A reserva do possível, a hermenêutica e os princípios da razoabilidade e proporcionalidade na efetividade do direito fundamental à propriedade

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Resumo: O direito, enquanto corpo sistêmico e ordenado, particularmente em sua normativa infraconstitucional tem sido objeto de um permeio principiológico que dá esteio ao fundamento do que se conhece por constitucionalização plena do direito. Ao estabelecer o legislador constituinte uma série de direitos sociais, em um extenso rol, impôs ao Estado o dever prestacional desses direitos, num plano de eficácia vertical que, não raras as vezes, não atingem o seu final ante a conduta omissiva perpetrada por esse mesmo Estado. Essa conduta omissiva é decorrente tanto da falta de recursos humanos e materiais quanto de vontade política de implemento de políticas públicas. De outra sorte, a efetividade desses direitos sociais –  em especial a propriedade enquanto integrante de um dirieto mínimo existencial conducente à dignidade da pessoa humana – mostra um ativismo de política jurisdicional permitido tanto por princípios hermenêuticos, quanto pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que permitirá, ao fim e ao cabo, a efetividade desse direito fundamental no plano de eficácia vertical.

Palavras-Chave: Direitos Fundamentais. Propriedade. Razoabilidade. Proporcionalidade. Reserva do Possível.

Resumen: La ley como órgano sistémico y ordenado, sobre todo en sus normas de infraestructura ha sido objeto de un apoyo principal principiológico entremezclado dar el fundamento de lo que se conoce como plena constitucionalización del derecho. Al establecer el legislador constituyente de una serie de derechos sociales, de una larga lista, el Estado ha impuesto la obligación prestacional de estos derechos, en un plano vertical eficacia, no son raros y muchas veces no llegan a su final contra la omisión cometida por la misma conducta Estado. Esta omisión se debe tanto a la falta de conducta humana y material que la voluntad política de aplicar recursos de la política pública. De otra suerte, la efectividad de estos derechos sociales – en particular, la propiedad como una parte integral de un mínimo existencial dirieto conducente a la dignidad humana – muestra la política judicial activismo permitido ambos principios hermenéuticos, y los principios de razonabilidad y proporcionalidad , que será al final del día, la efectividad de este derecho fundamental del plan eficaz vertical.

Palabras clave: Derechos Fundamentales. Propiedad. Razonabilidad. Proporcionalidad. Reserva de lo Posible.

Sumário. A eficácia pela hermenêutica da aplicabilidade. A colisão de direitos fundamentais e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.. A aplicação do Princípio da Proibição da Proteção Deficiente (Üntermasverbot) como parâmetro do princípio da proporcionalidade. A reserva do possível – limites fáticos e jurídicos à efetividade dos direitos fundamentais. Considerações Finais

Introdução

Os direitos fundamentais, como visto, apresentam-se como direitos sociais que podem ser fracionados em direitos prestacionais e direitos abstencionais.

Na primeira hipótese, quando se está diante de direitos prestacionais de conduta ativa, são todos aqueles direitos em que o destinatário da norma tem, em tese, o dever da prestação e, portanto, tem alguma relevância econômica.

Já a segunda hipótese, o destinatário da norma tem, também em tese, o dever de abstenção e, assim, sem relevância econômica. São os deveres abstencionais, ou direitos de defesa dirigidos à conduta omissiva por parte do destinatário da norma.

Identificados os direitos fundamentais surge, pari passu, o problema pontual da eficácia desses direitos fundamentais no que tange à, pontualmente, fonte dessa eficácia e as consequências daí possíveis.

Parece evidente que a eficácia de uma norma de direito fundamental é determinada pelo interprete da norma, tanto sobre sua aplicação quanto sobre sua eficácia propriamente dita.

Basta, nesse sentido, estabelecer que a eficácia é da norma e não do princípio, leitura que se faz do artigo 5º, parágrafo primeiro, da Constituição da República[1].

O afastamento, portanto, da aplicabilidade direta é dizer que cabe ao legislador dizer quando aplicável ou não a cogência da norma de direito fundamental.

Ora, seria desarrazoado aceitar, assim, que cumpre à criatura determinar a eficácia dos direitos postos pelo criador sendo equivocado o posicionamento nesse sentido por parcela doutrinária acerca da eficácia imediata limitada dos direitos fundamentais, obstada essa pela vontade do legislador infraconstitucional.

Salvo profundo engano, mas todas as normas constitucionais tem de ter alguma eficácia, segundo leciona José Afonso da Silva[2], seja essa eficácia plena ou limitada. Não falava o doutrinador de norma de eficácia contida. É que as normas de direito fundamental são suficientemente densas de modo a permitir que o juiz possa aplicar ao caso concreto, quando se diz da eficácia plena e, de outro lado, as que tem alguma eficácia mas os efeitos principais dependem de legislação infraconstitucional, apontadas como normas de direitos fundamentais limitadas, sendo nominadas por parcela da doutrina como meras normas de integração.

É importante referir que as normas de eficácia contida, citadas por José Afonso da Silva, tendo por fundamento a doutrina italiana, diz que são normas em que a constituição remete a lei, que seriam normas de eficácia plena, plenamente aplicáveis, mas por expressa disposição do constituinte, o legislador esta autorizado a restringir a sua aplicabilidade.

São, portanto, uma modalidade de normas de eficácia plena. É o que o direito comparado trata por `reserva de lei`.

Inobstante isso, é importante estabelecer que, de modo geral as normas de direitos fundamentais são de aplicação imediata e eficácia direta. A que assegura o direito tem alguma eficácia limitada. A que prevê o dever, é de aplicação imediata pelo juiz.

