O sistema de jurisdição administrativa no Brasil: os desafios do procedimento administrativo à luz da tábua principiológica

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Resumo: Em decorrência do sistema jurisdicional unificado, consagrado pelo Texto Constitucional, o qual atribui, ao Poder Judiciário, a competência para apreciação da lesão e ameaça de direito. Aludida modalidade de sistema estabelece que todos os litígios, administrativos ou de caráter privado, estão sujeitos à apreciação e a decisão da Justiça comum, ou seja, aquela constituída por juízes e tribunais do Poder Judiciário. Insta anotar que, em sede de sistema da unidade da jurisdição – una lex una jurisdictio -, somente os órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário exercem a função jurisdicional e proferem decisões com o caráter de definitividade. Com efeito, cuida reconhecer que as demandas envolvendo a Administração Pública, como parte interessada nas demandas, reclama uma mudança de ótica, com o escopo de manter harmonia com a tábua principiológica peculiar, sobretudo em prol de assegurar a isonomia da população jurisdicionada, com o fito de preservar corolários proeminentes, quais sejam: segurança jurídica, confiança legítima e boa-fé, sem olvidar da promoção do preceito processual maior, o devido processo legal. Há que se reconhecer que os princípios são mandatos de otimização, cujo aspecto caracterizador repousa no sedimento que permite o cumprimento em diferente grau e que a proporção devida de seu cumprimento não apenas reclama as possibilidades reais, mas também as jurídicas. Nesta esteira, o presente se debruça sobre uma análise, à luz da tábua axiológica da jurisdição administrativa, observando estabelecer breves linhas a mazelas corriqueiras e que reclamam uma abordagem concatenada com a promoção do administrado.

Palavras-chaves: Justiça Administrativa. Procedimento Administrativo. Desafios Processuais.

1 A EXTENSÃO DA LOCUÇÃO JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA: BREVES PONTUAÇÕES AO SISTEMAS DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO E DA UNIDADE DA JURISDIÇÃO

Em sede de apontamentos introdutórios, cuida estabelecer, de maneira clara, as acepções assumidas pelas locuções justiça administrativa e jurisdição administrativa, eis que fazem menção, respectivamente, aos órgãos jurisdicionais destinados à apreciação e julgamento dos litígios de direito público ou de interesse da administração pública, no que toca ao primeiro, e a natureza e o alcance da jurisdição prestada por aqueles, no que concerne ao segundo. Ao lado disso, é necessário trazer à colação o oportuno esclarecimento de Ricardo Perlingeiro (2005, passim), notadamente quando emoldura os motivos que levam os juristas nacionais e a sociedade em geral a não assimilarem tais conceitos e a extensão da justiça administrativa. Ora, consoante o autor supramencionado, a falsa compreensão dos termos multicitados decorre da premissa que, no território nacional, foram vinculadas, de maneira exclusiva, ao contencioso administrativo extrajudicial, tendo, pois, raízes históricas.

Nessa linha, ainda, o sentido da expressão justiça administrativa manteve-se o mesmo da época do Conselho de Estado do Império, que, conquanto fosse inspirado no Conselho de Estado Napoleônico, não acompanhou a evolução deste para um órgão verdadeiramente jurisdicional, sendo extinto com o advento da República. Aduz, também, Ricardo Perlingeiro (2005, passim) que, na ocasião, a justiça administrativa esta intimamente atrelada ao ideário de um controle concentrado nas mãos do Imperador, não detendo, por conseguinte, a natureza judicial ou jurisdicional. No Brasil, contemporaneamente, a real dimensão assumida pela locução mencionada alhures está atrelada aos órgãos judiciais com competência para julgar a Fazenda Pública e ao denominado “direito processual público”.

“Após a ditadura Vargas o Brasil se reconstitucionalizou em 1946 e o modelo do Estado de Direito que o país adotou foi ainda o do Estado-Providência, delineado na Europa no Primeiro Pós-Guerra e caracterizado pela absoluta supremacia do interesse público sobre os direitos individuais. Será nesta época que se estruturará o “direito administrativo brasileiro” que se caracterizará pela auto-executoriedade dos atos da Administração Pública. O Código de Processo Civil de 1973, inspirado na doutrina europeia do Direito Processual das causas entre particulares, não se preocupou em tratar de modo especial a litigiosidade entre aqueles e o Estado, a não ser em disposições esparsas que concederam privilégios à Administração Pública, com prazos especiais e o duplo grau de jurisdição obrigatório, ou em transposição de regras constitucionais, como regulação da execução contra a Administração Pública através do sistema de precatórios” (MORAES, 2012, p. 04).

É admitido, no Brasil, a partir do final do século XIX, o denominado contencioso de jurisdição plena para a salvaguarda e proteção de direitos subjetivos, em que pese a tradição de que apenas os litígios estavam sujeitos a uma legislação processual de direito privado, ao passo que o controle judicial de validade exercido sobre o ato administrativo estava subordinado a um procedimento diferenciado e específico de jurisdição administrativa. Verifica-se, assim, que o sistema de dualidade da jurisdição, também nomeado de contencioso administrativo ou, ainda, sistema francês, estabelece que, ladeando o Poder Judiciário, há uma Justiça Administrativa, constituída de juízes e tribunais pertencentes a outro Poder Instituído. Com efeito, em ambas as Justiças, as decisões emanadas são revestidas de coisa julgada, assegurando que cada uma decida de maneira independente, não sendo, por conseguinte, comportada a reapreciação da causa por Justiça diversa daquela que proferiu o pronunciamento. Ademais, em havendo conflito entre ambas, competirá a um órgão superior a ambas as estruturas, manifestar o entendimento, com vistas a colocar termo o conflito. A crítica existente ao sistema em apreço repousa na premissa que fica mitigada, em favor dos litigantes privados a garantia da imparcialidade, eis que na Justiça Administrativa o Estado, in these, é parte e juiz do conflito. Sobre o sistema contencioso administrativo, Carvalho Filho já estruturou o seguinte esclarecimento:

“O sistema do contencioso administrativo, também denominado de sistema de dualidade de jurisdição ou sistema francês, se caracteriza pelo fato de que, ao lado da Justiça do Poder Judiciário, o ordenamento contempla uma Justiça Administrativa. Esse sistema, adotado pela França e pela Itália entre outros países sobretudo europeus, apresenta juízes e tribunais pertencentes a Poderes diversos do Estado. Em ambas as Justiças, as decisões proferidas ganham o revestimento da res iudicata, de modo que a causa decidida numa delas não mais pode ser reapreciada pela outra. É desse aspecto que advém a denominação de sistema de dualidade de jurisdição: a jurisdição é dual na medida em que a função jurisdicional é exercida naturalmente por duas estruturas orgânicas independentes – a Justiça Judiciária e a Justiça Administrativa. A Justiça Administrativa tem jurisdição e competência sobre alguns litígios específicos. Nunca serão, todavia, litígios somente entre particulares; nos conflitos, uma das partes é necessariamente o Poder Público. Compete-lhe julgar causas que visem à invalidação e à interpretação de atos administrativos e aquelas em que o interessado requer a restauração da legalidade quando teve direito seu ofendido por conduta administrativa. Julga, ainda, os recursos administrativos de excesso ou desvio de poder. A organização da Justiça Administrativa é complexa e se compõe de várias Cortes e Tribunais administrativos. Na França, situa-se em seu ponto mais elevado o conhecido Conselho de Estado (Conseil d’État) e, no caso de conflito de atribuições entre as duas Justiças, a controvérsia é dirimida pelo Tribunal de Conflitos, criado fundamentalmente para esse fim. A vantagem desse sistema consiste na apreciação de conflitos de natureza essencialmente administrativa por uma Justiça composta de órgãos julgadores especializados, razão por que têm contribuído de forma significativa para o desenvolvimento do Direito Administrativo” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 931-932).

