Africanidade, exclusão e leis no Brasil

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Resumo: O artigo evidencia a exclusão histórica dos afrodescendentes no Brasil, percorrendo o período compreendido entre a abolição da escravatura e a contemporaneidade. A temática é pertinente e se justifica em razão de sua atualidade no contexto das políticas afirmativas do governo federal. O racismo e a exclusão do negro no universo midiático e publicitário ficaram evidenciados nos resultados de pesquisas realizadas no país. O afrodescendente também continua sendo alvo de preconceito religioso e cultural. Enfoca-se, por outro lado, a evolução legislativa fundamentada nas tentativas de resgate cultural e de valorização da africanidade.

Palavras-chave: exclusão; racismo; afrodescendente; legislação.

Sumário: Introdução. África e africanidade: resgate histórico-cultural a partir da lei 10.639/2003. Cultura racista: resistência à inclusão do afrodescendente. Discriminação religiosa e cultural: Umbanda Candomblé e Capoeira. Considerações finais. Referências.

Introdução

Historiadores afirmam que por volta do ano 1531 teve início o desembarque dos escravos negros no Brasil. Entre 1531 e 1855 foram trazidos cerca de 4 milhões de negros do continente africano (COTRIM, 2001). Trazidos da África pelos navios negreiros, os escravos suportavam toda sorte de violência e privação.

“Depois de serem atirados e trancados no porão do navio negreiro, os africanos eram marcados a ferro no peito, na coxa ou no ombro. Superlotados, carregando geralmente três vezes mais do que sua capacidade normal, o navio negreiro iniciava a viagem com cerca de 600 escravos.  Espremidos nos porões abafados, recebiam pouca comida e um copo de água a cada dois dias. A viagem durava de 35 a 50 dias e cerca de 30% dos escravos morriam antes de chegar ao Brasil. […] Ao serem desembarcados no Brasil, os africanos eram separados de seus companheiros de viagem e misturados a outros escravos recém-chegados. Assim, centenas de negros de origens, línguas e hábitos diferentes eram expostos nos mercados de escravos existentes nos três principais portos do Brasil colonial: Recife, Salvador e Rio de Janeiro.” (BOULOS Jr., 1994, p.64).

A violência cultural se deu posteriormente, pela imposição de costumes ocidentais, catecismo jesuíta, idioma português, tudo em detrimento da cultura própria do povo africano, seus costumes, dialetos, sua maneira de ser e de pensar, suas crenças religiosas, etc. Segundo o jornalista congolês Jean Leonard Touadi (apud PALIOTTI, 1998), a violência cultural esteve representada pela teoria da “missão civilizatória”, imposta aos povos colonizados para tirá-los das “trevas do primitivismo”.

Somente após três séculos de escravidão teve início um processo gradativo de abolição da escravatura no Brasil com a Lei Eusébio de Queirós de 1850, seguida pela Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 – conhecida como Lei do Ventre Livre –, que libertava todas as crianças nascidas de pais escravos. “Os filhos de mulher escrava nascidos a partir daquela data seriam livres, mas continuariam na condição de propriedade do senhor até os 21 anos de idade” (PILETTI; PILETTI, 2000, p.46).

Mais tarde, em 28 de setembro de 1885 foi editada a Lei 3.270, Lei Saraiva-Cotegipe, garantindo liberdade aos escravos com mais de 65 anos. “[…] além de beneficiar apenas os senhores, que ficavam livres da responsabilidade de alimentar escravos pouco produtivos, a medida era de uma ironia brutal numa época em que a expectativa média de vida para os escravos mal chegava aos quarenta anos de idade”. (CALDEIRA, 1997, p.220).

O último país a pôr fim à escravidão no continente americano sancionou a sua Lei Áurea (Lei Imperial 3.353) em 13 de maio de 1888. Na ocasião não foi proposta qualquer assistência ou garantia que protegesse os antigos agentes do trabalho escravo na transição para o sistema de trabalho livre (FERNANDES, 1965).  A libertação dos escravos, da maneira como foi feita no Brasil, impôs aos negros a condição do mais completo abandono. Os ex-escravos tiveram de se reorganizar sozinhos, lançados à própria sorte depois de trezentos anos de escravidão.

“Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo” (FERNANDES, 1965, p.05).

Como consequência ainda hoje é visível o resultado de séculos de escravidão e posterior abandono imposto ao povo negro.  Nesse sentido, o presente estudo busca evidenciar a exclusão histórica do elemento afrodescendente no Brasil e, ao mesmo tempo, demonstrar as tentativas de resgate cultural e de valorização da africanidade[1] a partir de medidas governamentais e do amparo legal na contemporaneidade.