Posta essa premissa introdutória, e sem adentrar ao seu mérito, é importante referir que desde o reconhecimento dos direitos fundamentais sociais, foi expressamente previsto que ao Estado caberia a obrigação de garantir aos seus cidadãos um mínimo de condições essenciais exigidas para a sua existência com dignidade.

Ao mesmo tempo, como não poderia ser diferente, em razão destes direitos exigirem uma prestação positiva estatal, surgiu também a discussão acerca dos limites das obrigações que devem ser cumpridas e de que forma o Estado deve implementá-las.

É evidente que qualquer direito fundamental é submetido a limites, como por exemplo a reserva do possível e o conflito de normas de direito fundamental, dizendo que o juiz precisará analisar e ponderar os limites do dever de aplicação imediata.

Diante disso, é possível inferir que a eficácia passa a ser, em uma primeira análise, matéria de hermenêutica principalmente se analisado pelo extenso cartel de direitos fundamentais propostos pela constituição federal, heterogêneo ao extremo para, após essa análise hermenêutica, aferir-se da eficácia dos direitos fundamentais permeando-se essa eficácia dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Passemos, pois à esse enfrentamento.

1. A eficácia pela hermenêutica da aplicabilidade

Hans Georg Gadamer, em sua célebre obra Verdade e Método (1960) estabelece três planos de interpretação hermenêutica. O primeiro plano trata do procedimento hermenêutico, ou seja, como ele próprio diz, “do ato interpretativo”, o segundo plano trata da intepretação como tarefa infinita e, no terceiro plano, da alteridade do objeto sujeito à hermenêutica.

No primeiro plano, diz que “quem procura compreender está exposto aos erros derivados de pré-suposições que não encontram confirmação no objeto.” Ou seja, o erro derivado de pré-suposições é uma das duas opções possíveis do enfrentamento hermenêutico e ele faz parte, assim, da atividade de interpretação em si.

Menciona Gadamer que o interprete não se aproxima do texto com a mente semelhante a uma tábua rasa, mas com suas pré-compreensões, entendidas essas como o círculo hermenêutico que ele mesmo procura definir como aquelas circunstâncias que o indivíduo absorve ao longo de sua vida (da linguagem comum, das leituras, de conversas, do que ouviu de outros, dos professores, etc.).

A esse conjunto denominou de “círculo hermenêutico” e afirmou:

“a compreensão de um texto realiza-se propondo hipóteses sobre aquilo que o texto dia, sobre o seu significado ou mensagem, hipóteses a serem colocadas no crivo sobre o texto e o contexto; e se nossa interpretação se choca com o texto ou o contexto, isto é, se for contradita por alguma parte do texto ou do contexto, devemos propor outra; e assim por diante, teoricamente ao infinito, mesmo que na prática nos detenhamos, vez por outra, na interpretação que parece adequada, de acordo com os fatos conhecidos.”

E passa, em decorrência, a dizer que o intérprete se aproxima do texto com a sua pré-compreensão, com seus juízos valorativos próprios.

Como se vê, o processo hermenêutico, o ato de interpretação passa necessariamente por uma análise pelo interprete sob o efeito de suas pré-compreensões, suas pré-análise, seus pré-conceitos, trazidos de sua vida, de suas experiências, de suas pesquisas, de seus estudos.

O próprio Gadamer refere que o autor de um determinado texto, de um determinado estudo, de uma determinada pesquisa e seus relatos é apenas um “elemento ocasional” pois, segundo refere, “uma vez gerado, um texto tem vida própria”, razão do terceiro plano hermenêutico anteriormente citado, no sentido de que um texto, em análise hermenêutica, passa sofre efeitos históricos desde sua concepção e publicização até o ato hermenêutico, afinal “a história dos efeitos de um texto sempre determina mais plenamente o seu sentido”, fundamento da afirmativa de que um historiador vê melhor a teoria do que o cientista, pois a vê com os efeitos produzidos.

É interessante ver, ademais, que as experiências hermenêuticas mostram-se melhor apresentadas que as advertências advindas de processos interpretativos anteriores, mas esse processo de acertos e erros faz-se necessário e salutar pois, como afirma Roberto J. Brie[3]a trabajar se aprende trabajando, a pensar se aprende pensando, con rigurosidad y capacidad propia de juicio.’

Como refere Gadamer:

“Interpretar não é apenas compreender. A interpretação consiste em mostrar algo: ela vai ‘do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação, à sua ‘ilustração’ ou à sua inserção na vida’ (Ortigues 1987/220; na interpretação dos fatos, ao contrário, vai-se do concreto ao abstrato, da experiência à linguagem). A interpretação, pois, consubstancia uma operação de mediação que consiste em transformar uma expressão em outra, visando a tornar mais compreensível o objeto ao qual a linguagem se aplica. Da interpretação do texto surge a norma, manifestando-se, nisso, uma expressão de poder, ainda que o intérprete compreenda o sentido originário do texto e o mantenha (deva manter) como referência de sua interpretação.”(Gadamer 1991/381)”.

É que é preciso ver, em verdade, que somente a partir de uma interpretação criativa, o direito é avaliado criticamente e é capaz de produzir transformações em si mesmo e no mundo. Do contrário não passa de mera leitura, despreocupada e irresponsável.

Ainda Gadamer:

“quem quiser compreender um texto deve estar pronto a deixar que o texto lhe diga alguma coisa, por isso a consciência educada hermeneuticamente deve ser preliminarmente sensível à alteridade do texto. Tal sensibilidade não pressupõe uma neutralidade objetiva nem um esquecimento de si mesmo, mas implica uma precisa tomada de consciência das próprias pressuposições e dos próprios preconceitos.”