A título de robustecimento, cuida transcrever que aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de ações que tenham por objeto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público, conforme já assentou entendimento o Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, quando da apreciação do Conflito de Competência Nº JSTA00062619, de relatoria do Conselheiro Antônio Alves Velho (PORTUGAL, 2014). Daí que, como se vem reafirmando, só interessem à justiça administrativa as relações jurídicas administrativas públicas, reguladas por normas de direito administrativo, passando, em regra, a determinação das competências por um critério material que assente na distinção material entre o direito público e o direito privado. Em mesmo sentido, quadra anotar, oportunamente, que “a atribuição de competência à jurisdição administrativa depende da existência de uma relação jurídica em que um dos sujeitos, pelo menos, seja ente público (Administração, intervindo com poderes de autoridade, com vista à realização do interesse público), regulada por normas de direito administrativo”, conforme decidido no Conflito Nº JSTA000P15744, de relatoria do Conselheiro Salreta Pereira (PORTUGAL, 2014). 

Dessemelhantemente do exposto, cuida apontar que não existe “no Brasil uma justiça administrativa estruturada a partir do primeiro grau até a Corte Suprema, mas cabe ao Poder Judiciário exercer a jurisdição administrativa, dirimindo os conflitos em que há interesse do Poder Público” (MORAES, 2012, p. 05). Diversamente do sistema de dualidade da jurisdição, o sistema jurisdicional nacional adotou, de maneira expressa, a unidade de jurisdição, também conhecido como sistema do monopólio de jurisdição ou sistema inglês. Aludida modalidade de sistema estabelece que todos os litígios, administrativos ou de caráter privado, estão sujeitos à apreciação e a decisão da Justiça comum, ou seja, aquela constituída por juízes e tribunais do Poder Judiciário. Quadra assinalar que, em sede de sistema da unidade da jurisdição – una lex una jurisdictio -, somente os órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário exercem a função jurisdicional e proferem decisões com o caráter de definitividade. Acerca do sistema em comento, inclusive, Pietro já apontou que:

“O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una, pelo qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, ou seja, do poder de apreciar, com força de coisa julgada, a lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos. Afastou, portanto, o sistema de dualidade de jurisdição em que, paralelamente ao Poder Judiciário, existem órgãos do Contencioso Administrativo que exercem, como aquele, função jurisdicional sobre lides de que a Administração Pública seja parte interessada” (PIETRO, 2013, p. 816).

Com efeito, mesmo nos casos das raríssimas exceções contempladas pelo Texto Constitucional, conferindo essa função ao Congresso Nacional, não servem para desfigurar o monopólio da jurisdição pelo Poder Judiciário. O fundamento da adoção do sistema da unidade da jurisdição, pelo Brasil, está, com clareza ofuscante, sufragado pelo inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, que, em altos alaridos, reza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 2014). O preceito é inteligível, permitindo a interpretação que “nenhuma decisão de qualquer outro Poder que ofenda direito, ou ameace ofendê-lo, pode ser excluída do reexame, com foros de definitividade, por órgãos jurisdicionais” (CARVALHO FILHO, 2011, p. 932). Em complemento, “cabe ao Poder Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três poderes constitucionais, e, em vislumbrando mácula no ato impugnado, afasta a sua aplicação”, conforme decidido no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento Nº. 640.272/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2014).

Assim, cuida salientar que a Administração Pública em nenhum momento exerce função jurisdicional, de forma que seus atos sempre serão passíveis de reapreciação pelo Poder Judiciário, em decorrência, repise-se, do preceito constitucional da inafastabilidade da jurisdição. Os defensores do sistema em análise sustentam que há maior vantagem no que concerne à imparcialidade dos julgamentos, porque o Estado-Administração e o administrado se colocam, a todo o momento, em plano jurídico de igualdade, quando seus conflitos de interesse são deduzidos nas ações judiciais.

2 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: REVISITANDO A TÁBUA AXIOLÓGICA DA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA

Inicialmente, cuida assinalar que o vocábulo princípio tem seu sentido atrelado ao ideário de começo, gênese, ponto de partida de algo. Quadra apontar que uma das maiores preocupações das últimas décadas, em sede de Ciência Jurídica, envolveu a natureza e a relevância dos princípios jurídicos. Após a superação dos debates iniciais, tornou-se inquestionável sua natureza normativa, sendo que os princípios deixaram de ser considerados como propostas de cunho irrelevante, despidas de vinculação. Na lição de Miguel Reale (1999, p. 23), os princípios são definidos por “verdade ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. Trata-se, em um primeiro contato, de bastiões dotados de proeminência, eis alicerçam o amplo leque de juízos, orientando, pois, o sistema erigido. Em mesma linha de dicção, Paulo Bonavides (2007, p. 256) explicita que os princípios substancializam verdades objetivas, nem sempre inseridas no mundo do ser, senão do dever-ser, na condição de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade. Verifica-se, assim, que aos princípios foi atribuída força normativa, ultrapassando-se o singelo aspecto de sedimento de fundamentação, passando a tremular como flâmula vinculadora do ordenamento jurídico.

Marçal Justen Filho (2011, p. 108-109) assinala que os princípios tem o condão, por vezes, de estabelecer obrigações mais densas e robustas do que as regras, eis que a infringência de um princípio é mais grave do que descumprir uma regra. Tal premissa deriva do ideário que o princípio é uma síntese axiológica, substancializando, por conseguinte, uma síntese axiológica: os valores fundamentais são salvaguardados por meio dos princípios, os quais refletem as decisões essências da Nação. A regra, por seu turno, traduz uma solução concreta e definida, substancializando escolhas instrumentais; os princípios indicam uma escolha axiológica, permitindo a concretização de uma pluralidade de alternativas concretas. Em uma retomada de valores, o Direito passa a gozar de uma robusta consistência e coerência, sendo detentor de uma base concreta as ideologias, os objetivos e as exigências peculiares e caracterizadores da sociedade no qual será aplicado. E, neste cenário de hegemonia axiológica, os princípios, expressos ou não, ascendem a um grau de proeminência singular. “Passam a ser não só o norte de toda e qualquer interpretação e aplicação do Direito, servindo de alicerce e moldura do ordenamento jurídico, mas configuram normas jurídicas de aplicação autônoma” (ARAGÃO, 2010, p. 32).

“De modo geral, a regra torna válida uma válida uma solução determinada, enquanto o princípio impõe a invalidade de soluções indeterminadas. Em contrapartida, todas as escolhas compatíveis com certo princípio podem ser praticadas – o princípio não fornece solução única, mas propicia um elenco de alternativas, o que exige uma escolha, por ocasião de sua aplicação, por uma dentre as diversas soluções compatíveis com o princípio. A função do princípio reside, basicamente, em excluir a validade das alternativas que sejam contraditórias com os valores nele consagrados […]” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 109).