África e africanidade: resgate histórico-cultural a partir da lei 10.639/2003.

A África durante muitos anos foi uma região desconhecida para a maioria dos brasileiros. As informações exibidas pelos canais de televisão quase sempre associavam o continente africano às imensas savanas e sua vida selvagem. Outro aspecto que vinha recebendo algum destaque eram as crises humanitárias enfrentadas por algumas regiões africanas. A África, porém, sempre foi muito mais do que isso.

Ao contrário do que pensam alguns a África não é um país, mas um gigantesco continente com cerca de 30.2 milhões de km², onde se situam 55 países independentes. Há em todo o continente uma vasta diversidade étnica, cultural, linguística e geográfica. Muito além da clássica divisão entre África branca e África negra ou subsaariana, é possível observar inúmeras especificidades étnicas em todo o continente.

No tocante à cor de pele, estatura, tipo de cabelo entre outros caracteres fenotípicos, surgem variações notáveis. Na África se concentra a maior parte da diversidade genética da espécie humana. Em razão disso, dois africanos tendem a ser mais diferentes entre si do que um nativo da Europa e um da Ásia (VIEIRA; LIMA, 2008). O tipo físico longilíneo do povo massai (no sul do Quênia e norte da Tanzânia) é, por exemplo, muito diferente do povo Mbuti (conhecidos como pigmeus, na África central), muito embora prevaleça no Brasil o entendimento de uma falsa homogeneidade entre os nativos africanos.  

Visando aproximar o país de suas origens africanas o governo brasileiro sancionou a Lei 10.639 em 09 de janeiro de 2003, tornando obrigatório o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas de ensino médio e fundamental, públicas e privadas. Verdadeiramente não resta dúvida de que a realidade histórica e cultural africana está intimamente relacionada ao Brasil, como se lê nas palavras de Cotrim:

“Apesar de terem chegado ao Brasil sob as mais penosas condições, os africanos participaram intensamente da formação das vivências culturais brasileiras. Essa participação se deu por meio de um processo contínuo, rico e diversificado, e é marcante em diversos setores culturais, como, por exemplo, a literatura, o vocabulário, a música, a alimentação, a religião, o vestuário e a ciência” (COTRIM, 2001, p.107).

Com a nova lei o universo da africanidade ganhou espaço na mídia, nas escolas e universidades brasileiras. Obras com rico conteúdo didático abordando o assunto foram lançadas no país nos últimos anos. Antes da lei nem mesmo os países africanos de onde foram trazidos os escravos negros eram conhecidos. Os estudantes brasileiros desconheciam, por exemplo, que o povo banto fora o grupo mais numeroso de negros que chegou ao Brasil, mas que não tinham sua história registrada até bem pouco tempo. Pouca gente sabe que o samba e o carnaval são influências banto. Os bantos vieram de regiões como o Congo, Angola e Moçambique. Da Nigéria, do Togo e do Benin vieram os grupos sudaneses conhecidos como iorubas ou nagôs, e os jejes[2].

“Uma grande parte dos negros trazidos para o Brasil veio das regiões de Angola, Congo e Moçambique. Nessas áreas foram embarcados povos que falavam línguas bantas, por isso ficaram conhecidos como bantos. […] Uma outra parte dos negros trazidos para o Brasil foi proveniente de uma grande área da costa ocidental da  África que os europeus daquela época chamavam Guiné. Nessa extensa área foram embarcados diferentes povos sudaneses, entre os quais se destacam os de língua iorubá. Esses povos foram destinados em grande quantidade à Bahia, onde ficaram conhecidos como nagôs” (BOULOS Jr., 1994, p.62).

A Lei 10.639/03 sem dúvida favoreceu o resgate da cultura negra no Brasil. No país os estudos sobre o negro até então se restringiam ao povo nagô, devido à influência do pesquisador maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Alguns centros de pesquisa brasileiros sempre estudaram o povo nagô, deixando esquecidas outras raízes étnico-linguísticas relevantes.

No universo literário, do mesmo modo, os escritores africanos de diferentes nacionalidades sempre estiveram à margem dos interesses dos leitores brasileiros. Nomes como Mia Couto, Agostinho Neto, José Craveirinha, José Eduardo Agualusa, Pepetela, Naguib Mahfouz, Nadine Gordimer, entre outros até muito recentemente não constavam nas bibliotecas dos estudantes do Brasil.

