteração das normas constitucionais por meio de emendas não pode ocorrer na vigência de estado de defesa, estado de sítio ou intervenção federal (limitações circunstanciais, art. 60, §1º, CF) e sua iniciativa deve se dar por meio daqueles legitimados previstos nos incisos I, II e III do art. 60, CF (limitações formais subjetivas), devendo a proposta ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (art. 60, § 2º, CF – limitação formal objetiva). Em sendo aprovada, a emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem (art. 60, § 3º, CF – limitação formal objetiva).

Cabe salientar, evidenciar-se como limitação formal objetiva[1], o fato de que a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, § 5º, CF).

As leis ordinárias são a espécie normativa regra. Seu processo legislativo é o comum (ordinário), exigindo-se, para sua aprovação, tão somente, o quórum de maioria simples ou relativa (art. 47, CF). Assim, pode dispor a lei ordinária sobre todas as matérias não reservadas à lei complementar, bem como aquelas que não tenham um campo material de competência das outras espécies normativas constantes do art. 59, CF.

As leis complementares são normas elaboradas com o objetivo de complementar o texto Constitucional. Conforme Alexandre de Moraes (2010), elas se diferenciam das leis ordinárias material e formalmente. A matéria a ser regulamentada por lei complementar encontra-se taxativamente descrita na Constituição Federal, enquanto o campo material da lei ordinária é residual. O quórum de aprovação da lei complementar é de maioria absoluta (art. 69, CF) e o de aprovação de uma lei ordinária é de maioria simples ou relativa (art. 47, CF).

Grande discussão envolve a existência ou não de hierarquia entre as leis complementares e as leis ordinárias, existindo relevantes argumentos pró e contra, de renomados publicistas. Não enfrentaremos o tema, por tratar-se nossa pretensão de outra seara. Todavia, traremos à baila o posicionamento de Michel Temer, atual vice-presidente da República Federativa do Brasil, o qual afirma que “não há hierarquia alguma entre a lei complementar e a lei ordinária. O que há são âmbitos materiais diversos atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas” (TEMER, 2010, p. 150).

As medidas provisórias são normas editadas pelo Presidente da República, nos termos do art. 62 da CF, em caso de relevância e urgência, devendo submetê-la de imediato ao congresso nacional.

Resoluções são atos normativos primários, elaborados pelo Congresso Nacional, pela Câmara dos Deputados (art. 51, CF) e/ou pelo Senado Federal (art. 52, CF), para veicular matérias de sua competência com efeitos, via de regra, internos. Cabe salientar que a Constituição não prevê o procedimento a se seguir quando da criação de uma resolução, sendo matéria regimental, importando fomentar que, tratando-se de resolução do Congresso Nacional, ambas as casas irão participar de sua confecção. Se for caso de resolução da Câmara dos Deputados e do Senado, somente a casa respectiva deliberará.

Leis delegadas são atos normativos primários elaborados pelo Presidente da República, após delegação externa corporis do Congresso Nacional (art. 68, CF). Trata-se a hipótese, da possibilidade de transferência de parte da atividade legislativa ao Presidente da República, sendo exceção ao princípio da indelegabilidade de atribuições, sofrendo restrições formais e materiais. A delegação poderá ser típica, quando todo o processo legislativo se esgota no Poder Executivo (com a resolução autorizadora, o Presidente da República elabora o texto normativo, promulga e determina sua publicação) ou, atípica, quando o Congresso Nacional determinará que o projeto retorne ao Legislativo para votação única, sendo vedada qualquer emenda – art. 68, § 3º, CF.

A delegação ao Presidente da República far-se-á por solicitação deste e mediante resolução autorizadora do Congresso Nacional, que especificará o conteúdo e os termos de seu exercício (art. 68, §2º, CF), desde que não se trate de ato de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49, CF), da Câmara dos Deputados (art. 51, CF) e do Senado Federal (art. 52, CF), matérias reservadas à lei complementar (art. 68, §1º, CF), além de matéria sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

O decreto legislativo é instrumento normativo pelo qual são veiculadas as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49, CF). As regras para o seu procedimento são regimentais. Contudo, pode-se afirmar que os decretos legislativos serão, obrigatoriamente, instruídos, discutidos e votados, nos sistema bicameral, e, se aprovados, serão promulgados pelo Presidente do Senado Federal na qualidade de Presidente do Congresso, determinando, posteriormente, a sua publicação.

