Porte de arma de fogo sem munição e a evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal

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Resumo: Este artigo apresenta um breve estudo sobre a tipicidade da conduta de porte de arma de fogo desmuniciada no entendimento do Supremo Tribunal Federal. De forma sucinta, explicita a classificação doutrinária do crime, o princípio da ofensividade para, em derradeiro, apresentar a evolução do tema naquele Tribunal. 

Palavras-chave: ofensividade. Arma de fogo. Desmuniciada. Tipicidade

Abstract: This article presents a brief study on the typicality of the conduit sized firearm desmuniciada the understanding of the Supreme Court. Succinctly explains the doctrinal classification of the crime, the principle of offensiveness to at last, to show the evolution of the subject in that Court.

Keywords: offensiveness. Firearm. Without ammunition. Typicality

Sumário: 1. Estatuto do Desarmamento. 2. Classificação do delito. 3. Princípio da Ofensividade (Lesividade). 4. Teses doutrinárias. 5.  Evolução do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal.

Introdução

Muito se discutiu sobre a tipicidade material da conduta de portar arma de fogo sem munição posteriormente a revogação da súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça. Para os que não recordam mais desse enunciado, relembro que é aquele versa, em síntese, sobre a configuração da majorante de emprego de arma de fogo no crime de roubo. Na ocasião, a súmula foi revogada sob a alegação de que a arma de fogo não apresentaria lesividade para dar azo a causa de aumento de pena.

Os juristas a par da ratio decidendi daquele julgado e atentos ao princípio da Lesividade ou Ofensividade, questionavam sobre a existência, ou não, de lesividade na conduta de portar, iniciando uma grande celeuma.

A doutrina cindiu em duas frentes, uma pugnava pela atipicidade da conduta enquanto a segunda, em sentido oposto, defendia a tipicidade. A oscilação também era verificada nos Tribunais Estaduais. Os Tribunais Superiores, em mesmo sentido, variavam os julgados em ambos as posições.

Nesse contexto, surge o presente trabalho com o escopo de, após a apresentar a teses doutrinárias, classificações do crime e a evolução do posicionamento dos Tribunais Superiores, apontar o atual entendimento desses.

1 Estatuto do Desarmamento ( Lei 10.826/03)

O controle e a fiscalização da propriedade e posse de armas de fogo, recorrentemente, restam em voga na legislação penal obtendo os mais diversos tratamentos com escopo de solucionar problemas sociais. No Brasil não é diferente, no decorrer de sua história adotamos diversos regramentos à questão com o fito de garantir a incolumidade pública.

Na atualidade, a fim de atender às recomendações da Organização das Nações Unidas, emergidas das discussões efetuadas no 9º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado no Egito, em 1995, e, atendendo, à recomendação feita pelo 5º Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Delito e Justiça Penal, em Viena, o Brasil elaborou distinta legislação.

Inicialmente, surge a Lei 9.437/97 que criminalizava as condutas correlatas à posse e propriedade de armas de fogo anteriormente tratadas pelo ordenamento nacional como contravenções além de criar novos tipos penais. Posteriormente, transcorrido quase uma década de vigência, com a aprovação do Projeto de Lei 1.555/2003, foi revogada a Lei 9.437/97 e, em sequência, promulgada a Lei 10.826/03, popularmente conhecida como Estatuto do Desarmamento com importantes modificações quanto à Lei anterior, tornando, sobretudo, mais rigoroso, a autorização para aquisição e obtenção de porte de armas de fogo.

Nessa toada, deu-se o nascimento do art. 14 da Lei 10.826/03 que tipifica, em linhas gerais, a conduta de portar arma de fogo em desconformidade com as determinações legais ou regulamentares, dentre outras.

Impende frisar, por fim, que a tipificação do porte não se iniciou com a Lei 10.826/03, os diplomas anteriores já previam a conduta, todavia, o novo Estatuto do Desarmamento regulou a matéria com mais severidade, assim, ao porte foi dado maiores limitações com penas abstratas mais elevadas, de modo, que, hoje, este é o cenário que se apresenta para estudo.