A Lei 10.639/03 trouxe benefícios para a formação da identidade do povo brasileiro, num país onde 77 milhões de indivíduos têm pelo menos 90% de ancestralidade africana (TRACCO, 2007). Lídia Cunha, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, afirma que “quando se perde o contato com seus antepassados e se é bombardeado diariamente com notícias negativas sobre eles e seu continente, a tendência é negar suas origens e acabar se afastando” (CUNHA apud GALVÃO, 2003, p.4). Somos a segunda maior população negra do planeta e isso parecia até então ignorado pelo governo e por toda a sociedade.[3]

Cultura racista: resistência à inclusão do afrodescendente.

Outras iniciativas do governo brasileiro estão gradativamente fortalecendo o vínculo do Brasil com suas raízes africanas. A Lei 12.288 de 2010 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial e um ano depois a Lei nº 12.519 de 2011 consagrou a data de 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. São conquistas importantes, mas resta ainda muito por fazer.

Atualmente a Lei 7.716 de 05 de janeiro de 1989 define os crimes resultantes de preconceitos de raça e de cor no Brasil. A iniciativa da lei é válida e necessária, porém pouco alterou a realidade do negro na esfera social brasileira. Com relativa frequência o noticiário nacional tem apresentado denúncias de racismo ou preconceito de cor no país. Práticas de racismo ou de injúria racial ainda são lamentavelmente comuns no Brasil.

Entre pessoas a única raça admitida no meio científico é a raça humana. Atribuir defeitos de conduta moral a um grupo étnico-cultural é uma prática sem qualquer fundamento científico. O que existe, quando muito, são estereótipos perigosos. Nenhuma pesquisa sociológica séria nos autoriza a associar, por exemplo, terrorismo com povos de origem árabe. Bobagens como a crença na superioridade da raça ariana ou na subalternidade dos povos africanos carecem igualmente de qualquer base racional e serviram de pretexto para alguns dos mais bárbaros crimes já cometidos contra a humanidade. No Brasil a escravidão de seres humanos durante trezentos anos foi emblemática nesse sentido.

Há certamente ainda hoje uma cultura racista implícita nas relações socioeconômicas do país, representando uma barreira severa diante das políticas favoráveis à superação do preconceito. O maior exemplo pode ser encontrado nas dificuldades enfrentadas pelo governo em sua política de cotas para negros nas universidades públicas.

O Brasil possui uma das maiores populações negras do mundo – mais de 50% dos habitantes são negros ou afrodescendentes, segundo dados do IBGE. Todavia sempre foi pouco representativo o número de negros nas universidades brasileiras. “Na USP, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2% e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros” (COMPARATO, 2008, p.02). Até o ano de 2007 o censo indicava que 5,8 milhos de brasileiros com mais de 25 anos tinham curso superior completo e desse total 82,8% eram brancos (TRACCO, 2007).

Para superar essa aberração histórica a Lei 12.711 de 2012 tornou obrigatória a reserva de cotas raciais no Ensino Superior. O acesso privilegiado de negros a universidades públicas não obstante vem esbarrando em forte resistência dentro e fora das academias. “Quando as universidades admitem alunos por critérios não acadêmicos, há um risco real de que elas se transformem em escolões de baixa qualidade”, adverte, por exemplo, Simon Schwartzman (apud TRACCO, 2007, p.77).

Jairo Pacheco, um dos principais defensores da proposta de reserva de vagas para os estudantes negros na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, acredita que

“A negação a discutir formas inovadoras de promoção de inclusão social via acesso ao ensino superior, significa aferrar-se ao argumento meritocrático de acesso dos mais capazes, sem questionar as condições objetivas de oferta de condições equânimes para que as ‘capacidades’ se desenvolvam em todos os segmentos da sociedade” (PACHECO apud GALVÃO, 2003, p.4).

Outra evidência da exclusão e da invisibilidade do negro no Brasil está nos meios de comunicação, sobretudo no publicitário. Um estudo realizado pelo produtor de TV Joel Zito Araújo, sobre a participação de atores e atrizes negros em novelas das redes de TV Globo e Tupi entre 1964 e 1997, concluiu que 71 fizeram papéis de empregadas domésticas, 66 foram escravos, apenas um foi médico e dois atuaram como engenheiros. “Na televisão e na propaganda o Brasil é a Escandinávia: um país louro, de olhos azuis”, alertava uma matéria veiculada pela Revista Veja em outubro de 1995 (NAVISKAS, 1995, p.142).