Robert Alexy (2007, p. 86), ao tratar o tema, destaca que os princípios são normas que têm o condão de ordenar que algo seja realizado na maior medida possível, em um cenário de possibilidades jurídicas e reais existentes. Com efeito, há que se reconhecer que os princípios são mandatos de otimização, cujo aspecto caracterizador repousa no sedimento que permite o cumprimento em diferente grau e que a proporção devida de seu cumprimento não apenas reclama as possibilidades reais, mas também as jurídicas. Diante do painel pintado, sobreleva assinala que a tábua principiológica adotada pela Ciência Jurídica usufrui de maciça relevância, notadamente no que concerne ao âmbito administrativo, eis que a atividade administrativa traduz o exercício de poderes-deveres, significando verdadeira vinculação ao fim a ser colimado. “Pode-se dizer, então, que os princípios desempenham função normativa extremamente relevante no tocante ao regime de direito administrativo. Com algum exagero, poder-se-ia afirma que os princípios possuem influência mais significativa no direito administrativo do que no direito privado” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 109).

Tecidos estes comentários, resta patentemente demonstrada a proeminência dos princípios na contemporânea sistemática, sobretudo devido ao tratamento dispensado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, em que pese o reconhecimento da robusta tábua axiológica consagrada no caput do artigo 37 do Texto Constitucional, compreendendo, de maneira expressa, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, o presente se debruça sobre uma cartela peculiar, buscando conceder especial enfoque aos princípios orientadores da justiça administrativa[1], propondo uma análise da seguinte plêiade de axiomas: legalidade, isonomia, razoabilidade e proporcionalidade, segurança jurídica e confiança legítima e devido processo legal, este último corolário maior do sistema processual vigente.

2.1 Princípio da Legalidade

Cuida ressoar, de início, que o Estado Democrático de Direito tem suas bases fundamentais alicerçadas sobre uma dicotomia entre a atuação dos particulares e a atuação do Poder Público. No que tange à atuação dos particulares, dotada de ordem permissiva, é norteada pela máxima do que aquilo que a lei não proíbe, é permitido. Aqui, algumas ponderações são bem-vindas. Pode-se destacar, com altos alaridos, que “se denota a pedra fundante do referido mandamento na redação que inaugurou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto dos ideais advindos do Iluminismo” (VERDAN, 2009, s.p.). Ora, o corolário em comento tem suas balizas fincadas em um período pós-revolucionário, no qual se buscou consolidar os direitos essenciais do indivíduo. Sem perder de vista tal ensinamento, o artigo 8º da Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadão trouxe à baila que: “Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente publicada” (SÃO PAULO, 2014).

Fato é que os sobreditos postulados tiveram o condão de se desdobrar e produzir consequências no âmbito interno dos países, passando a se irradiar por seus ordenamentos jurídicos, ao tempo em que integravam, de modo claro e robusto, suas Cartas Políticas. No Brasil, por exemplo, “a primeira manifestação de tais ditames foi vislumbrada na Carta Magna de 1824” (VERDAN, 2009, s.p.). Desta feita, é possível verificar que, mesmo se tratando de um período no qual o Estado Brasileiro, quando império, encontrava-se imerso em uma aura de absolutismo e ideários que se contrapunham aos axiomas de democracia e liberdade, o constituinte positivou tal dogma. Destarte, em um ambiente no qual as ideias de concentração de poder na figura de um único indivíduo, o Imperador, tinha pleno aceite, as concepções emanadas pelo Iluminismo permitiram o favorecimento do princípio da legalidade, mesmo que de forma tão tímida e limitada. Nesta senda, a guisa de exemplificação, pode-se trazer a lume a Constituição Outorgada de 1824, que apresentou essas premissas no artigo 179, sob a égide “Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brasileiros”:

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: I. Nenhum Cidadão póde ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei. (texto na íntegra”) (BRASIL, 2014a).

A partir da década de 1960, progressivamente, é possível verificar o fortalecimento de uma atmosfera marcada pela maciça repressão, decorrente de um regime ditatorial, cujas características mais substanciais estão atreladas ao total desrespeito as instituições basilares de um Estado Democrático. Com realce, cuida salientar que a década de 1960, no cenário pátrio, inaugurou o período de ditadura militar, caracterizado pela supressão de garantias e pelo aviltamento aos direitos essenciais do indivíduo, bem como pelo desrespeito aos aspectos basilares da Tripartição de Poderes. Subsistiu, assim, o ultraje ao cidadão, enquanto ser humano dotado de potencialidades a serem desenvolvidas, as quais foram abreviadas pelo regime ditatorial adotado.

Todavia, com o decorrer das décadas e a insatisfação popular, buscando o estabelecimento da democracia, tal como dos ideários por ela ostentados, a ditadura militar brasileira ruiu, em meados da década de 1980. Em razão de tais fatos, tornou-se imperiosa a construção de uma Carta Política que agasalhasse, em suas linhas, os anseios básicos da população, bem como os valores ultrajados e desrespeitados por um regime ditatorial, resguardando, por consequência, a população da manifestação arbitrária do ente estatal. Desta sorte, o constituinte de 1988, influenciado por tais necessidades, inaugurou uma nova ordem, cujo pavilhão orientador estava alicerçado no garantismo constitucional. Neste sentido, ao adentrar nas linhas da Constituição Cidadã, vislumbra-se que o princípio da legalidade, no que concerne ao particular, foi abarcado no artigo 5°, incisos II e XXXIX, como cláusulas pétreas, elencando tal preceito como Direitos e Garantias Fundamentais. Destarte, urge trazer à tona a redação dos referidos incisos, os quais sustentam:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (omissis) II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (omissis) XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 2014b).

Por outra banda, ostentando o reverso desta liberdade restringida pela lei, ao administrador público só lhe é conferida a capacidade para agir em conformidade com os regramentos alinhados pelo próprio povo na Casa Legislativa ou de internos inerentes aos atos administrativos. Consagrado na redação do caput do artigo 37 da Carta de Outubro de 1988, o princípio da legalidade figura, dentro da Administração Pública, como diretriz fundamental, mormente no que concerne aos regramentos de seus agentes. Com efeito, o constituinte desfraldou flâmula orientadora para atuação da Administração Pública, vinculando, via de extensão, o seu comportamento e tomada de decisão em consonância com os baldrames emanados pelo corolário em comento. O mandamento em exame, fruto da evolução política no decorrer de séculos, tem por embrião a criação do Estado de Direito, isto é, o Estado deve respeitar as próprias leis que produz.

Nesta esteira, adotando por preceito as ponderações vertidas até o momento, é possível colocar em destaque que a atividade administrativa, em sua atuação, reclama prévia autorização dos diplomas normativos, pois, caso contrário, materializa atividade ilícita. Ao lado disso, com o escopo de robustecer as ponderações aventadas, é possível evidenciar que “significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 21).  Bem se amolda ao esposado a premissa de que a vontade da Administração Pública tem como variante originária o que da lei decorre, ou seja, não se vislumbra uma essência subjetiva, ao contrário tem como ponto de derivação a redação das normas que integram o ordenamento jurídico. “A Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei(PIETRO, 2013, p. 65). Nesse sentido, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“No Estado de Direito a Administração só pode agir em obediência à lei, esforçada nela e tendo em mira o fiel cumprimento das finalidades assinaladas na ordenação normativa. Como é sabido, o liame que vincula a Administração à lei é mais estrito que o travado entre a lei e o comportamento dos particulares. Com efeito, enquanto na atividade privada pode-se fazer tudo o que não é proibido, na atividade administrativa só se pode fazer o que é permitido. Em outras palavras, não basta a simples relação de não-contradição, posto que, demais disso, exige-se ainda uma relação de subsunção. Vale dizer, para a legitimidade de um ato administrativo é insuficiente o fato de não ser ofensivo à lei. Cumpre que seja praticado com embasamento em alguma norma permissiva que lhe sirva de supedâneo” (MELLO, 2013, p. 976).