Juarez Freitas[4] estabelece um novo paradigma na tarefa de interpretar textos jurídicos ao sustentar que a sua interpretação sistemática, hierarquizadora e finalística.

Daí decorre a necessária e presente sistematicidade do ato interpretativo crítico, como “imperativo principiológico que imprime unidade sistemática aos fins jurídicos” pois, sustenta “a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação”. (Freitas)

Portanto, a inevitável e imprescindível interpretação dos fatos sociais e sinais deles decorrentes, como também, a partir da organização social, a interpretação de textos que normatizam condutas, prescrevendo-as ou as proibindo. E é justamente esse o papel do Juiz, enquanto interprete do sistema de direito sociais, qual seja, de provedor, ao fim e ao cabo, de eficácia vertical aos direitos fundamentais, retirando-os do plano principiológico e trazendo-os ao mundo concreto, mediante sua posição de interprete da norma diante de suas pré-compreensões.

Inobstante isso, não há como se perder de vista que a prestação reivindicada de direito fundamental deve corresponder ao que de maneira razoável se pode esperar e exigir por parte do Estado. Ou seja, como ensina a Corte Constitucional Alemã, “não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável” (Sarlet), ou seja, a “reserva do possível” que compreende, de um lado, a possibilidade da prestação quanto, de outro lado, o poder de disposição por parte do destinatário da norma.

Ensina Ingo Sarlet[5] que:

“há como sustentar que a assim designada reserva do possível apresenta pelos menos uma tríplice dimensão, que abrange: a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial, no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da razoabilidade.”

Diante disso, não é possível perder de vista que a eficácia vertical dos direitos prestacionais fundamentais encontra um limite fático-jurídico presente, em tese, no binômio possibilidade-interesse por parte do destinatário da norma o que torna a exigibilidade subordinada, ou pelo menos vinculada, ao princípio da razoabilidade que deve ser aplicado pelo Juiz ao caso concreto.

2. A colisão de direitos fundamentais e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

Em um breve apanhado histórico, o princípio da razoabilidade tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido processo legal, instituto ancestral do direito anglo-saxão, onde na sua evolução, a partir do direito norte-americano o instituto evoluiu da garantia processual à material, viabilizando ao judiciário controlar o mérito dos atos do poder público, movimento designado de substantive due process .

Sem adentrar na discussão da gradativa inserção histórica do devido processo legal substantivo e sua afirmação, cabe referir as palavras do constitucionalista Luís Roberto Barroso[6]:

‘De toda sorte, a cláusula enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes estas condições se poderá admitir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade.’

É, fundado em princípios de justiça e liberdade, que se arrima o principio constitucional da razoabilidade que se insere como o instrumento do Poder Judicante de valoração dos atos do poder público, daí sua, mutatis mutandis, equivalência aplicada pela doutrina e jurisprudência com o princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, mostra-se bastante evidente que esse não se da in abstrato, logo, a atuação do Estado na produção de normas jurídicas se fará diante do caso concreto e será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios.

Nessa senda:

‘Deste modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além disto, há de se tomar em conta, também, os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver entre estes elementos’.[7]

Esta razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins.

Aí está incluída a razoabilidade técnica da medida.[8]

Uma situação bastante pontual, que serve de exemplificação, é referente aos limites do exercício da propriedade em face do dever prestacional de proteção ao patrimônio cultural em razão da memória em que determinadas situações fáticas de utilização do bem servem de motivos, enquanto que os fins estão subsumidos no dever de proteção do patrimônio cultural por razão de memória, preservando a história que deu início ao balneário, todavia os meios encontram uma desproporção, pois a manutenção da Memória tem preço e, em certa medida, limitado pela inércia do Poder Público seu obrigado principal, especialmente, em tomar as medida legais (inventário, tombamento ou registro e etc.) ou mesmo financiar a proteção, a fim de legitimar ao proprietário a garantia plena de seus direitos, também constitucionais, como a propriedade, a liberdade e livre iniciativa e, no caso, também o contributo ao desenvolvimento econômico da região através do turismo.

Notadamente, no caso, existe uma adequação razoável entre estes valores fundamentais, pois a exploração comercial do bem e/ou seu entorno sem alterar as características do imóvel e ainda lhe propiciando o investimento necessário para manutenção seria, na hipótese, por si só, capaz de atingir o objetivo da preservação do patrimônio cultural!

Porque a realidade é bem mais rica que a ficção, a inexistência material de recursos ou até mesmo a inércia do Poder Público, quiçá até mesmo a desídia dos proprietários quando da restrição administrativa de patrimônio cultural ou histórico tem levado a depreciação, depredação, dilapidação e até o perdimento dos bens, justificam a relativização do princípio protetivo, colocando-o em rota de colisão com a proporcionalidade e razoabilidade da conduta.

Vale dizer, pois, da “máxima da proporcionalidade”, segundo Alexy[9], na hipótese, que se apresenta sob a observação de três condições, cuja averiguação é prejudicial, a necessidade (meio mais benéfico ou menos oneroso para o cidadão), adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

Nesse sentir, não se sustentaria a pretensão protetiva enquanto essa colidisse com o fim almejado, visto que subsumida ao dever de verificar pela necessidade conformadora da pretensão, em outras palavras, se a pretensão se verificará pelo meio menos gravoso, através do princípio da menor ingerência possível no agir.