Dentre as hipóteses previstas no art. 49 da Constituição Federal, encontra-se a competência exclusiva do Congresso Nacional para resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (art. 49, I, CF) por meio de decreto legislativo. Celebrado o tratado, convenção ou ato internacional pelo Presidente da República (art. 84, VIII, CF), o Parlamento deve, internamente, decidir sobre a sua viabilidade, conveniência e oportunidade, referendando-o por meio de decreto legislativo se entender que deva aprovar a decisão do Chefe do Executivo, podendo o último ratificar a assinatura já depositada e promulgar o texto mediante decreto, incorporando-o ao ordenamento jurídico interno.

Eis que se chega ao foco do que se pretende neste trabalho. Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, surgira grande discussão acerca da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos pactuados pelo Brasil, em razão da previsão do § 2º, do art. 5º.

A controvérsia concentrava-se, principalmente, nas teses de que referidos tratados detinham natureza supranacional, de norma constitucional ou de lei ordinária.

Buscando sanar a celeuma, o constituinte derivado reformador, por meio da emenda Constitucional n.º 45 de 2004, inseriu o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal de 1988, estabelecendo que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil, que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Quando as dúvidas pareciam estar sanadas, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 349.703-1, que envolvia a prisão civil do devedor-fiduciante, decidiu a partir do voto do Relator Ministro Gilmar Mendes, que desde a adesão do Brasil sem qualquer reserva ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ambos em 1992, que já não há base legal para a prisão civil do depositário infiel, sendo que o caráter especial destes diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes confere natureza supralegal, estando abaixo da Constituição e acima da legislação interna, tornando inaplicável, desse modo, toda a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato (o entendimento tornou inaplicáveis os art. 1217 do Código Civil de 1916, Decreto Lei nº. 911/69 e art. 652 do Código Civil de 2002), ainda que o art. 5º, inciso LXVII da CF, preveja que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

A doutrina, em decorrência desse julgado tem desenvolvido que os tratados e convenções internacionais terão status de norma constitucional, norma supralegal ou lei ordinária, dependendo da sua natureza e procedimento de aprovação.

Assim, pode-se aludir que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, equivalem a emendas constitucionais; os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados pela regra anterior à reforma gozam de natureza supralegal; os tratados e convenções internacionais de outra natureza terão força de lei ordinária (art. 47 da CF/88).

Existe divergência, entretanto, no que toca aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que não sejam aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, logo, pelo procedimento ordinário (art. 47 da CF/88).

Segundo Marcelo Novelino, a partir da referida decisão do Pretório Excelso:

“os tratados internacionais passaram a ter três hierarquias distintas: Os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, §, 3º); os tratados internacionais de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47), terão status supralegal, situando-se abaixo da Constituição e acima da legislação ordinária; os tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária” (NOVELINO, 2010, p. 472).

Já Alexandre de Moraes, sobre o tema, assim aduz:

“as normas previstas nos atos, tratados, convenções ou pactos internacionais devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo, inclusive, quando preveem normas sobre direito fundamentais (humanos), ingressam no ordenamento jurídico como atos normativos infraconstitucionais, salvo na hipótese do § 3º do art. 5º da CF, pelo qual a emenda nº. 45/04 estabeleceu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (MORAES, 2010, p. 702).

Extrai-se do referido que o Supremo Tribunal Federal proclamou o status de supralegalidade dos tratados internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro antes da emenda constitucional nº 45/04, mudando seu posicionamento anterior, que apontava o status de lei ordinária desses tratados[2].

A decisão do Supremo Tribunal Federal ora mencionada retrata a constante abertura do Estado Constitucional à influência supranacional, principalmente, no que toca às normas relativas aos direitos humanos.

Nesse sentido, segundo Peter Harbele “o Estado já não se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos” (HARBELE, 2003, p. 75-77).

4 O Supremo Tribunal Federal e os tratados internacionais sobre direitos humanos

Relativamente ao tema obrigatoriedade e aplicação dos tratados internacionais no direito interno, a fim de explicar o procedimento de internalização da norma decorrente do pacto, além da sua posição hierárquica no ordenamento interno, surgiram as teorias monista e dualista.

Pela primeira, entende-se que (KELSEN, 1998) o direito internacional e o direito nacional fazem parte de um único sistema jurídico.