A inclusão do negro na programação midiática e, sobretudo, em propagandas veiculadas em revistas e jornais é algo relativamente recente e quantitativamente desproporcional ao número de negros e afrodescendentes existentes no país, cerca de 97 milhões atualmente. Isto também comprova a existência de uma cultura racista nas relações sociais do Brasil, realidade que apenas muito recentemente vem sendo admitida.

“O racismo no Brasil está presente no ideal estético de valorização da beleza branca em todas as esferas da vida social, em especial nos meios de comunicação de massa, abrange a violência policial contra os negros e chega ao extremo da esterilização seletiva de mulheres negras” (BRYM et al., 2008, p.239).

Demonstrar a exclusão e a invisibilidade do negro no meio publicitário foi o objetivo de outra pesquisa realizada dessa vez junto a Universidade Norte do Paraná, no ano de 2002 (GALVÃO; QUEIROZ, 2002). A metodologia utilizada naquela ocasião foi a catalogação de mercadorias de circulação nacional expostas nas prateleiras das maiores redes de supermercados da região Norte do Paraná, enfatizando os produtos que trouxessem nos rótulos imagens de pessoas brancas e/ou negras. Considerando que é diante da prateleira do supermercado que o consumidor toma a decisão final de compra, a apelação publicitária tende a ser decisiva.

Nos reclames publicitários veiculados diretamente em rótulos de mercadorias comercializadas em supermercados, constatou-se forte exclusão da imagem de pessoas de pele negra. Em embalagens de leite em pó, achocolatados, shampoo, sabonetes, creme dental, amaciante de roupa, fraldas, entre outros produtos, o mais comum foi encontrar fotografias e gravuras de adultos ou crianças e bebês de pele clara. Como resultado constatou-se que pessoas de cor negra apareciam, isoladamente, apenas em produtos dirigidos ao público afrodescendente.

A presença do negro foi constatada ainda quando a mercadoria trazia no rótulo imagens de pessoas de diferentes cores agrupadas. Em 100% dos rótulos de mercadorias sem referência ao tipo de cabelo ou cor de pele, foram constatadas imagens de pessoas brancas, exclusivamente. Considerando que o Brasil possui uma das maiores populações negras do mundo – mais de 50% dos habitantes são negros ou afrodescendentes – a conclusão da pesquisa realizada no ano de 2002, traduzia a exclusão étnica e denunciava o preconceito racial.         

Na atualidade já é possível observar uma realidade sensivelmente diferente, se comparada com a época da realização da pesquisa supramencionada. O afrodescendente paulatinamente vem ganhando espaço no universo publicitário e midiático, um notório resultado da luta contra a discriminação.  

Discriminação religiosa e cultural: Umbanda, Candomblé e Capoeira.

No âmbito da religiosidade, todavia, algumas práticas religiosas de origem africana como o Candomblé e a Umbanda ainda hoje são frequentemente discriminadas no Brasil. Entre os anos de 2011 e 2012 observou-se um significativo crescimento no número de denúncias de violação de direitos, sobretudo, no tocante aos professantes das religiões e crenças de matriz africanas, segundo dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (STECK, 2013). 

É sabido que em épocas remotas a prática de religiões africanas era proibida no Brasil. Com efeito, “no período colonial, as leis puniam com penas corporais as pessoas que discordassem da religião imposta pelos escravizadores. Decreto de 1832 obrigava os escravos a se converterem à religião oficial” (STECK, 2013). O Código Criminal do Império, de 1830, considerava crime o culto de religião que não fosse a oficial (catolicismo). O médico e estudioso Raimundo Nina Rodrigues acreditava que os rituais de candomblé eram uma patologia dos negros (KENSKI, 2003).

A discriminação religiosa ocorreu exatamente como em relação à Capoeira, prática desportiva trazida pelos escravos negros. Entre os anos de 1890 a 1937 a prática da capoeira era crime previsto no Código Penal. Quem fosse pego brincando capoeira poderia pegar de dois meses a três anos de prisão. O Decreto 847 de 11 de outubro de 1890 assim dispunha em seu Capítulo XIII:

“– Dos vadios e capoeiras:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem (…).

Pena de prisão celular por dois a seis meses.

A penalidade é a do art. 96.

Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.”

Apenas no ano de 1937 o então presidente Getúlio Vargas assinou um decreto descriminalizando a referida luta (PETTA, 1996). Outras formas de discriminação lamentavelmente permaneceram ao longo dos anos e estão presentes em nossos dias.