Na hipótese, em sendo concebível que a pretensão poderia ser praticada em nível de menor onerosidade ou ingerência na vida do cidadão, se estará diante da falta da razoabilidade da pretensão protetiva em tese e que não pode ser abrigada pelo Poder Judiciário, o qual tem a maior legitimidade para aferição deste parâmetro valorativo.

Mas não se para ai. É que uma vez transpostas as condições anteriores, ainda devera enfrentar a ocorrência do terceiro requisito, qual seja, a “proporcionalidade em sentido estrito”, consistente na análise de contrastar a justificativa da pretensão protetiva perante o ordenamento jurídico, especialmente quando se tratar de restrição de direitos, como é o caso da propriedade, livre iniciativa e, porque não, de liberdade.

Nitidamente se está diante de uma colisão de direitos fundamentais: de um lado o direito à memória proporcionado por um bem dito de valor cultural latu sensu (art. 215 e 225, CF/88), compreendido pelo meio ambiente sustentável em de outro lado, o direito à propriedade e a livre iniciativa (arts. 1º, IV, art. 5º, XXII e XXIII, art. 170, todos da CF/88), já limitados pela função social e pelos deveres positivos e negativos que acompanham ‘as limitações administrativas’.

E como se tem estudado, a discussão é profunda, pois em se tratando de colisão de direitos fundamentais insolúvel pelos métodos tradicionais subsuntivos, terá o Magistrado que valer-se dos métodos contemporâneos a fim de sopesar todas as circunstâncias do caso concreto, os direitos fundamentais em colisão e as consequências jurídica de uma ou outra resposta constitucionalmente adequada, trata-se literalmente, como assevera R. Dworkin[10] de um ‘hard case’.

Não se questiona o dever do Poder Público e da coletividade o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado conforme assegura o art. 225 da CF, compreendido aí, o meio ambiente cultural como subcategoria do direito ambiental.

Outrossim, não se pode olvidar o direito à propriedade já limitadas socialmente pela necessidade de parcelamento utilização e/ou edificação na forma da lei para fins urbanos e rurais e, sob o qual, agora também pesa o ônus de preservar para a contemplação pública sob o sacrifício particular e mesmo à livre iniciativa, como fonte complementar às ações estatais.

Em razão disso, mostra-se evidente que essa colisão de direitos fundamentais é patente e, na busca da solução constitucionalmente adequada, cumpre ao Juiz valer-se da razoabilidade/proporcionalidade para que, na impossibilidade de inconstitucionalidade, considerar fatos, fins e meios que emergem do caso concreto, para a, então, aplicação da eficácia de um direito prestacional fundamental.

3. A aplicação do Princípio da Proibição da Proteção Deficiente (Üntermasverbot) como parâmetro do princípio da proporcionalidade

No caso dos imóveis de interesse histórico cultural, há de ponderar-se, também, que se revela desarrazoado no sentido principiológico-material constitucional exigir do proprietário a não-utilização, ou utilização precária, à título da preservação. Não se está afirmando, porém, que a utilização pode ser irresponsável no sentido em que se permita a degradação do patrimônio. A propriedade, na espécie é sim relativizada pela função social, passando aqui à analisar-se essa função tomando por base os critérios socioculturais atinentes.

É necessário, todavia, quando a utilização do imóvel quando essa utilização se mostra como o instrumento que viabiliza o sustento da preservação cultural ante a omissão estatal. E, nessa senda, se está a evocar a instrumentalização formal da Constituição e relevando a instrumentalização material ao ‘locus’ da irrealidade, pois é sabido que os poderes públicos constituídos não dispõem de condições materiais de sustentar esse tipo de garantia constitucional.

E essa omissão do destinatário da norma encontra-se residente justamente na reserva do possível, que se apresenta tanto pela omissão voluntária – ante a eleição política da conduta – ou pela omissão involuntária decorrente da ausência de recursos humanos e materiais à implementação da prestação do direito fundamental.

É evidente que esse direito prestacional é relevante, mas não se pode perder de vista que tem um custo, ou seja, possuem uma dimensão e relevância econômicas e, diante disso, se a política do poder publico não é materialmente efetiva, como no Brasil não o é, justamente porque existem outras prioridades mais emergentes, não se pode exigir do particular/cidadão uma contrapartida de alto nível.

Assim, ante essa omissão política, voluntária ou não, apresenta-se uma verdadeira proteção deficiente de um direito fundamental e que não pode ser transferida ao cidadão porque é ônus do Estado incentivar e apoiar a proteção como preconiza o art. 215 da CF/88 enquanto principal gestor do interesse coletivo.

Nesse sentido, leciona Lenio Streck[11]:

“… não se pode tirar o valor da discussão e tampouco negar o avanço que a discussão acerca do princípio da proporcionalidade no âmbito do Estado Democrático de Direito. Assim, é possível afirmar, com base em doutrina que vem se firmando nos últimos anos, que a estrutura do princípio da proporcionalidade não aponta apenas para a perspectiva de um garantismo negativo (proteção contra os excessos do Estado), e, sim, também para uma espécie de garantismo positivo, momento em que a preocupação do sistema jurídico será com o fato de o Estado não proteger suficientemente determinado direito fundamental, caso em que estar-se-á em face do que, a partir da doutrina alemã, passou-se a denominar de "proibição de proteção deficiente" (Untermassverbot). A proibição de proteção deficiente, explica Bernal Pulido, pode definir-se como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode determinar-se se um ato estatal – por antonomásia, uma omissão – viola um direito fundamental de proteção.’

Isto quer dizer que se deve olhar aos direitos fundamentais sob uma dupla face: a face proteção positiva e a proteção contra omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, como também por deficiência na proteção.