Em virtude disso, os tratados seriam incorporados de forma direta, inexistindo necessidade de percorrer-se um processo de internalização dos tratados para que produzam efeitos na ordem interna.

Quanto à teoria monista, segundo Dolinger:

“em havendo conflito entre as normas internacionais e as internas, estar-se-ia diante das seguintes possibilidades: prevalência do direito interno sobre o internacional; preponderância da norma internacional sobre a interna; consideração de mesma hierarquia entre ambas, aplicando-se a mais recente” (DOLINGER, 1996, p. 83).

A segunda (TRIEPEL, 1969) desenvolve existirem dois ordenamentos jurídicos distintos (o internacional e o nacional), havendo necessidade de se criar uma lei específica no Estado para que o tratado produza efeitos. Logo, os tratados internacionais não teriam aplicação automática no direito interno.

Nesses termos, uma vez incorporada a norma internacional ao direito interno, eventual colisão normativa, seria solucionada pelos critérios clássicos de solução (hierarquia, cronologia, especialidade).

Sobre o tema, Carlos Roberto Siqueira Castro aduz que o sistema brasileiro não realça a adoção de uma ou outra teoria:

A vigente Constituição brasileira, seguindo nossa tradição constituinte na matéria, e apartando-se do que preceituam alguns outros estatutos supremos mais antigos e de notório prestigio, não versa, direta e abrangentemente, a questão das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno. Ante a lacuna normativa supralegal, essa inevitável confrontação tem sido há tempos dirimida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, já agora, com os suprimentos do Superior Tribunal de Justiça, no exercício das competências recursais estatuídas nos artigos 102, III, ‘b’, e 105, III, ‘a’, da nossa Lei Maior” (CASTRO, 2003, p. 145).

Para Flávia Piovesan, entretanto, a Constituição brasileira de 1988 nos termos do art. 5º, § 2º, consagrou “um sistema jurídico misto, na medida em que para os tratados de direitos humanos acolhe a sistemática de incorporação automática, enquanto que para os tratados tradicionais acolhe a sistemática da incorporação não automática” (PIOVESAN, 1996, p. 110).

Quanto aos tratados que não versem sobre direitos humanos, corroborando o que fora sustentado, a mesma autora assim alude:

No que tange a estes, adota-se a sistemática da incorporação legislativa, de modo a exigir que, após a ratificação, um ato com força de lei confira execução e cumprimento aos tratados no plano interno. Deste modo, no que se refere aos tratados em geral, acolhe-se a sistemática da incorporação não automática, o que reflete a adoção da concepção dualista” (PIOVESAN, 1996, p. 111).

Sob essa ótica, por força do § 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o qual reza que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de direitos humanos teriam aplicação automática, produzindo efeitos no ordenamento jurídico logo após a ratificação pelo Chefe do Poder Executivo, enquanto que os tratados internacionais que não versam sobre matéria de direitos humanos, para que produzam efeitos, necessitam passar pelo crivo do Congresso Nacional, ou seja, pela edição do decreto de execução, conforme dito no ponto anterior.

Essa discussão intensificou-se, principalmente, em razão do conhecido Pacto de San José da Costa Rica, criado em 22 de novembro de 1969, aprovado pelo Decreto Legislativo 27, tendo sido ratificado, sem ressalvas, pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, que passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio a partir do Decreto Executivo 678, de 06 de novembro de 1992.

Isso porque a Constituição Federal, em seu artigo, 5°, LXVII autoriza a prisão do depositário infiel e o art. 7°, inciso 7 desse tratado prevê que ninguém deve ser detido por dívida, salvo na hipótese de inadimplemento de obrigação alimentar. Assim, observou-se um conflito entre a norma constitucional e a norma incorporada ao nosso direito pelo tratado internacional.

Sem falar no novo Código Civil de 2002 (art. 652) que repetiu a previsão do revogado Código Civil de 1916 (art.1287), regulamentando a prisão do depositário infiel, tanto no depósito voluntário quanto no necessário.

A posição majoritária do Supremo Tribunal Federal, diante da discussão, tangenciava pela defesa de que os tratados internacionais ingressam no Brasil com status de lei ordinária, versando ou não sobre direitos humanos.

EMENTA: habeas corpus. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do artigo 5°, LXVII, da Constituição de 1988. Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7° do artigo 7° da Convenção de Sano José da Costa Rica. habeas corpus indeferido, cassada a liminar concedida” (BRASIL, 1995, p. 1).