Ora, é patente que a legalidade, enquanto corolário da administração, implica em o administrador público ter sua atuação condicionada aos mandamentos dos diplomas normativos e às exigências do bem comum. Nesta esteira, ainda, não é possível que aquele se afaste ou mesmo desvie de tais preceitos, sob pena de praticar ato eivado de invalidade, tal como se expor a responsabilidade de essência disciplinar, civil e criminal, conforme a situação concreta materializada. “A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. É o que diz o inc. I do parágrafo único do art. 2º da lei 9.784/99” (MEIRELLES, 2012, p. 89). Desta maneira, resta clarividente que, além da atuação em consonância com o contido nos diplomas normativos, a legalidade significa, igualmente, a observância dos princípios administrativos. No mais, em sede de Administração Pública inexistem liberdade e vontade pessoal.

Neste sentido, inclusive, pode-se frisar, segundo os ensinamentos de Gasparini (2012, p. 61), o princípio da legalidade é a lídima manifestação de estar a Administração Pública, ao exercer sua atividade, atrelada aos postulados insculpidos na lei, não podendo, em hipótese alguma, dela se afastar, pois, caso o faça, a consequência imediata é a invalidade do ato e a responsabilidade do autor.  Em aspectos teóricos, pode-se, por fim, gizar que o princípio da legalidade é base de todos os demais princípios que instruem, limitam e vinculam as atividades administrativas, sendo que a Administração só pode atuar conforme a lei. Consoante assentado por Perlingeiro

“O princípio da legalidade visa à submissão da Administração ao direito, e a sua previsão nas leis de procedimento administrativo tende a reforçá-lo […] Ademais, é bom frisar que a Administração deve zelar não apenas pela legalidade ou pela constitucionalidade, mas também pela convencionalidade, e, dessa forma, está autorizada a descumprir a lei ou a norma administrativa, desde que, sem prejuízo do princípio da subordinação hierárquica, represente aos órgãos de controle competentes para a declaração de anticonvencionalidade ou de inconstitucionalidade” (PERLINGEIRO, 2012, p. 10).

Cuida salientar, oportunamente, que deverá a Administração Pública operacionalizar, de maneira eficaz, o procedimento atinente à representação, não sendo, porém, justificável omitir-se ou conformar-se com a legislação considerada inconstitucional ou anticonvencional, aguardando, conforme observa Perlingeiro (2012, p. 10), a intervenção jurisdicional, quer seja nacional, quer seja internacional. “A autoridade administrativa poderá deixar de cumprir a lei ou o ato que considerar inconstitucional ou anticonvencional, representando ao órgão competente para a declaração de inconstitucionalidade ou de anticonvencionalidade” (GRINOVER et all, 2012, p. 08). Nesta linha, observa-se que o princípio da legalidade configura verdadeira flâmula de vinculação da Administração Pública, incidindo, inclusive, em sede de jurisdição administrativa.

2.2 Princípio da Isonomia

Em um primeiro momento, prima pontuar que o corolário da impessoalidade administrativa, expressamente inserido no caput do artigo 37 da Constituição de 1988, equivale ao princípio da igualdade administrativa e, segundo Ricardo Perlingeiro (2011, p. 106), “não passa de uma especificidade do princípio geral da igualdade previsto no art. 5º, caput, do texto constitucional”. O corolário em apreço preconiza a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontram em idêntica situação jurídica. Nessa linha, para que haja verdadeira igualdade administrativa, é imprescindível  que a Administração volte-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, consequentemente, o favorecimento de alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros. Sobre o corolário em análise, Carvalho Filho (2011, p. 19) já afixou que “como a lei em si mesma deve respeitar a isonomia, porque isso a Constituição obriga […], a função administrativa nela baseada também deverá fazê-lo, sob pena de cometer-se desvio de finalidade, que ocorre quando o administrador se afasta do escopo que lhe deve nortear o comportamento”.

Ao lado disso, o princípio em destaque, também, está previsto na Lei Nº 9.784/1999, devendo, pois, guiar o conteúdo das decisões e dos atos administrativos, não sendo, em decorrência de tal axiologia, permitido o tratamento diferenciado de cidadãos que se encontram em idêntica situação. Ao voltar uma análise para a concreção do princípio da isonomia, em sede de Poder Judiciário, notadamente nas demandas que orbitam causas de direito público, em que esteja em análise o comportamento ou atuação administrativa de alcance geral, a isonomia que deriva da prestação jurisdicional é duplamente necessária, maiormente em decorrência do dever de igualdade a que a Administração Pública, na esfera material e extrajudicial, sempre estava subordinada. “Resvalando inevitavelmente na justiça administrativa, a impessoalidade da Administração é o epicentro de um dos maiores desafios da doutrina e do legislador contemporâneo, enquanto determinados à diminuição dos processos judiciais repetitivos em matéria de direito público” (PERLINGEIRO, 2011, p. 106).

“Não seria lógico que uma atuação administrativa originariamente dirigida à coletividade, uma vez judicializada, fosse oponível tão somente aos que se dispusessem demandar; o Judiciário não pode ser associado a uma exegese capaz de romper com o princípio da isonomia administrativa. Por outro lado, o princípio da igualdade a ser observado pela Administração não serve de justificativa para negar direitos subjetivos. Realmente, conceder a um cidadão um direito que também poderia ser estendido a todos os que estivessem na mesma situação, sem efetivamente estendê-lo, implode a ideia de igualdade. O erro, porém, está no fato de a Administração não estender esse benefício, e não no fato de o Judiciário reconhecer o direito.” (PERLINGEIRO, 2012, p. 11).

 Em uma feição mais processual, o corolário da igualdade, também, deve ser invocado na direção de paridade de armas, flâmula do princípio do contraditório, que, neste aspecto, não é materializado com grande clareza nas legislações concernentes aos procedimentos administrativos, a exemplo do que se verifica na justiça administrativa ou no direito processual civil. Mais que isso, consoante Moraes (2012, p. 12), não é permitido ao Poder Judiciário atuar como agente fomentador da estratificação social, pois a Administração Pública está vinculada aos princípios da isonomia e da legalidade. Ao lado disso, cuida salientar que, de acordo com o Código Modelo de Processos Administrativos para Ibero-América, a isonomina da Administração deve ser observada:

“Sempre que a questão de fundo de uma pretensão individual estiver relacionada com os efeitos jurídicos de um comportamento administrativo de alcance geral, o desfecho do conflito passará a ser do interesse da coletividade destinatária daquele comportamento e, portanto, a solução deverá advir de uma decisão administrativa, única e com efeitos erga omnes” (GRINOVER et all, 2012, p. 09).