Nitidamente existe uma deficiência do Estado na proteção do patrimônio cultural ao não incentivar e apoiar, nos termos do art. 215 da CR/88, ou ainda por não promover e proteger, nos termos do art. 216, § 1º, da CR/88, o patrimônio artístico e cultural, ainda que de propriedade privada que, num contrasenso, impõe ao particular o sacrifício da liberdade de iniciativa e o direito de propriedade dos cidadãos, fazendo concluir que, de fato, que a efetividade desse direito social prestacional por parte do Estado é deficiente.

Não se pode, portanto, olvidar como diz Lenio[12] citando Alfreto Baratta da obrigação do novo Estado de dar resposta para as necessidades de segurança de todos os direitos, incluindo-se nesse rol também os prestacionais por parte do Estado (direitos econômicos, sociais e culturais) e não somente daquela parte de direitos denominados de prestação de proteção, em particular contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de determinadas pessoas.

É um direito que todo cidadão tem de não ver um direito fundamental ‘derrogado’ por conta da deficiência do ordenamento jurídico.

Também serve de paradigma a doutrina de Ingo Sarlet:

"A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que abrange, (…), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados."[13]

E continua:

"A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo menos habitual do termo)."[14]

Portanto, o Estado Democrático de Direito, não exige mais somente uma garantia de defesa dos direitos e liberdades fundamentais contra o Estado, mas também, uma defesa contra qualquer poder social de fato que não por não dar a sua contrapartida forma e material para concretização do imperativo constitucional não poderá limitar por outro lado quaisquer outros direitos do cidadão, mormente os consignados nos arts. 1º, IV, art. 5º, XXII e XXIII, art. 170 da Carta Constitucional vigente.

Segundo Maria Luiza Schafer Streck[15]:

‘estamos falando, então, nas palavras de Dieter Grimm, da proibição de "ir longe demais" (Übermassvebot), em contraponto com a proibição de "fazer muito pouco" (Untermassverbot), ambos mecanismos semelhantes, porém, vistos de ângulos diferentes. Daí que "quando um direito é invocado como direito negativo a questão é saber se o legislador foi longe demais. Quando é invocado como direito positivo ou dever de proteção (Schutzpflicht); a questão é saber se ele fez muito pouco para proteger o direito ameaçado". Assim, só haverá a possibilidade de se reconhecer a proibição de proteção deficiente quando se estiver face a um dever de proteção, isto é, para explicar melhor, a Untermassverbot tem como condição de possibilidade o Schutzpflicht..’

A verdade é que, quando se está diante de um direito de propriedade, relativizado é verdade desde a mudança implementada no seio do direito privado no início do século XX, com a sua repersonificação ou despatrimonialização, como fruto sociológico bastante presente ao final da segunda guerra mundial em que se passou a perceber que o ser humano era e é o primordial bem a ser centro do direito privado, reconhecendo-o como o efetivo destinatário da proteção estatal, somando-se à situação fática de que esse direito de propriedade pode ser contaminado por certo grau de importância artística ou cultural, não resta dúvida que se está diante de um dever de proteção desse patrimônio cultural.

Porém, também é verdade que o que estamos, enquanto Estado, fazendo, ou mesmo pelo que já se fez, pensar em exigir do cidadão que se abstenha do exercício dos seus direitos, quando, propriamente esse dever negativo militará contra àquilo que propriamente o Estado pretendia defender é uma inversão hermenêutica que não se sustenta.

E tal assim se apresenta porque, se o Estado enquanto destinatário da norma não viabiliza da supremacia material da Constituição através efetiva do patrimônio cultural (entenda-se que não é só programa de restauro e dinheiro público, mas também o devido processo legal para reconhecimento, as medidas legais de preservação, profissionais habilitados e um programa permanente de preservação – políticas públicas), não se mostra arrazoado que imponha esse dever, única e exclusivamente, ao titular do direito material da propriedade em favor da coletividade.

Se o Estado deixou de ser o único obrigado à observância e não violação dos direitos fundamentais, restando obrigados também os indivíduos entre si e em relação à coletividade, não menos razão há para estabelecer que o dever (ou prestação) de tutela à pretensão protetiva deva ser estendida também aos indivíduos e isso porque de muito vem reconhecido o duplo panorama de eficácia dos direitos fundamentais, quais sejam, a eficácia vertical, representativa da obrigação do Estado para com os indivíduos; e a eficácia horizontal, a revelar que os indivíduos estariam obrigados entre si ao respeito aos direitos fundamentais uns dos outros e da coletividade.

Diante disso, se torna materialmente imperativo que ao dar-se efetividade ao dever prestacional seja ponderada a proteção deficiente do direito à memória revelada pelo patrimônio cultural e, por conta disso, proibir, leia-se, deixar de aplicar a preservação na forma da pretensão protetiva em benefício de não restringir outros direitos e liberdades fundamentais (propriedade e livre iniciativa) do titular do direito material primando-se pela máxima aplicação do principio da proporcionalidade e interpretação conforme a constituição.

4. A reserva do possível – limites fáticos e jurídicos à efetividade dos direitos fundamentais.

Como visto, os direitos fundamentais, sejam os prestacionais ou os abstencionais, são direitos sociais gestados em prol do ser humano em face do Estado e, por assim dizer, integram parâmetros mínimos do existencial.

Mas não só ai. Também são direitos sociais previstos para um mínimo existencial digno e, nessa senda, não são somente produzidos para a defesa do indivíduo em face do Estado mas também em face dos demais pares sociais e até dos Estados Estrangeiros.