2 Classificação do delito

Doutrinariamente, os crimes podem ser classificados quanto à necessidade de produção em crimes materiais, formais ou de mera conduta.  Os delitos materiais, sucintamente, são aqueles que carecem de resultado naturalístico, em outras palavras, para sua consumação deverá ocorrer uma mudança no mundo exterior, a exemplo do que ocorre no crime de homicídio o qual não prescinde de resultado natural, qual seja, a morte da vítima (art. 121 do Código Penal). Os crimes formais (de resultado cortado ou de consumação antecipada), a seu turno, conquanto prevejam a ocorrência da um resultado naturalístico, se aperfeiçoam independentemente disso. Interessante ilustração do sustentado é observado no delito de extorsão (art. 158 do Código Penal), pois, neste, o tipo legal prevê a possibilidade de resultado natural decorrente da conduta, qual seja, a obtenção de vantagem econômica, contudo, não o requer para consumação. Por fim, nos crimes de mera conduta o tipo incriminador não prescreve qualquer resultado naturalístico, descrevendo somente a conduta proibida, ilustrando o citado temos o delito do art. 33 da Lei 11.343/06, vez que nesse crime a Lei limita-se a descrever a conduta proibida de portar, transportar, possuir entorpecentes, dentre outras várias, sem nenhuma menção a um resultado.

Os crimes ainda podem ser agrupados em relação a sua materialidade como de dano ou de perigo. As infrações penais de dano são aquelas que exigem para sua consumação efetiva lesão a um bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico. Os delitos de perigo, por sua vez, cingem-se em outras duas classificações: perigo concreto e perigo abstrato. O perigo concreto é aquele verificado, na espécie, no caso real, a suposta situação de perigo criada pela conduta do agente, sendo que sem esta necessária para o aperfeiçoamento do tipo penal, a título de exemplo, temos a infração penal de direção perigosa (art. 309 do Código Trânsito Brasileiro), porque não se pode falar nesse delito se a conduta não gerar perigo de dano. O perigo abstrato, em sentido oposto, não requer a situação de perigo para sua ocorrência, pois, nesse, o perigo é presumido pela Lei sendo suficiente para sua consumação a conduta omissiva ou comissiva subsumida ao tipo legal como verificado, v.g., no crime de direção sob influência de álcool ou outra substância psicoativa nos termos do art. 306 do CTB. 

Relembremos, então, a figura típica contida no art. 14 da Lei 10.826/03, qual seja, “portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Pois bem, a partir da comparação entre as classificações descritas e o tipo penal contido no art. 14 do Estatuto do Desarmamento, nota-se que a figura típica não prevê um resultado naturalístico decorrente da conduta do tipo, bem como não estabelece a necessidade de verificação na hipótese concreta da situação de perigo, logo, certo é afirmar que o delito em exame é, doutrinariamente, denominado como crime de mera conduta e de perigo abstrato.

3 Princípio da Ofensividade (Lesividade)

O princípio da ofensividade ou, para alguns, princípio da lesividade, embora implicitamente previsto na Constituição da República, é importante limitador do ímpeto punitivo estatal. Segundo leciona Rogério Greco ao citar Nilo Batista, o princípio da ofensividade detém quatro funções: (a) proibir a incriminação de uma atitude interna; (b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; (c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; (d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.

Nas irretocáveis palavras do ilustre Doutrinador Rogério Greco (p. 53, 2013): “a adoção do princípio da lesividade buscou-se, também, afastar da incidência de aplicação da lei penal aquelas condutas que, embora desviadas, não afetam qualquer bem jurídico de terceiros. Por condutas desviadas podemos entender aquelas que a sociedade tratar com certo desprezo, ou mesmo repulsa, mas que, embora reprovadas sob o aspecto moral, não repercutem diretamente sobre qualquer bem de terceiros”.

Assim, à luz do lembrado princípio, o Direito Penal só deve se ocupar de reprimir as condutas que, de fato, venham a repercutir na esfera jurídica de outras pessoas, não se ocupando de condutas meramente imorais ou, do ponto de vista social, indesejáveis.

