Breve exposição da (fatídica) história tributária brasileira

Resumo: Existem, no planeta, poucas nações com um produto interno bruto, PIB, superior a R$ 1 trilhão. E estas se encontram no rol das mais ricas. No Brasil, essa quantia é um pouco inferior ao que é anualmente arrecadado em tributos. Somente no estudo da evolução histórica podemos começar a desvendar os motivos determinantes do presente quadro, a estarrecer a sociedade e prejudicar o desenvolvimento nacional.

Palavras-chave: Tributos. Brasil. História.

Abstract: There are, on the planet, few nations with a gross domestic product, GDP, more than US $ 1 trillion. And these are on the list of the richest. In Brazil, this amount is slightly lower than what is collected annually in taxes. Only historical evolution of the study we can begin to unravel the motives for this framework, the terrifying society and affect national development.

Keywords: Taxes. Brazil. History.

Sumário: 1) Antes de 1988; 2) No ano de 1988; 3) No ano de 1988; 4) Depois de 1988; 5) Considerações finais; 6) Referências.

1 – Introdução

“A verdade econômica é a fantasia organizada” George Orwell [1]

É de Cícero a passagem que diz que “não saber o que aconteceu antes do teu nascimento seria para ti como permanecer criança para sempre” (BARELLI; PENNACHIETTI, 2001, p.626). Porém, cá entre nós, fixar o olhar no passado recente da tributação no Brasil é uma tarefa realmente complexa, pela óbvia constatação de que esse é um pesadelo do qual ainda estamos longe de acordar. Passamos, portanto, a expor as origens do problema.

2 – Antes de 1988

A estrutura vigente à época do Império tinha a economia lastreada em uma base agrícola e amplamente aberta ao capital estrangeiro. Dessa forma, o comércio exterior prevaleceu durante todo esse período, destacando-se o imposto de importação, que, em alguns anos, respondeu por 70% da receita pública total. E a influência era tamanha que, mesmo às vésperas da proclamação da República, tal imposto participava em metade da receita do governo (VARSANO, 1996).

Com a proclamação da República até meados da década de 1930, o sistema tributário brasileiro persistiu, com algumas alterações, nos mesmos parâmetros. A Constituição de 1891, sem modificar o quadro premente, introduziu um regime de separação de fontes tributárias, com a adoção do regime federativo, sucedendo a discriminação dos impostos de competência exclusiva da União e dos estados, haja vista a necessidade de dotação de receitas que lhes permitissem a recém-adquirida autonomia financeira. A estrutura republicana, comparada à do Império, era mais enxuta, tendo havido a extinção de alguns impostos que integravam o orçamento federal em 1889. Ainda assim, a agricultura e o comércio exterior continuavam preponderantes. Afora isso, União e estados gozavam de liberdade para criar outras receitas tributárias (VARSANO, 1996; GIAMBIAGI; ALÉM, 2008).

Entretanto, não houve quem se preocupasse, àquele momento, com o efeito dos tributos sobre o contribuinte ou a economia, nem com o tamanho ou a exploração de novas bases para tributação.  O avanço da produção cafeeira, o fim da escravatura, a entrada maciça de imigrantes, a ampliação do trabalho assalariado e o progressivo aumento da participação nos fluxos comerciais e financeiros da economia internacional não foram suficientes para alterar, substancialmente, as bases produtivas do país, mantendo-se as características de uma economia agroexportadora, de forma que os resultados desse modelo não foram favoráveis para a manutenção da harmonia federativa e, por conseguinte, da estabilidade tributária (OLIVEIRA, 2010).

E a situação que transparece tem explicações, a começar pelos ventos liberais que sopravam por todo o mundo, que levaram o Estado a assumir papéis bem restritos e delimitados, abreviando, sobremaneira, o volume de recursos a serem extraídos do setor privado, além da influência deixada na sociedade pelas marcas “sombrias” das épocas da Colônia e do Império, em relação a impostos exagerados e, por vezes, ilógicos, influenciando, e muito, a próxima Constituinte na redefinição do sistema tributário (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008). Nesse contexto, a tributação visava “prover o governo de recursos destinados a desempenhar suas limitadas atividades, inexistindo seu manejo enquanto instrumento de política econômica voltada para outros objetivos” (OLIVEIRA, 2010, p.11).