 Visando superar o preconceito tem havido atualmente no país uma extensa campanha contra a intolerância religiosa. Um exemplo está na Campanha em Defesa da Liberdade de Crença e contra a Intolerância Religiosa, lançada pelo SESC/SP e o Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-brasileira (SILVA; BENTO, 1997). Do ponto de vista legal o amparo à causa se deu através da Lei 11.635/2007 que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa – a ser comemorado anualmente em todo o território nacional no dia 21 de janeiro –, bem como através da Lei 7.716 de 1989 que pune, entre outras coisas, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito religioso. 

Considerações finais

No estudo em pauta ficou demonstrado que o fim da escravidão no Brasil não foi acompanhado por reformas econômicas que possibilitassem aos ex-escravos condições dignas de trabalho. Tampouco houve uma reforma agrária com a distribuição de terras aos trabalhadores rurais, como pleiteavam os abolicionistas (PILETTI; PILETTI, 2000).

Ademais, complementando, a questão não foi somente a falta de políticas públicas com relação aos negros na fase pós-escravatura. Houve mesmo políticas públicas no período republicano reforçando a intolerância contra a população negra, como por exemplo a concentração fundiária nas áreas rurais e a marginalização e repressão nas áreas urbanas (GOMES, 2003).

Ao longo da história do Brasil o conjunto dos estudos relativos à condição do negro deixou evidenciado inúmeras e diferentes formas de exploração. É notória a situação de inferioridade econômica e social dos negros em relação aos brancos. “O racismo explica em parte porque a elite brasileira é esmagadoramente branca”, afirma Melissa Nobles (1999, p.05), pesquisadora americana da questão racial no Brasil e nos Estados Unidos. Com efeito, os afrodescendentes – cerca de 97 milhões no país, segundo dados do Censo 2010 – raramente ocupam cargos de chefia ou recebem salários iguais ou melhores que seus colegas brancos em cargos e circunstâncias semelhantes. Na universidade o negro durante muitos anos teve presença rara.

Há certamente uma falsa democracia racial no Brasil, o que põe por terra o discurso do país onde as diferenças raciais convivem em perfeita harmonia. Entre nós a condição do negro sempre esteve associada à miséria e à criminalidade e assim permanece.

Apesar do crescente amparo legal à causa da inclusão dos afrodescendentes, a sociedade brasileira está estruturada de tal forma que as garantias legais nem sempre existem de fato para quem delas mais necessita, fazendo valer a advertência de Barbosa (1988, p.72) no sentido de que “as leis no Brasil são distantes, mal conhecidas, muito numerosas e pouco cumpridas”. Muitas vezes a lei proclama intenções dissociadas de sua exequibilidade. Prevalece, portanto, um contexto sócio-político onde pululam a impunidade, a ausência de fiscalização do efetivo cumprimento da lei e a má informação da população.

Falta muito ainda para que possamos fazer valer no Brasil as palavras proferidas por Nelson Mandela em seu discurso de posse como primeiro presidente negro eleito na África do Sul: “Devemos construir uma sociedade na qual todos, negros e brancos, poderão andar de cabeça erguida, certos de seu inalienável direito à dignidade humana”.

 

Referências:
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Institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11635.htm. Acesso em: 15 dez. 2013.
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GIORDANI, Mário Curtis. História da África: anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 1985.
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MENDONÇA, Marina Gusmão de. Histórias da África. São Paulo: LCTE, 2012.
VISENTINI, Paulo Fagundes; RIBEIRO, Luiz Dário Teixeira; PERERA, Analúcia Danilevicz.  História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013.
 
Notas:
[1] O conceito de africanidade remete à valorização da cultura africana e dos afrodescendentes, reconhecendo aspectos históricos, políticos, étnico-linguísticos, entre outros.

[2] Há profunda divergência encontrada na grafia das denominações étnico-linguísticas africanas, variando conforme o autor consultado. Por exemplo, quanto ao povo banto existe a variante bantu e alguns admitem o feminino banta. Quanto aos jejes alguns autores grafam gêges.

[3] Segundo Brym et al. (2008, p.239), “depois da Nigéria, o Brasil é o país que tem o maior número de habitantes negros do mundo”.


Informações Sobre o Autor

Roberto Carlos Simões Galvão

Professor universitario, Mestre em Educacao pela Universidade Estadual de Maringa, Pos-Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina, Graduado em Direito pela Universidade Norte do Parana, Licenciado em Sociologia pela Faculdade do Noroeste de Minas.


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