Entretanto, concretamente, é possível verificar que, em multiplicidade de situações, a vinculação ora mencionada acaba por ser afastada, em decorrência de expressa determinação emanada pelo Poder Judiciário, notadamente quando profere decisões divergentes, acarretando que administrados, em situações fáticas idênticas, tenham tratamento distinto. Há que se reconhecer, no cenário apresentado, que um dos maiores desafios do direito administrativo contemporâneo está relacionado à ausência de uniformidade das decisões de cunho administrativo, no que concerne aos interessados na mesma situação fática, “alimentando a pluralidade de demandas repetitivas, principalmente na esfera jurisdicional, com o potencial de abalar a segurança jurídica” (PERLINGEIRO, 2012, p. 11). Assim, é imprescindível, sobretudo para salvaguardar a segurança jurídica, decisões isonômicas, diante de situações similares, evitando-se, por extensão, as contradições em julgamentos que reúnem os mesmos elementos e desencadeiam pronunciamentos distintos.

2.3 Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade

De início, o princípio da razoabilidade preconiza que a Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em alinho ao senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que sustentaram a outorga da competência exercida. Insta mencionar, oportunamente, que se pretende colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas as condutas que discreparem da razoabilidade, incoerentes ou praticadas em desacordo às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada, consoante aponta Mello (2013, p. 111). Mister faz-se, ainda, colacionar o entendimento explicitado pelo Supremo Tribunal Administrativo Português, ao julgar o Recurso Jurisdicional Nº JSTA00068476, de relatoria de Dulce Neto:

“Sustentar a existência de discricionariedade administrativa perante conceitos indeterminados e a sua insindicabilidade jurisdicional porque existem casos em que pode ser admitido mais do que um ponto de vista razoável ou casos em que pode subsistir uma dúvida ineliminável, é ignorar que o que se deve essencialmente controlar é o plano de justificação normativa que tem de servir de base à actividade de interpretação e integração dos conceitos, é a adequação e a idoneidade do processo de avaliação e valoração escolhido e dos parâmetros utilizados, e é a congruência e a razoabilidade da solução encontrada e da decisão tomada”. (PORTUGAL, 2014).

O princípio da proporcionalidade, por seu turno, enuncia que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade correspondente ao que seja, concretamente, demandado para cumprimento da finalidade do interesse público a que estão vinculadas. Ao lado disso, “segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito da competência” (MELLO, 2013, p. 113), superando, assim, os limites que naquele caso lhe corresponderiam. Como Perlingeiro aponta (2012, p. 10), apesar de ambos os princípios serem mencionados no artigo 2º da Lei Nº 9.784/1999, apenas o corolário da proporcionalidade foi explicitado, notadamente quando estabelece que é vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas consideradas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, devendo, pois, haver adequação entre meios e fins. Em tom de complemento ao exposto, Pietro, em sua obra, acena no sentido que:

“Embora a Lei nº 9.784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, separadamente, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro. Isto porque o princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser medida não pelos critérios pessoais do administrador, mas seguindo padrões comuns na sociedade em que vive; e não pode ser medida diante dos termos frios da lei, mas diante do caso concreto. Com efeito, embora a norma legal deixe um espaço livre para decisão administrativa, segundo critérios de oportunidade e conveniência, essa liberdade às vezes se reduz no caso concreto, onde os fatos podem apontar para o administrador a melhor solução […] Se a decisão é manifestamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado os limites da discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade” (PIETRO, 2013, p. 81).

Quadra apontar, oportunamente, que essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado – inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa –, adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, questões pertinentes ao direito administrativo. Ao lado disso, cuida anotar que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são cânones do Estado de Direito, bem como regras que tolhem toda ação ilimitada do poder do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de autoridade. Ademais, consoante Piske (2011, s.p.), os preceitos ora mencionados são responsáveis por obstar o próprio alargamento dos pontos limítrofes do Estado, ao legislar sobre matéria que abrange direta ou indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos fundamentais, sendo, portanto, dotados de força cogente, no que concerne à sua normatividade e vinculação, inclusive da Administração Pública.

Há que se rememorar que o princípio da proporcionalidade ambiciona inibir e neutralizar o abuso do Poder Público no exercício de suas funções que lhes são inerentes. A partir de tal perspectiva, o postulado em apreço, na condição de categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como parâmetro para aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. “Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável”, consoante já decidiu o Ministro Celso de Mello, ao relatoriar o Habeas Corpus Nº 111.844 (BRASIL, 2014d), prevenindo, assim, a produção, em sede de comportamento institucional, de situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, subversão dos fins que orienta o desempenho da função estatal. Nesta esteira, ainda, é possível salientar que os princípios em comento encontrarão sedimento autorizador de sua incidência, em conjunto com os corolários da legalidade, da igualdade e da segurança jurídica, notadamente quando se verificar a atuação discricionária da Administração Pública.

2.4 Princípios da Segurança Jurídica e da Confiança Legítima

O princípio da segurança jurídica opera como limitante ao poder de autotutela da Administração, eis que o desfazimento dos atos, das normas ou das decisões administrativas, quando inquinados de ilegalidade, mas que tenham produzido efeitos favoráveis aos administrados, reclama processo judicial e deve ocorrer, em uma ótica objetiva, somente dentro de prazo determinado, ressalvada a hipótese de comprovação de má-fé, ou, em uma seara subjetiva, quando não implicar quebra de confiança do interessado na estabilidade do comportamento da Administração. Expressamente incluído no artigo 2º, caput, da Lei Nº 9.784/1999, o corolário em comento buscou vedar a aplicação retroativa da nova interpretação de lei no âmbito da Administração Pública. Pietro aponta que:

“O princípio [da segurança jurídica] se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação em determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera segurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública. Daí a regra que veda a aplicação retroativa” (PIETRO, 2013, p. 85).

Nesta esteira, apontar é carecido que o princípio da segurança jurídica não deve ser empregado como obstáculo que impeça a Administração de anular atos praticados com inobservância da lei. Em sobredita situação, prima sublinhar que não se trata de mudança da interpretação, mas sim do reconhecimento da ilegalidade que inquina o ato administrativo, produzindo, em decorrência disso, efeitos retroativos, porquanto atos ilegais não têm o condão de gerar direitos. Consoante anota Perlingeiro (2012, p. 11), em sede de direito administrativo francês, o princípio da segurança jurídica está vinculado aos princípios da irretroatividade e d o respeito aos direitos adquiridos (situações consolidadas legalmente). “Caso haja modificação de uma situação estabilizada, porém ilegal, a Administração francesa concilia os princípios de segurança jurídica com a ‘obrigação de restabelecer uma situação conforme o direito’ e, assim, a decisão administrativa constitutiva de ‘direitos’ contra legem podem ser desfeita, mas desde que dentro de um prazo” (PERLINGEIRO, 2012, p. 11).

Convém, ainda, salientar que o ideário axiológico da segurança jurídica tem estreita relação com a boa-fé, eis que, se a Administração adotou determinada interpretação como a correta e a aplicou a casos concretos, não pode, posteriormente, vir a anular atos anteriores, sob o argumento de que esses foram praticados com arrimo em equivocada interpretação. “Se o administrado teve reconhecido determinado direito com base em interpretação adotada em caráter uniforme para toda a Administração, é evidente que a sua boa-fé deve ser respeitada” (PIETRO, 2013, p. 86). Ora, se a lei deve respeitar o direito adquirido, salta aos olhos que o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por obediência ao princípio da segurança jurídica, é inadmissível que o administrado tenha seus direitos flutuando sabor de interpretações variáveis e oscilantes com o decurso do tempo.