Foi a Carta Magna de 1934, e a legislação desse período, que erigiram as condições para uma posterior evolução. A revisão do pacto federativo foi necessária, de modo que as principais modificações se deram nas esferas estadual e municipal. Passaram a predominar os impostos internos sobre produtos. Em relação à distribuição das competências, pela primeira vez, atribuiu-se, constitucionalmente falando, um campo próprio aos municípios, com uma estrutura de cinco tributos. Já quanto à composição da receita tributária federal, o imposto de importação figurou como principal fonte de recursos antes de 1930, somente daí em diante é que o imposto sobre consumo o superou. Outra novidade trazida por essa Constituição foi a repartição das receitas entre os diversos entes federados, e a liberdade para que  União, estados e municípios pudessem criar outros impostos. Ao governo federal continuavam a exclusividade sobre os impostos de renda e consumo existentes (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008; VARSANO, 1996).

Já a Lei Maior de 1937 não trouxe grandes alterações. Pode-se listar que os estados perderam a faculdade de tributar o consumo de combustíveis e os municípios de tributar a renda das propriedades rurais. A respeito da União, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, há a queda na participação do imposto de importação na receita federal. Esse episódio é importante, pois tal mutação facilitou, e porque não dizer, inaugurou a decisão de utilizar o manejo da importação e da exportação de produtos como instrumento extrafiscal, a partir dos anos 1950. Colocando de outra forma, a União começava a intervir diretamente no desenvolvimento do país, por meio de instrumentos fiscais (VARSANO, 1996).

O objetivo do governo brasileiro era levar à frente o projeto de desmonte das estruturas oligárquicas e transferir para o Poder Central a tomada de decisões estratégicas referentes à política econômica, e a tributação integrava esse plano, uma vez que o financiamento da receita pública era uma demanda ascendente e preocupante (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008). Visto isso, como a maior parte do sistema era ainda o herdado da proclamação da república, uma mudança empreendida para fazer com que a entrada de recursos aumentasse se traduziu na melhoria do aparelho arrecadador. Relevante, nesse intento, foi a reforma realizada em 1934 e culminada em 1937, na instituição responsável pela cobrança dos tributos, que levou ao surgimento da Direção-Geral da Fazenda Nacional (DGFN). Com isso, os impostos federais passaram a contar com cobertura nas áreas de fiscalização, arrecadação e apoio administrativo. Entretanto, tal esforço não se traduziu em eficiência, uma vez que os resultados demoraram a aparecer, fato que permaneceu imutável até a década de 1960 (OLIVEIRA, 2010).

O advento da Constituição de 1946 demudou nosso sistema tributário. Aumentou-se a receita dos municípios, com a inclusão de dois novos impostos na sua esfera de competência. Também se institucionalizou um sistema de transferência, o que decompôs a discriminação de rendas entre as esferas de governo, muito embora a teoria tenha destoado da prática. Frise-se que impostos sobre consumo seguiram adquirindo relevo, sendo responsáveis, agora, por mais de 45% da receita tributária da União (VARSANO, 1996; OLIVEIRA, 2010). Majorou-se o peso relativo dos impostos internos sobre produtos. “Em outras palavras, o Brasil entrou em uma fase em que a tributação sobre bases domésticas passou a ser crescentemente a mais importante, simultaneamente ao início de um processo de desenvolvimento industrial sustentado” (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008, p.245).

Todavia, com a industrialização e o incremento do mercado nacional, houve um crescimento das despesas que não pôde ser acompanhado pelo das receitas, de forma que o sistema tributário se mostrava insuficiente e beirava a exaustão, com o equilíbrio fiscal se apresentando cada vez mais delicado. Também o Estado crescia em tamanho e em atribuições, e os anos passaram sem que se atentasse para o problema que isso geraria num futuro não tão distante. O colapso era iminente, e as esporádicas microrreformas já eram tidas como ineficientes, se prestando somente para revelar que algo precisava ser feito (VARSANO, 1996; OLIVEIRA, 2010).