Note-se que nesse caso, entendeu-se que o Decreto-Lei no 911/69, que autorizava prisão do devedor de alienação fiduciária, teria sido revogado pelo Pacto de San José da Costa Rica, mas a prisão do paciente foi mantida.

Reforçando a ideia, no julgamento do recurso extraordinário a seguir, o Supremo Tribunal Federal assim posicionou-se:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECRETO-LEI 911/69. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. INEXISTÊNCIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE PARA RECORRER DA DECISÃO QUE CONCEDE HABEAS-CORPUS. 1. Habeas-corpus. Concessão. Ministério Público. Legitimidade para recorrer da decisão. Precedente. 2. O Decreto-lei 911/69 foi recebido pela nova ordem constitucional e a equiparação do devedor fiduciante ao depositário infiel não afronta a Carta da República, sendo legítima a prisão civil daquele que descumpre, sem justificativa, ordem judicial para entregar a coisa ou seu equivalente em dinheiro, nas hipóteses autorizadas por lei. Recurso extraordinário conhecido e provido (BRASIL, 1998, p. 1).

No julgado abaixo, a nossa Suprema Corte defende a ideia de persistir a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se ao disposto no artigo 5º, LXVII da Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel.

“EMENTA: Habeas corpus. Esta Corte, por seu Plenário (HC 72.131), já firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se ao disposto no artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. A essas considerações, acrescenta-se outro fundamento de ordem constitucional para afastar a pretendida derrogação do Decreto-Lei nº 911/69 pela interpretação dada ao artigo 7º, item 7º, desse Pacto. Se se entender que esse dispositivo, que é norma infraconstitucional, revogou, tacitamente, a legislação também infraconstitucional interna relativa à prisão civil do depositário infiel em caso de depósito convencional ou legal, essa interpretação advirá do entendimento, que é inconstitucional, de que a legislação infraconstitucional pode afastar exceções impostas diretamente pela Constituição, independentemente de lei que permita impô-las quando ocorrer inadimplemento de obrigação alimentar ou infidelidade de depositário. Habeas corpus indeferido” (BRASIL, 2000, p. 1).

Por fim, em 2002, o Pretório Excelso mantém a prisão civil de depositário infiel, que vencido em ação de depósito, não entregou o bem objeto da alienação fiduciária em garantia.

EMENTA: Prisão civil de depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII): validade da que atinge devedor fiduciante, vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia: jurisprudência reafirmada pelo Plenário do STF – mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica (HC 72.131, 22.11.95, e RE 206.482, 27.5.98) – à qual se rende, com ressalva, o relator, convicto da sua inconformidade com a Constituição (BRASIL, 2002, p. 1).

Contudo, no julgamento do Recurso Extraordinário 343.703-1/2008, cujo relator foi o Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por maioria, a natureza dos tratados internacionais sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil antes da inserção do § 3º ao art. 5º da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, conforme se infere a seguir:

“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIRIETOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva um lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei nº 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002)” (BRASIL, 2008, p. 1).

Desse modo (MENDES, 2008) a prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII da CF) não foi revogada por referidos pactos, mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, sob o seguinte argumento:

“Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 262 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1287 do Código Civil de 1916. Enfim, desde a adesão do Brasil, ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. De qualquer forma, o legislador constitucional não fica impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n° 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional” (BRASIL, 2008, p. 60).

Conclusão

É sabido que em cada Estado soberano há uma liberdade para adoção do modelo jurídico normativo a ser adotado.

Antes do novo movimento constitucionalista, notadamente, com o normativismo de Kelsen, a nossa pirâmide normativa compreendia a Constituição no topo e as espécies normativas previstas no art. 59 da CF (espécies normativas primárias) logo abaixo, buscando na primeira, fundamento direto de validade.

Entretanto em 2008, o Supremo Tribunal Federal, quando do exame do Recurso Extraordinário ora analisado, atribuiu o status de norma supralegal aos tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil antes da Emenda Constitucional n.º 45 de 2004, que inseriu o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, numa interpretação normativa, em nossa opinião, desvirtuada da estrutura hierárquico-normativa do Brasil.