“Quanto ao princípio da segurança jurídica, a lei brasileira de procedimento administrativo, passível de críticas, adotou as seguintes regras: 1. Vedação da interpretação retroativa de norma administrativa (art. 2º, XIII); 2. Necessidade de motivação quando não se aplicar jurisprudência administrativa ou súmula vinculante (arts. 50, VII, e 64-A); 3. Necessidade de motivação dos atos ou decisões que importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo (art, 50, VIII); 4. Respeito aos direitos adquiridos como condição à revogação dos atos administrativos (art. 53); 5. Decadência de 5 (cinco) anos do poder de anular atos administrativos com efeitos favoráveis, salvo comprovada má-fé (art. 54); 6. Possibilidade de convalidação de atos com defeitos que não acarretem lesão ao interesse público ou a terceiros (art. 55)” (PERLINGEIRO, 2011, p. 107-108).

O princípio da confiança legítima, também denominado de princípio da proteção à confiança, por seu turno, está atrelado a uma dimensão subjetiva da boa-fé baseada nos direitos fundamentais, e derivado da segurança jurídica e do Estado de Direito. “Na realidade, o princípio da proteção à confiança leva em conta a boa-fé do cidadão, que acredita e espera que os atos praticados pelo Poder Público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros” (PIETRO, 2013, p. 87). Cuida assinalar que no direito brasileiro não há previsão expressa do princípio da proteção à confiança, o que não significa que ele não decorra implicitamente do ordenamento jurídico. Nesta toada, o princípio em comento salvaguarda a boa-fé do administrado, ou seja, a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na Administração Pública. Ora, há que se reconhecer que o particular confia em que a conduta da Administração esteja correta, de acordo com os ditames legais e axiológicos.

2.5 Princípio do Devido Processo Legal

De plano, quadra anotar que o corolário do devido processual legal o princípio fundamental da ordem jurídica, no que se diga, principalmente e especificamente, ao processo. Importante observar que o princípio do devido processo legal não possui tão somente relação com os princípios já mencionados anteriormente neste artigo, mas também com o princípio da legalidade e da legitimidade. Nesse propósito, Cintra, Dinamarco e Grinover (2010, p. 131), afirma que o devido processo legal é o “Processo devidamente estruturado, mediante o qual se faz presente a legitimidade da jurisdição, entendida jurisdição como poder, função e atividade”. Nesse mesmo diapasão, cuida transcrever o magistério de Acquaviva (2001, p. 34), em especial quando assevera que o princípio do devido processo legal: “Gera a garantia de que todo e qualquer processo se dá em relação a fatos cuja ocorrência é posterior às leis que os regulamentam; significa também que o poder Judiciário deve apreciar as lesões e ameaças à liberdade e aos bens dos indivíduos”.

Baptista (1997, p. 12) registra que “o processo tem de se submeter a um ordenamento preexistente e, se este alterar, estando em curso o processo, os atos já realizados serão respeitados”. Alvim (1999, p. 64), destaca que um dos exemplos do devido processo legal se encontra suscitado no princípio de que nula poena sine iudicio, ou seja, não há pena sem processo. No ordenamento jurídico, o princípio do devido processo legal está garantido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso LIV, o qual reza que: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 2014b). Para Fredie Didier Júnior (2009, p. 29-30), “o aludido princípio consiste no postulado fundamental do processo, podendo ser aplicado genericamente a tudo que disser respeito à vida, ao patrimônio e á liberdade. Inclusive na formação de leis”. Destarte, segundo ainda o eminente e considerável processualista:

“O devido processo legal aplica-se, também, às relações jurídicas privadas, seja na fase pré-contratual, seja na fase executiva, por a Constituição brasileira admitir através de sua “moldura axiológica” a ampla vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nela erigidos, de modo que não só o Estado como toda a sociedade podem ser sujeitos passivos desses direitos” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 29-30).

Importante destacar que, no entendimento majoritário, o devido processo legal representa um sobreprincípio, supraprincípio ou ainda princípio-base. Ademais, destaca-se que a dilatação das normas das garantias constitucionais processuais, bem como as penais e processuais penais não é um acontecimento somente brasileiro. Com a adoção da Convenção Europeia de Direitos Humanos por diversos países do mundo, ocorreu paralelamente a este fato, o alargamento especial dos direitos e garantias nela apreciados no domínio europeu. Isto é, por meio de uma explanação dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em concordância com o disposto na Convenção da Europa, verifica-se, atualmente, o eficaz aumento da definição dos direitos essenciais e fundamentais previstos constitucionalmente.

Neste mesmo diapasão, é necessário acordar que o artigo 6º, inciso I, da Convenção Européia dos Direitos do Homem, estabelece, dentre outros, o direito a um processo equitativo (o que seria o devido processo legal, mormente, o direito a um processo pisado na celeridade, ou seja, em um prazo aceitável e, que seja analisado, publicamente, por um tribunal ou foro autônomo e imparcial).  Jansen, nesse patamar, afirma que:

“É preciso que se diga que o princípio do devido processo legal inicialmente tutelava especial o direito processual penal, mas já se expandiu para processual civil e até para o administrativo. Em uma nova fase, invade a seara do direito material” (JANSEN, 2014, s.p.).

Há que se reconhecer que o devido processo legal, na condição de pilar robusto do sistema processual, compreendendo a esfera judicial e a órbita extrajudicial, reclama a imperiosa observância, já que encerra em seu âmago plural leque de princípios e corolários que norteiam a marcha processual, assegurando um desenvolvimento garantista e voltado para a busca da verdade real, sem que isso implique em desatendimento das estruturas axiológicas consagradas. José Afonso da Silva frisa, também, que:

“O principio do devido processo legal combinado com o direito de acesso à justiça (artigo 5º, XXXV), o contraditório e a ampla defesa (artigo 5º, LV), fecha o ciclo das garantias processuais. Assim, garante-se o processo com as formas instrumentais adequadas, de forma que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um, o que é seu” (SILVA, 2005, p. 431-432).

Anelada a estes entendimentos, destaca-se que o referido princípio é constitucionalmente aninhado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que através da limitação da atuação do Poder Estatal, visa a tutelar os bens maiores dos cidadãos, tais sendo vida, liberdade e propriedade. As ações estatais (jurisdicionais, legislativas ou administrativas) serão legítimas se implementadas sem atingir ou malferir arbitrariamente estes bens jurídicos mais essenciais do homem. Desta forma, legislador, administrador e julgador são dotados de poderes confinados pela exigência de respeito a esses valores fundamentais, e qualquer transgressão abusiva a estes limites, configura-se como violação à garantia do devido processo legal.

Reveste-se o dwe process of law da qualidade de postulado fundamental do Estado Democrático de Direito, que funde, agrega, sedimenta em seu conceito, de forma harmônica, os mais variados princípios constitucionais – como o direito a um procedimento ordenado, ao contraditório, à ampla defesa, ao juiz natural, à razoabilidade/proporcionalidade, à igualdade, à publicidade etc., todos eles oponíveis aos diferentes Poderes do Estado. E é a concretização deste princípio-síntese (due process of law) que assegura ao homem o amplo acesso a uma ordem jurídica justa.