De fato, não demorou muito, pois, diante da crise econômica e política por que passávamos na década de 1960, a reforma tributária sobrevém como prioritária. Não apenas para resolver a imensa dificuldade orçamentária, como, principalmente, para prover recursos para o Estado. Existia uma consciência no Poder Central de que era necessário, especialmente prioritário, reorganizarem-se os diversos setores da vida nacional, as denominadas “reformas de base”, e a mudança da estrutura fiscal era apenas uma delas. Tratava-se, pois, de uma estrutura tributária arcaica, intrincada e não mais capaz de prover os recursos adequados para o correto e pleno desempenho dos papéis estatais, isso sem incorrer em fortes e irreversíveis desequilíbrios estruturais (OLIVEIRA, 2010; VARSANO, 1996).

No entendimento dos especialistas, o aparelho arrecadador estatal era falho. A Administração Tributária, ao menos a federal, não funcionava adequadamente. Gastava-se muito para arrecadar pouco. “O próprio Ministro da Fazenda na época estimava que seria possível, apenas com a melhoria da administração fazendária, sem qualquer mudança nos tributos, arrecadar adicionalmente, no mínimo, valor equivalente a 2/3 da receita estimada para 1963” (VARSANO, 1996, p.7).

Criada pelo Ministério da Fazenda, em 1963, uma Comissão de Reforma tinha a tarefa – nada fácil – de modernizar a Administração Fiscal federal. E sucedeu que, como se esperava, houve uma expansão das atividades inicialmente estabelecidas, de maneira que, com o golpe de 1964, a revisão global da situação tributária nacional adquiriu impulso. “Passou-se a encontrar menos obstáculos institucionais e políticos, bem assim menos resistência por parte de interesses criados” (VARSANO, 1996, p.9). A militarização do poder havia permissionado a reforma ansiada, haja vista que as coisas, agora, eram ditadas, de cima para baixo, sem longas discussões ou empecilhos. E a chuva passageira assumira ares de forte tempestade, com a tributação sendo definitivamente alterada e recolocada em seus eixos (OLIVEIRA, 2010).

A racionalização era o foco, com apoio em medidas que, de imediato, contribuíssem para a reabilitação das finanças federais e que, de outro lado, atendessem de forma mais urgente os reclamos de alívio tributário dos setores empresariais, os quais constituíam a base do novo regime. E uma transformação, realmente grande e importante, preparava-se para ganhar a realidade.

Essa reforma tributária dos militares, que teve início com a Emenda Constitucional nº 18, de 1965, completou-se com a aprovação do Código Tributário Nacional, em 1966, documento legal que marca o fim dos trabalhos. E um de seus admiráveis aspectos foi a alteração da sistemática de arrecadação, priorizando a tributação sobre valor agregado, em vez daquele “em cascata”, referente a impostos cumulativos. Fechou-se a porta para que os entes federados criassem indiscriminadamente novos impostos, sendo essa tarefa restringida à União, o que levou à égide de três sistemas tributários distintos: o federal, o estadual e o municipal (OLIVEIRA, 2010).

Certos impostos foram extintos, outros renomeados, todos tendo suas bases de incidência muito bem definidas, e, ainda, alguns tributos assumiram feição econômica, viabilizando as políticas extrafiscais. O Estado, agora, atuava diretamente na economia, impulsionando ou desincentivando importações ou exportações, e regulando o consumo. Ainda na esteira da inovação, foram criados dois impostos sobre valor agregado (ou adicionado), IVA: o Imposto sobre Produtos Industrializados, IPI, e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias, ICM, este último, na década de 1980, viria a ser nomeado Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, ICMS. De caráter não cumulativo, estes deram ares renovados à economia e sepultaram a cumulatividade da tributação, empecilho ao desenvolvimento do país (OLIVEIRA, 2010; VARSANO, 1996). “Um fato que merece ser destacado é que a adoção do IVA no Brasil – ainda que sem ter este nome – precedeu o uso desse instrumento tributário na própria comunidade econômica europeia – com exceção da França. O Brasil, portanto, em 1967, passou a ter um dos sistemas tributários mais modernos do mundo, na época” (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008, p.246).