Conforme leciona R. Alexy:

“os direitos fundamentais são substancialmente direitos do homem transformados em direitos positivos. Tais direitos exigem a sua institucionalização. Se existem direitos do homem, não há somente um direito à vida, mas também um direito do homem a um Estado que realize este direito.”

Ocorre que esses direitos fundamentais, por vezes, não são concretizados ante a omissão do Estado, destinatário da norma.

O que importa, assim, é saber se o Estado não age, impedindo a eficácia dos direitos fundamentais – ou pelo menos fazendo com que essa efetividade ser perca traduzindo-se na impossibilidade de sua fruição – por culpa decorrente da falta de vontade política para implementação ou por falta de recursos materiais e humanos para sua implementação.

Na lição de Sarlet:

“A reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar, na invocação – observados sempre os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.”

E não é por outra razão que se reporta, novamente, à premissa básica da Corte Constitucional Alemã quando essa firma entendimento de que o direito prestacional vindicado deve ter relação – portanto retroalimentado – ao que se encontra dentro da razoabilidade de exigência social.

Vale dizer, a eficácia vertical dos direitos fundamentais encontra sua razão existencial justamente nessa ponderação da razoabilidade.

Ferrajoli[16] refere que a propriedade não é um direito fundamental, contrapondo a originária tese defendida por Locke[17], que a inclui dentre os direitos fundamentais. Porém a posição crítica de Ferrajoli não se sustenta.

Ocorre que ao utilizar a vinculação dos direitos fundamentais à universalidade de direitos enquanto a propriedade estaria, em tese, vinculada a singularidade de direitos em razão de que não só os direitos patrimoniais têm seus aspectos singulares. Sequer se sustenta a tese da alienabilidade dos direitos patrimoniais, característica que não reside nos direitos fundamentais justamente porque estes não são totalmente inalienáveis. Basta ver, nesse sentido, o “direito de arena” de um desportista que nada mais é do que a alienação da imagem – direito de personalidade – ou da privacidade, direitos notadamente fundamentais e como tais previstos na CR/88.

Quiçá, ao final, se sustenta a teoria de Ferrajoli de que os direitos fundamentais são verticais e os direitos de propriedade são horizontais pois, como mostrado, a eficácia dos direitos fundamentais se planifica de forma vertical, como medida protetiva do indivíduo em face do estado e de forma horizontal, como medida protetiva do indivíduo em face de seus pares sociais.

Por isso, sendo a proteção do direito à propriedade um direito fundamental, vale dizer que esse direito, como todos os demais, independente da sua fundamentalidade, não se mostra absoluto, sofrendo restrições, tal como o direito à liberdade e à própria vida, na sua proteção.

E essas restrições ao direito de propriedade estão plenamente previstas tanto na lei quanto da Constituição, valendo dizer que nenhum direito fundamental mostra-se absoluto, podendo ser sacrificado para a proteção de diversos direitos fundamentais.

Nesse cenário, vale referir, essa eficácia de direito fundamental da propriedade encontra vínculo maduro com primados hermenêuticos de proteção e aplicabilidade, calcados, quando da colisão com outros direitos fundamentais, pela primazia dos princípios da Razoabilidade e da Proibição da Proteção Deficiente como parâmetro de um outro princípio, o da Proporcionalidade pois, como dito a obrigação prestacional se sustenta dentro dos parâmetros da razoabilidade que, na sua interpretação, é dependente da ponderação legislativa e judiciária ante a ausência de uma solução posta pela própria Constituição em razão.

Se é fato que as bases do direito privado estão, de fato, na propriedade, na liberdade contratual e no direito hereditário como marcos, assim, de uma sociedade liberal, não menos verdade o é que esses primados deixaram de ser absolutos e passaram à plena relatividade como fruto da necessidade de sustento de uma sociedade mais solidária.

Na nota evolutiva societária, o homem perde seu referencial de contratante, marido, testador e proprietário, características bem presentes em sua função insculpida no Diploma Civil de 1916 que vai alterar-se significativamente a contar do final da Segunda Guerra Mundial,

Com a segunda guerra mundial, os doutrinadores passaram a observar que a razão de ser do direito não poderia mas ser o “ter”, ou seja, a importância do ser humano pré segunda guerra mundial estava atrelada às suas posses e portando às suas propriedades, inclusive assim estando divididas as classes sociais.

De verdade, é ao final da segunda guerra mundial que passa-se a uma nova leitura do direito, não que isso não fosse notado já antes desse recorte histórico, mas é que a partir dai fica bastante presente que o principal objetivo da lei não é proteger o que o ser humano tem, mas sim proteger o que o ser humano é.

É o que refere a doutrina de Nelson Rosenvald[18] pela despatrimonialização do direito privado, ou seja, o direito privado deixa de ter o foco patrimonial e passa a ter foco no ser humano, ou seja, a dignidade da pessoa humana que passa, de fato, a ganhar natureza de princípio primordial no plano constitucional somente a contar da segunda guerra mundial.

A dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral que fundamenta e efetiva todos os direitos fundamentais.

George Walter, apud Facchini[19], ensina que “as cláusulas gerais constituem brechas através das quais os direitos fundamentais conseguem ingressar no direito civil”.

Como bem se pode ler da doutrina de Flávio Tartuce, ”A proteção da pessoa é uma tendência marcante do atual direito privado”.

E de fato, no atual sistema jurídico, particularmente no direito privado a contar do constitucionalismo social que passa a estabelecer uma nova limitação à vários institutos que, outrora, marcavam-se como absolutos, à exemplo da autonomia da vontade e da propriedade, o que fica bastante claro a contar da necessária concretização dos princípios constitucionais de solidariedade social e da dignidade da pessoa humana. Abandona-se a ética do individualismo pela ética da solidariedade, na lição de Facchini Neto.