Conforme visto, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal manteve a superioridade normativa da Constituição sobre a norma pactuada internacionalmente, mas criou ao que parece, uma nova espécie normativa, superior às normas primárias, a qual paralisou a aplicação tanto da norma constitucional (art. 5º, LXVII da CF) quanto das normas infraconstitucionais (código civil e decreto-lei 911).

Inobstante a importância dos tratados e convenções firmados e ratificados no âmbito internacional para a concretude do direito interno, tendo em vista a posição do Brasil em relação aos organismos internacionais e a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais, não se pode menosprezar a soberania nacional. Esta, além de ser um fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, I da CF), manifesta-se na qualidade máxima do poder social insculpido no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, o qual assevera que todo poder emana do povo sendo exercido diretamente ou por seus representantes eleitos.

Se toda a discussão acerca da posição hierárquica dos tratados pactuados pelo Brasil no sentido de serem normas constitucionais ou infraconstitucionais se deu em virtude das previsões do art. 5º, § 2º, e do art. 49, I, ambos da Constituição Federal, o legislativo federal, representante eleito do povo brasileiro acabou com a problemática optando, por meio da introdução do § 3º do art. 5º da Carta Magna, que somente o mesmo decidirá se os tratados que versem sobre direitos humanos pactuados pelo Brasil ingressarão no nosso ordenamento como norma constitucional ou infraconstitucional, não cabendo a ninguém mais fazê-lo.

Não se pode negar que a posição do Supremo Tribunal Federal no julgado em tela, teve como norte a efetiva tutela dos direitos fundamentais (liberdade de direito de locomoção – art. 5º, XV da CF), fazendo valer, igualmente, o princípio da prevalência dos direitos humanos, previsto no inciso II do art. 4º da Constituição Federal, que reza sobre os princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III da CF).

Nossa Suprema Corte poderia, sem sombra de dúvidas, ter decidido como fez, entendendo pelo descabimento da prisão por dívida do depositário infiel. Contudo, deveria ter utilizado-se, unicamente, de meios hermenêuticos como a leitura sistemática da Constituição, o princípio da interpretação conforme a constituição, dentre outros. Mas de forma alguma, reconhecer que os tratados sobre direitos humanos anteriores ao § 3º do art. 5º da Constituição Federal tem status de norma supralegal, tendo o condão de afastar a aplicação da norma Constitucional e das normas infraconstitucionais que com ele conflitem. 

A Constituição não é um mero texto. A Constituição é norma que deve ser respeitada e aplicada.  Nesse sentido, há que se respeitar a sistemática sobre os tratados de direitos humanos, prevista no art. 5, §§ 2º e 3º e art. 49, I, todos da Constituição Federal.

Sobre a obediência aos preceitos constitucionais, vale apreciar as palavras de Santi:

“a norma jurídica fundamental do ordenamento jurídico de um Estado, a Constituição, é fruto de um poder, e a obediência a ela ou seu cumprimento, um dever. Poder que, investido de soberania, retrata independência, isto é, o fato da ordenação estatal não depender de nenhuma outra, posto que se põe e modifica por si mesma, de tal modo que sua validade e eficácia não lhe são conferidas por outra, sendo, portanto, originária” (SANTI, 1977, p. 55).

Enfim, por mais que a atividade judicante do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição que é deva coadunar-se à efetiva tutela dos direitos fundamentais, não lhe compete criar nova espécie normativa por meio dos seus julgados, ultrajando a vontade do Constituinte originário que alocou as espécies normativas previstas no art. 59 da CF, logo abaixo da Constituição.      

 

Referências
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________. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 349.703-1. Tribunal Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Decisão em 03/12/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 12 de setembro de 2011.
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Notas:
 
[1] Vale mencionar existirem ainda, as chamadas limitações implícitas ao poder de reforma da Constituição, as quais seriam (MORAES, 2010) a impossibilidade de se alterar os titulares do Poder Constituinte derivado-reformador (art. 60, I, II e II da CF) e de haver qualquer emenda que vise à alteração das expressas (art. 60, I, II, III, §§, 1º, 2º, 3º, 4º e 5º da CF).

[2] O Supremo Tribunal Federal revogou, inclusive, a Súmula 619, a qual previa que “a prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.


Informações Sobre os Autores

Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito pela UNIPAC. Especialista em direito público pela Cndido Mendes. Coordenador de Iniciação Científica e professor do Curso de Direito da FADILESTE

Erivelton Telino Silva de Oliveira

Acadêmico de Direito na da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – FADILESTE


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