Abreviando a explanação, quatro categorias de impostos emergiram: a) impostos sobre o comércio exterior, com a transferência para a União dos Impostos de Importação e o de Exportação (este último, anteriormente estadual); b) impostos sobre patrimônio e a renda, neste grupo foram reunidos o IPTU, municipal, ITBI, estadual, o ITR e o IR, federais; c) impostos sobre a produção e a circulação, como o IPI e ICM (mencionados no parágrafo anterior), o Imposto sobre Serviço de Transportes e Comunicações, ISTC, e o IOF, ambos de competência da União, e o ISS, na ótica municipal; d) impostos únicos, sobre energia elétrica (IUEE, sobre combustíveis e lubrificantes (IUCL) e sobre minerais (IUM), todos federais; e) receitas extra-orçamentárias, incluídas contribuições sociais criadas à margem do sistema tributário (também chamadas de contribuições parafiscais), destinadas ao financiamento de políticas sociais específicas, casos do salário-educação e da contribuição previdenciária, ou para o financiamento de longo prazo, casos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, FGTS, e do Programa de Integração Social, PIS, Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, PASEP (OLIVEIRA, 2010; REZENDE, 1996).

Também relevante foi a exploração do potencial da tributação interna, com elevação substancial das alíquotas do IPI, ICM e do IR, tanto para pessoas físicas como para as jurídicas, ao passo em que se eliminaram isenções para certas categorias profissionais. Houve concentração de recursos na órbita da União, e a arrecadação, nesse período, aumentara sobremaneira. O tesouro nacional estava abarrotado de recursos (OLIVEIRA, 2010). No campo do Fisco federal, em 1968 ocorre a criação da Secretaria da Receita Federal, o que representou uma das mudanças operadas pelo Ministério da Fazenda até a década de 1970, cujo objetivo era dar status de eficiência à Administração Tributária federal, garantindo o aperfeiçoamento da fiscalização e da arrecadação.

Com isso, a última etapa da mudança fora concluída. E um ponto que tem que ser tratado é a questão da excelência da reforma realizada e dos seus efeitos na carga tributária, a qual, até meados de 1980, manteve-se, oscilante sim, mas na faixa dos 25% do PIB. Restrição às transferências e aos incentivos fiscais foram episódios que mantiveram a situação mais ou menos satisfatória e dentro do controle do Estado. No período entre 1979 e 1983, observou-se uma normalidade nesse ponto, a despeito da recessão econômica vislumbrada ao longo desse período (VARSANO, 1996).

3 – No ano de 1988

Em “Madame Bovary”, o escritor francês Gustave Flaubert popularizou a expressão: “É culpa da fatalidade!” (BARELLI; PENNACHIETTI, 2001, p.144). Será? Primafacie, as coisas pareciam resolvidas, mas eis que o destino apronta das suas, e, vinte anos depois, a redemocratização do final dos anos 1980 fez brotar, no seio da nova Carta Cidadã, reais desafios ao sistema tributário nacional. E a complicada equação, que parecia até então apaziguada, galgara a um patamar insustentável.

Destarte, dois foram os motivos determinantes para a falência desse projeto: a) a busca em romper com o autoritarismo e com a concentração de poder do período de exceção democrática vivido, tendo os trabalhos da Constituinte um cerne de redefinição do pacto federativo; b) a procura por dar as respostas sociais, pelas quais a nação clamava, ampliando os temas relacionados à ordem social, aumentando as responsabilidades do Estado e introduzindo-se conceitos como o da seguridade e da previdência no texto constitucional.

Esse quadro de renovação, dentro de um contexto histórico marcado por restrições orçamentárias, crise econômica, pressão inflacionária, desvalorização monetária, e o pior, na mesma base de arrecadação tributária e de financiamento da década de 1960, jamais poderia dar certo, e lançou dificuldades, sobretudo para o âmbito federal, demolindo tudo o que havia sido anteriormente construído (OLIVEIRA, 2010).