Por outro lado, também é bastante presente que tem certas pessoas que tem condições de defender tais direitos e outras não e ai deve entrar o Estado com uma função retributiva para reequilibrar o direito induzindo à conclusão de que a contar da segunda metade do século XX, pelo ordenamento civil-constitucional então vigente, deve ser adotado sob uma perspectiva protetiva da dignidade da pessoa humana inclusive, com o estabelecimento de um patrimônio mínimo ao cidadão, como forma de inserção digna do cidadão na sociedade, dando-lhe condições de subsistência como saúde, alimentação, educação e vestuário, direitos personalíssimos e não simples objetivos políticos.

E, se efetuada análise pormenorizada da construção sistêmica legal, deparamo-nos com dispositivos, ou mesmo diplomas inteiros, os quais dão início, antes mesmo do texto constitucional, à tal proteção, ou melhor, à repersonificação do direito civil,

Veja-se o Instituto do Bem de Família, a lista dos bens impenhoráveis do CPC – art. 649, o Código de Defesa do Consumidor, dentre outros tantos.

Todos estes dispositivos e diplomas são fruto da necessidade do restauro da primazia da pessoa sobre a propriedade, o estabelecimento de normas jurídicas que devam atender ao bem comum e aos reais destinatários da norma posto que o direito positivo deva ser construído mediante regras ao serviço das pessoas.

A Carta Magna, em seus princípios, não somente consagrou a dignidade da pessoa humana.  Foi mais além e estabeleceu como meta básica da sociedade brasileira a solidariedade social e a erradicação da pobreza. Assim, norteou o direito privado para a despatrimonialização do direito privado, colocando a pessoa no centro da análise jurídica.

É necessário, todavia, afirmar que tal despatrimonialização não quer dizer desimportar a propriedade, pois o próprio texto constitucional, em vários dispositivos, consagrou também a importância da propriedade. Apenas assentou princípios de que o patrimônio não é a razão da relação jurídica, senão que a pessoa humana, dizendo que o vínculo de direito existe por causa das pessoas e não do patrimônio e em face delas é que deve criar, extinguir ou modificar-se direitos.

De fato, a despatrimonialização das relações jurídicas em atenção ao princípio da função social dos institutos jurídicos, onde a aplicação das normas privadas deve observar, na sua interpretação, os princípios e objetivos constitucionalmente previstos – proteção e dignidade da pessoa humana, solidariedade social, busca da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais – ética humanitária.

Porém, a realidade é muito mais rica e demonstra que é impossível a satisfação de todos os anseios e necessidades da sociedade de maneira simultânea. Esse limite justifica a reserva do possível como – já dito – espécie de limite jurídico e fático à prestação.

Como pondera Ingo Sarlet:

“É justamente por esta razão que a realização dos direitos sociais prestacionais – de acordo com a oportuna lição de Gomes Canotilho – costuma ser encarada como autêntico problema de competência constitucional: ‘ao legislador compete, entro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais”

Todavia, a efetividade do cumprimento desse dever ao legislador reconhecido por Canotilho na citação de Sarlet, encontra, além de tudo, outro fator relevante que é a vontade política o que irradia-se numa postura administrativa do Estado de forma a obstar esse dever prestacional ora pela ausência de recursos humanos e materiais e ora pela ausência, efetiva, da vontade política propriamente dita o que sempre leva à consideração de que, se efetiva a impossibilidade da prestação, até que ponto essa impossibilidade tem o condão de impedir a tutela desses direitos fundamentais ?

Pois bem, e sem a pretensão do esgotamento da matéria, até porque aqui seria isso impossível, mas quer parecer que o questionamento não pode ficar sem resposta, ainda que no plano da hipótese.

De início, é imperioso que se estabeleça que é dever do Estado a criação ou fomento para a criação por terceiros, de órgãos aptos a atuarem na tutela dos direitos e a criação de procedimentos organizacionais  adequados à proteção e promoção desses direitos fundamentais, em particular, a defesa da propriedade enquanto integrante de um patrimônio mínimo existencial, assecuratório da dignidade da pessoa humana, princípio portal da Constituição Federal.

Essa postura ativa do Estado exigível pelo cidadão tanto poderá ser empreendida no plano legislativo quanto no plano judiciário.

Como refere Ingo Sarlet[20]O problema está em se saber se se pode exigir do Estado a emissão de atos administrativos e legislativos capazes de assegurar um devido processo e a tutela jurisdicional efetiva aos direitos fundamentais.”

E a solução, nesse sentido, também é plantada pelo Professor que assevera:

“convém não olvidar que a maior ou menor intervenção judicial também na esfera processual se enquadra num contexto maior de uma política dos direitos fundamentais, do qual o Poder Judiciário não poderá ser afastado. Pelo contrário, é preciso apostar – como sustentam Carlos Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza – numa verdadeira “política jurisdicional”, comprometida com a concretização dos direitos fundamentais.”

Diante disso, o ativismo jurisdicional como implementação de políticas jurisdicionais públicas mostra-se como ferramental crescente e vital para assegurar a efetividade da tutela ao direito de propriedade, mormente enquanto, como dito, integrante de um patrimônio mínimo existencial e, como tal, assegurador de um viver digno.

5. Considerações Finais

Não resta dúvidas, como visto, que os direitos fundamentais ocupam cada vez mais espaço na discussão acadêmica. De igual sorte, também é temática de grande discussão no que tange à efetividade, tanto no plano vertical quanto no plano horizontal, desses direitos sociais.