4 Teses doutrinárias

Como dito anteriormente, à época da gênese da discussão, duas correntes concernentemente ao assunto restavam em evidência: (a) a primeira, pugnava pela tipicidade da conduta, vez que o simples fato de existir uma arma de fogo municiada ou não já bastaria para reduzir os níveis de segurança da sociedade, nesta linha Guilherme de Souza Nucci; (b) a segunda, encabeçada por Luiz Flávio Gomes e Willian Terra de Oliveira, em sentido diametralmente oposto, defendia a atipicidade da conduta diante de critérios concretos de averiguação, tais como a disponibilidade e a efetiva ofensividade, dessa maneira, a munição deveria estar pronta para o rápido carregamento, logo, se não houvesse munição disponível não existiria risco a bem jurídico tutelado, assim, à luz do princípio da lesividade, afastada estava a tipicidade material e, por conseguinte, a própria tipicidade, nos termos do conceito analítico de crime.

Assim, para primeira corrente o tipo incriminador prestigiaria a incolumidade pública, bem jurídico intangível, a fim de guarnecer os níveis normais de segurança da coletividade, enquanto a segunda corrente, em apreço ao princípio da lesividade ou ofensividade, não vislumbrava lesividade na conduta, dessa maneira, posicionando-se pela atipicidade quando indisponível estivesse a munição.

5 Evolução do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal

De saída, repisa-se a composição do Supremo Tribunal Federal (STF) no que diz respeito à sua divisão em turmas. O Pretor Excelso é composto por duas turmas (1ª e 2ª Turmas). Essas têm a competência de dirimir quaisquer conflitos oriundos da interpretação do Texto Constitucional. Dessa maneira, só é possível em se falar em pacificação de determinado posicionamento quando ambas as Turmas firmam entendimento em mesmo sentido. Pois bem, passemos à analise do tema.

A Colenda 1ª Turma, no julgamento do RHC 90197 (recurso ordinário em habeas corpus), em 09.06.2009, por maioria de votos, entendeu pela tipicidade da conduta de portar arma de fogo sem munição. No decisium, o eminente Ministro Ricardo Lewandowski, em seu judicioso voto, afirmou que o bem jurídico tutelado pelo art. 14 do Estatuto do Desarmamento transcende a mera proteção da segurança individual, transpassando-a, para alcançar a proteção de todo o corpo social a fim de elevar os níveis de segurança coletiva.  Ainda consignou que os crimes de perigo abstrato têm caráter preventivo visam impedir a produção de determinadas condutas antes de qualquer lesão, de modo, a conferir, maior eficácia a proteção à vida. 

A ínclita 2ª Turma, em 25.08.2009, no julgamento do HC 99449 / MG (habeas corpus), por maioria, no teor do voto do Ministro Cezar Peluso, remetendo ao posicionamento adotado por sua Excelência no RHC 81.057/SP, pugnou pela atipicidade da conduta de portar arma de fogo a partir do cotejo do princípio da disponibilidade, distinguindo duas hipóteses: “(1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em consequência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica”.

Disso restava posta a divergência e, desse modo, a tipicidade ou atipicidade do porte de arma de fogo desmuniciada era determinada conforme o entendimento da Turma que o decidisse.

Todavia, recentemente, em importante decisão do writ 95.073/MS, veiculada no informativo de jurisprudência n° 699, conforme julgamento do dia 19.03.2013, a egrégia 2ª Turma alterou o entendimento sobre o tema em voga para, agora, assentar que a conduta de portar arma de fogo mesmo que desmuniciada é conduta materialmente típica. A Relatora do habeas corpus, Ministra Ellen Gracie, fundamentou que a infração penal em exame é de perigo abstrato prescindível de verificação da ocorrência de perigo à coletividade. Frisou, ainda, que a mens legislatori, na espécie, é punir antecipadamente condutas potencialmente lesivas à coletividade, prevenindo, com isso, a prática de outros delitos oriundos do porte de arma, tais como, roubo, homicídio, lesões corporais, dentre outros.

Conclusão

Do exposto, observa-se que, hodiernamente, o Supremo Tribunal Federal abraçou a primeira corrente doutrinária pacificando a controvérsia para decidir pela tipicidade do porte de arma de fogo sem munição, isso, alicerçado na natureza jurídica do crime e na diminuição dos níveis de segurança da sociedade, ao menos enquanto permaneça com a mesma composição de seus membros.

 

Referências
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BRASIL. Estatuto do Desarmamento. Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Diário Oficial, Brasília, 23 dez. 2003.
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Informações Sobre o Autor

Leonardo Teixeira de Queiroz

Bacharel em Direito. Pós-graduando em Direito Público. Advogado Criminalista


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