Nota-se que ele é um amálgama, e não mera justaposição, de princípios. Justamente por ser a síntese, enquanto em determinadas situações um dos princípios cede passo em favor de outro, pode dizer-se que o devido processo legal sempre é aplicável em sua inteireza. Pode-se, ainda, dizer que o referido princípio é uma instituição jurídica provinda do direito-anglo-saxão e, portanto, de um sistema diverso das tradições romanas ou romano-germanas, quais os ibéricos e francês, por exemplo), no qual algum ato praticado por autoridade, para ser considerado válido, eficaz e completo, deve seguir todas as etapas previstas em lei, sendo ele originado na primeira constituição, conforme mencionado anteriormente.

Já no preceito de cunho constitucional, o corolário em comento adapta-se como garantia não somente pessoal, mas também coletiva, extravasando a esfera de abrangência original e adaptando-se aos diversos ramos do direito, podendo avançar também como o próprio poder legislativo do Estado, como uma restrição imposta ao próprio ato de se fazer uma lei, podendo então ser denominado como devido processo legislativo. Desta forma, verifica-se que o Princípio do Devido Processo Legal é miscigenado por diversas ramificações que possuem o condão de garantir aos cidadãos um procedimento judicial justo, eficaz e com direito de justificação, carecendo o Juiz estar submisso às características processuais e materiais deste princípio, conforme será exposto.    

3 O SISTEMA DE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA NO BRASIL: OS DESAFIOS DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO À LUZ DA TÁBUA PRINCIPIOLÓGICA

É fato que, em decorrência de um sistema de jurisdição una, expressado consagrado no Texto Constitucional, no qual estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Insta rememoras que aludida modalidade de jurisdição estabelece que todos os litígios, administrativos ou de caráter privado, estão sujeitos à apreciação e a decisão da Justiça comum, ou seja, aquela constituída por juízes e tribunais do Poder Judiciário. Insta anotar que, em sede de sistema da unidade da jurisdição – una lex una jurisdictio -, somente os órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário exercem a função jurisdicional e proferem decisões com o caráter de definitividade. Está-se, assim, diante de um cenário em que se pode afirmar que o direito administrativo brasileiro possui dois grandes desafios em matéria de procedimentos administrativos. “Tratam-se dos princípios de direito material, da igualdade e da segurança jurídica, que, quando mal concretizados, podem pôr em xeque a finalidade dos procedimentos administrativos”, conforme estabelecido por Perlingeiro (2011, p. 114).

“A respeito da jurisdição administrativa, mais importante do que conceber uma estrutura judiciária autônoma é acolher princípios e regras que compatibilizem o interesse público com o interesse privado na formação de decisões sobre atuações administrativas, individuais ou gerais, inclusive atos políticos ou de governo, editados por quaisquer dos poderes do Estado ou por particulares no exercício dessas atuações” (GRINOVER et all, 2012, p. 06)

A primeira questão é referente à extensão erga omnes dos efeitos favoráveis das decisões e pronunciamentos administrativos. Ora, se por um lado, os procedimentos administrativos visam legitimar a atuação administrativa, por meio de prévia oportunidade de participação efetiva dos interessados – substancializado pelos direitos de petição, de ampla defesa e de contraditório -, por outro lado, não seria adequado que aqueles que optassem pela via ora supramencionada fossem os únicos beneficiados pelo pronunciamento administrativo, sobretudo quando se verifica que existem outras pessoas diante das mesmas situações de fato e de direito. Com efeito, insta anotar, oportunamente, que tal situação compreende aqueles que poderiam ser beneficiados pelo pronunciamento administrativo e não as pessoas cujo direito possa ser tangido pela decisão.

“Ninguém duvida que a Administração esteja submetida ao princípio da igualdade. Mas então, por que também continuamos a permitir que interpretações diferenciadas da ordem jurídica possam resultar decisões administrativas conflitantes? Por que exigir das pessoas procedimentos administrativos para obter direitos subjetivos que já tenham sido concedidos pela Administração a outros em idênticas condições? Não deve a Administração agir de ofício?” (PERLINGEIRO, 2011, p. 115).

Nesta linha, o problema repousa na premissa quando as pretensões são individuais somente na aparência estrutural. Entretanto, a questão de fundo de uma pretensão individual estiver relacionada com os efeitos jurídicos de um comportamento administrativo que permite um alcance geral. Verifica-se, concretamente, que o desfecho do conflito, em decorrência da identidade da questão de fundo, passará a ser do interesse da coletividade destinatária daquele comportamento e, portanto, a solução produzida deverá advir de uma decisão administrativa, única e com efeitos erga omnes. Nesta linha, cuida anotar que não se trata de permitir a participação popular no procedimento administrativo de elaboração dos atos administrativos com efeitos gerais, mas sim no estabelecimento de instrumentos procedimentos concernentes às pretensões que tenham origem controvérsias associadas com os efeitos concretos de atos gerais, de normas administrativas ou da própria lei.

A ausência de norma legislativa competente para a proteção dos interesses coletivos nos procedimentos administrativos leva a outra situação considerada mais grave, eis que ocasiona processos repetitivos na justiça administrativa, causando a ocorrência de um acervo processual que não consegue receber vazão, sendo estruturados instrumentos apenas para tentar auxiliar na diminuição. Em que pese a problemática existente, é possível afirmar que a solução para tal questão reside na possibilidade da Administração estender, de maneira automática e uniforme, os efeitos favoráveis de uma decisão que tenha reconhecido o interesse coletivo, ainda que incidentalmente, a todos os procedimentos que se encontrarem na mesma situação de fato e de direito, mesmo que não estejam representados no procedimento administrativo. Com efeito, cuida reconhecer que tal perspectiva encontra-se intimamente associada ao ideário de expurgar, da própria Administração, a tolerância de decisões discrepantes, sendo imprescindível, conforme Perlingeiro (2011, p. 117) observa, a reestruturação das competências administrativas.

A segunda problemática identificada faz menção à boa-fé como um dos elementos preponderantes para a segurança jurídica, maiormente em sede das demandas envolvendo a Administração. Pietro (2013, p. 88) explicita que “o princípio da boa-fé abrange um aspecto objetivo, que diz respeito à conduta leal, honesta, e um aspecto subjetivo, que diz respeito à crença do sujeito de que está agindo corretamente”. Em sede da Lei Nº 9.784/1999, convém destacar que a legislação sequer sublinha a possibilidade da instrumentalização da ampla defesa ou do contraditório, na condição de cânones do devido processo legal, em procedimento administrativo. Tal fato deriva da premissa que a convalidação do ato inválido não depende apenas do reconhecimento da boa-fé, mas sim essa associada ao transcurso do lapso temporal de cinco anos, o que, nos dizeres de Ricardo Perlingeiro (2011, p. 118), “é demasiadamente extenso e, por si só, contrário à ideia de segurança ou confiança legítima”.

“O artigo 54 da Lei nº 9.784/99 agasalhou uma hipótese em que é possível a aplicação dos três princípios [segurança jurídica, proteção à confiança e boa-fé], quando estabelece que “o direito da Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Trata-se de mais uma hipótese em que o legislador, em detrimento do princípio da legalidade, prestigiou outros valores, como o da segurança jurídica, nos aspectos objetivo e subjetivo; também prestigiou o princípio da boa-fé quando, na parte final do dispositivo, ressalvou a hipótese de ocorrência de má-fé” (PIETRO, 2013, p. 89).