Quando se faz o corte cartesiano para o enfrentamento tão somente da efetividade do plano vertical, ou seja, na originária concepção dos direitos fundamentais como direitos sociais postos em face do Estado como proteção do cidadão, vê-se que esses direitos, tanto os prestacionais quanto os deveres abstencionais, não raras vezes não são cumpridos pelo Estado que é, ao fim e ao cabo, o destinatário das normas de direitos fundamentais.

Como dito linhas atrás, não é possível esquecer que essa eficácia vertical dos direitos fundamentais – prestacionais na espécie – encontra limites no plano fático-jurídico, ou seja, o Estado, enquanto destinatário da norma não tutela a eficácia impondo-se ponderar que esse limite tanto pode decorrer da vontade política o que irradia-se numa postura administrativa do Estado de forma a obstar esse dever prestacional ora pela ausência de recursos humanos e materiais e ora pela ausência, efetiva, da vontade política propriamente dita o que sempre leva à consideração de que, se efetiva a impossibilidade da prestação, estaria a postura do Estado malogrando seu papel primordial que é justamente a tutela desses direitos fundamentais.

Também, de outro turno, não seria possível olvidar que a eficácia vertical dos direitos prestacionais fundamentais encontra um limite fático-jurídico presente, em tese, no binômio possibilidade-interesse por parte do destinatário da norma o que torna a exigibilidade subordinada, ou pelo menos vinculada, ao princípio da razoabilidade que deve ser aplicado pelo Juiz ao caso concreto, num exercício típico de ativismo enquanto atitude de “política jurisdicional”, comprometida com a concretização dos direitos fundamentais, na citação doutrinária referida.

Recortando para o direito de propriedade, diversa construção analógica e sistêmica mostra-se totalmente apropriada.

A ponderação sobre a relatividade desse direito social – propriedade – sustenta-se na importância de considerar que as liberdades pessoais somente atingem um grau de efetividade quando encontram, em mesmo sentido, uma cooperação social por parte dos demais cidadãos, também titulares de direitos sociais a ponto de que, quase que numa escalada hierarquizada, no conflito, impor-se prestações estatais tanto de cunho organizacional quanto coordenatórias, de naturezas notadamente normativas, para a implementação de políticas públicas de organização e procedimentos de inclusão social mediante a garantia de um patrimônio mínimo existencial.

Ponderando-se, todavia, o conflito entre o exercício de direitos sociais, dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade residirá o papel do ativismo judicial, em notado exercício de hermenêutica, como forma de, como dito, implementação de política plena jurisdicional para a efetividade dos direitos sociais assecuratórios do primado maior da dignidade do ser humano.

 

Notas:
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

[2] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2ª Ed., São Paulo, RT

[3] BRIE, Roberto J. Los hábitos Del PensamientoRiguroso. Ed. Del Viejo Aljibre, Buenos Aires. 1989

[4] FREITAS, Juarez. A interpretação Sistemática do Direito, São Paulo, Malheiros, 1995.

[5] SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Ed. Revista do Advogado,  2010.

[6] In http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/13898/13462

[7] LAVIÉ, Humberto Quiroga, Derecho Constitucional, 1984, p. 461.

[8] http://www.acta-diurna.com.br/biblioteca/doutrina/d19990628007.htm

[9] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

[10] DWORKIN, Ronald M. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000-2001.

[11] http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=77&Itemid=29

[12] Op. cit.

[13] Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 107.

[14] Idem, p. 132.

[15] O Direito Penal e o princípio da proibição de proteção deficiente: a face oculta da proteção dos direitos fundamentais. São Leopoldo: UNISINOS (trabalho monográfico – mestrado), 2008. pp. 80-81. Disponível em: http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=721

[16] FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta. 2001

[17] LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes. 1998. passim, principalmente Livro II cap. V, VII e XI

[18] ROSENVALD, Nelson. Dignidade Humana e Boa Fé no Código Civil. Ed. Saraiva. SP, 2012.

[19] FACCHINI NETO, Eugenio Reflexões Histórico-evolutivas Sobre Constitucionalização do Direito Privado. In. SARLET, Ingo W. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003c.

[20] Algumas notas sobre a Relação entre os Direitos Fundamentais, o Processo e o Direito à Saúde. In Tempestividade e Efetividade  Processual: Novos Rumos do Processo Civil Brasileiro – Estudos em homenagem à Professora Elaine Harzeheim Macedo, pág. 336,


Informações Sobre o Autor

Enio Duarte Fernandez Junior

Graduado em Direito (FURG, Rio Grande, Brasil, 1992). Pós-Graduado, Especialização, em Direito Civil e Empresarial (FURG, Rio Grande, Brasil, 1994). Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (Universidad del Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina, 2004). Pós-Graduado, Especialização, em Responsabilidade Civil Extracontratual (Universidad Castilla La Mancha, Toledo, Espanha, 2010). Mestrando do Programa de Mestrado da PUCRS para a Área de Concentração; Fundamentos Constitucionais do Direito Público e do Direito Privado. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande e Professor Assistente da Faculdade Anhanguera do Rio Grande/ Anhanguera Educacional S.A. (Disciplinas: Direito Civil – Obrigações e Direito Processual do Trabalho). Professor da Pós Graduação da Faculdade Anhanguera do Rio Grande/Anhanguera Educacional S.A. Professor da Pós Graduação da Faculdade Anhanguera Pelotas / Anhanguera Educacional S.A. Membro de Conselho Editorial. Advogado. Conselheiro Julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS.
http://lattes.cnpq.br/0158186272674623


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