Com efeito, a crítica descansa na premissa que a boa-fé empregada para convalidar atos administrativos inválidos, com efeitos favoráveis, logra êxito apenas após o transcurso do período de cinco anos. Ora, com bastante pertinência, em suas exposições, Perlingeiro (2011, p. 118-119) indaga-se como admitir segurança jurídica em um cenário que a Administração Pública conta com o prazo de cinco anos para invalidar um ato administrativo, aparentemente legal, mesmo quando o administrado têm direitos consolidados e está calcado na boa-fé? Ora, o transcorrer do lapso temporal não se apresenta como o único elemento a ser considerado pelo princípio da segurança jurídica, razão pela qual deveria ser considerado independente do corolário da boa-fé, para fins de convalidação dos atos administrativos inválidos. Inclusive, sobre a questão posta em análise, o Supremo Tribunal Federal já assentou, ao julgar a Ação Cível Originária Nº 79, de relatoria do Ministro Cézar Peluso, que:

“Ora, assim como no direito alemão, francês, espanhol e italiano, o ordenamento brasileiro revela, na expressão de sua unidade sistemática, e, na sua aplicação, vem reverenciando os princípios ou subprincípios conexos da segurança jurídica e da proteção da confiança, sob a compreensão de que nem sempre se assentam, exclusivamente, na observância da pura legalidade ou das regras stricto sensu. Isto significa que situações de fato, quando perdurem por largo tempo, sobretudo se oriundas de atos administrativos, que guardam presunção e aparência de legitimidade, devem estimadas com cautela quanto à regularidade e eficácia jurídicas, até porque, enquanto a segurança é fundamento quase axiomático, perceptível do ângulo geral e abstrato, a confiança, que diz com a subjetividade, só é passível de avaliação perante a concretude das circunstâncias. A fonte do princípio da proteção da confiança está, aí, na boa-fé do particular, como norma de conduta, e, em consequência, na ratio iuris da coibição do venire contra factum proprium, tudo o que implica vinculação jurídica da Administração Pública às suas próprias práticas, ainda quando ilegais na origem. O Estado de Direito é sobremodo Estado de confiança. E a boa-fé e a confiança dão novo alcance e significado ao princípio tradicional da segurança jurídica, em contexto que, faz muito, abrange, em especial, as posturas e os atos administrativos, como o adverte a doutrina, relevando a importância decisiva da ponderação dos valores da legalidade e da segurança, como critério epistemológico e hermenêutico destinado a realizar, historicamente, a ideia suprema da justiça […]” (BRASIL, 2014d, p. 07-08).

Nesta premissa, a segurança jurídica consagraria, sobremaneira, a estabilidade ao beneficiário (destinatário ou terceiro) do ato administrativo a ser desfeito, compreendendo tal vocábulo tanto a revogação quanto a anulação, decorrente da boa-fé depositada por aquele, independente do cômputo ou do aperfeiçoamento do prazo. Nesta linha de dicção, o contraditório e a ampla defesa, em um procedimento ou processo destinado ao desfazimento do ato favorável, teriam por escopo aferir a presença de boa-fé, nestas circunstâncias, culminaria na preservação da situação ou, caso não conveniente ao interesse público, à apuração de perdas e danos, como já sublinhou Perlingeiro (2011, p. 119). “A essencialidade do postulado da segurança jurídica e a necessidade de respeitarem situações consolidadas no tempo, amparadas pela boa-fé do cidadão […] representam fatores a que o Judiciário não pode ficar alheio” (BRASIL, 2014d), consoante voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, em sede de Mandado de Segurança Nº 26.117/DF Em tom de complemento, é possível transcrever, oportunamente, as ponderações apresentadas no voto da Ministra Cármem Lúcia, em sede de julgamento da Ação Cível Originária Nº 79, em especial quando aponta que:

“Entretanto, como é próprio do Direito Administrativo, e isto desde muito tempo, a circunstância de haver mesmo atos ilegais, por exemplo, um funcionário, o chamado de fato, que entra ilegalmente, pratica atos, convalidam-se esses atos, porque os terceiros de boa-fé não podem ser aqueles que respondem exatamente por essas consequências”. (BRASIL, 2014d, p. 74).

Em que pese a solução clara que ofusca os olhos, convém mencionar que havendo a boa-fé, deverão os direitos subjetivos ser preservados, convalidando-se o ato administrativo inválido ou, ainda, em observância ao interesse público, promovendo-se uma reparação econômica em favor do cidadão. Inexistindo boa-fé, o transcurso do lapso temporal, cujo cômputo se inicia a partir do conhecimento da invalidade, pode ser considerado, para o mesmo fito de convalidação, excepcionadas as hipóteses de fraude e corrupção. Assim, não cabe interpretação administrativa inovadora da lei com efeitos retroativos, orientados à promoção da restrição ou da negação de direitos subjetivos que tenham sido constituídos anteriormente. Desta feita, não cabe interpretação em detrimento de efeitos favoráveis de fatos ocorridos, quando situações jurídicas idênticas eram reconhecidas pela Administração.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De início, cuida anotar que o sistema de jurisdição unificada, expressamente adotado pelo Texto Constitucional, incumbindo ao Poder Judiciário à apreciação e a resolução das lesões e ameaças de direito, emanando pronunciamentos, o que contribui, de maneira direta, em decorrência do sistema processual vigente, no congestionamento e na morosidade da marcha processual, qualificando, assim, o descontentamento da população jurisdicionada. Conforme dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, as causas originárias da relação jurídica de direito público representam maioria em tramitação no Poder Judiciário nacional, o que, imperiosamente, reclama a necessidade de aperfeiçoamento dos procedimentos para uma diminuição das demandas envolvendo tais assuntos.

Assim, melhor seria se o sistema brasileiro contivesse uma tábua estruturada dos princípios elementares da justiça administrativa, que, efetivamente, mantém com os procedimentos administrativos uma inevitável relação de dependência. Ora, há que se anotar que a efetividade ou a ausência de efetividade no procedimento administrativo produz efeito diretamente na justiça administrativa. Mais que isso, não se pode olvidar que o impacto dessas questões resulta na emergência de uma estruturação processual peculiar para atender as necessidades de oferecer respostas a uma espécie diferenciada de litígio, apartada daqueles tradicionalmente abarcados no processo civil.

 

Referência:
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Notas:
[1] Neste sentido: Em sede de exposição de motivos do Projeto de Código Modelo de Processos Administrativos – Judicial e Extrajudicial – para Ibero-América, Ada Pellegrini Grinover et all (2012, p. 04) faz expressa menção aos corolários fundamentais do processo administrativo extrajudicial: “Os princípios fundamentais do processo administrativo extrajudicial foram classificados quanto à sua natureza material ou processual. Os princípios que regem a Administração, na dicção do Projeto, são os da constitucionalidade, convencionalidade, legalidade, moralidade, boa-fé, impessoalidade, publicidade, eficiência, motivação,  proporcionalidade, razoabilidade, segurança jurídica e confiança legítima (art. 2o). Além destes, incluem-se como princípios próprios do processo administrativo extrajudicial os da isonomia, contraditório, ampla defesa, razoável duração do processo, oficialidade, verdade material, preclusão administrativa e formalismo moderado (art. 4o)”.


Informações Sobre o Autor

Tauã Lima Verdan Rangel

Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES


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