Explica-se melhor. Aspecto marcante da Constituição de 1988 foi o fortalecimento da Federação, o que se refletiu no aumento da presença fiscal de estados e municípios e na descentralização das receitas tributárias disponíveis. Igualmente procurou-se corrigir as décadas de atraso na órbita social, implantando-se um regime securatório e garantidor de direitos impossíveis de serem mantidos sem que mais recursos fossem imediatamente carreados para o erário. O Estado brasileiro era grande, mas não o suficiente para assumir tamanhos encargos. Desse modo, outros dilemas nasceram daquele ideal, e se agigantaram para além do imaginável, o que levou à total incompatibilidade do orçamento disponível com as novas atribuições estabelecidas. Ficara difícil falar em coerência ou nexo da tributação nesse período, pois, recém-saído de uma ditadura militar, no auge da chamada “década perdida”, reformou-se, em matéria fiscal, o que não poderia ser alterado, gerando altos custos sem a devida antevisão de como provê-los (VARSANO, 1996; CARDOSO JÚNIOR, 2009). Como no dizer de Norberto Bobbio, “a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil” (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008, p.105).

Ralph Waldo Emerson disse que “ao analisar fatos históricos devemos evitar ser profundos, pois, muitas vezes, as causas são bastante superficiais” (BARELLI; PENNACHIETTI, 2001, p.628, adaptado). Por incrível que pareça, a teoria mais ingênua acaba sendo a verdadeira, e Cláudio Hamilton dos Santos e Denise Lobato Gentil, ao abordarem a situação das finanças públicas brasileiras, sem meias palavras, colocam que:

“O resultado final da Constituição de 1988 foi tornar o governo federal ingovernável, como disse na ocasião o presidente José Sarney. Ao fim do processo descentralizador da receita […] a parcela da União na receita tributária caíra de 47% para 37%, a dos estados subira para 42% e a dos municípios para 22%. […] Ao contrário do que seria de prever, à redistribuição de receitas não correspondeu uma redistribuição dos gastos, seja porque as unidades subfederativas não quiseram absorver novas tarefas, seja porque o governo federal não quis abrir mão do poder político oriundo da alocação clientelística de verbas. Não é de admirar, pois, que o jurista Yves Gandra Martins tenha chamado a Carta de 1988 de “Constituinte da Hiperinflação”. Mais justo, aliás, seria denominá-la “Constituinte da Estagflação”. O excesso de encargos sociais e o aumento da carga tributária desestimulavam os investidores nacionais […]. O desequilíbrio estrutural do orçamento da União resultaria inevitavelmente em inflação. Destarte, a estagflação que hoje sofremos não é mero acidente de percurso; é um mandato constitucional” (CAMPOS, 1994, p. 1.199) (In: CARDOSO JÚNIOR, 2009, p.124-125).

Logo, o desenho tributário de 1988 não visava fatores econômicos – quiçá havia a mínima lógica em suas intenções –, a começar pela verificação de que esse novo modelo, ao contrário do originado a partir da reforma de 1960, a qual, naquele momento, fora erigida por uma equipe técnica em gabinetes, decorreu de um processo deliberativo, em que os protagonistas eram figuras políticas, sob pressões diversas, atendendo as mais variadas demandas, que não exclusivamente as fiscais e de financiamento público. E, muito embora, a decisões tenham sido tecnicamente assessoradas, e originadas do processo democrático, tinham feição díspare da que se podia esperar. “Conseguiu-se mediante esse procedimento promover o debate mais amplo de que se tem notícia na história do Brasil. Mas o processo, ímpar e não testado, tinha riscos altos” (VARSANO, 1996, p.12). Assumimos tais riscos, mas não estávamos preparados para as suas consequências, acabando-se por vitimar todo um plano de Estado, uma vez que “a situação de desequilíbrio orçamentário que já existia, ao invés de ser eliminada, consolidou-se” (VARSANO, 1996, p.13).

Prosseguindo com a análise, em um segundo plano, as transferências tributárias, fundadas no FPE (Fundo de Participação dos Estados), no FPM (Fundo de Participação dos Municípios), nos fundos de desenvolvimento regional e no de compensação das exportações de produtos industrializados, levaram a uma panaceia fiscal e financeira crônica. Faltavam recursos, a conta simplesmente não fechava, e ela era muito alta (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008).

O governo teve, então, que tomar medidas rápidas para rematar o complicado orçamento. Com isso, para ampliar a receita da União, desfacalda pelos elevados custos sociais e pelo regime de transferências, abusou-se, e muito, da criação de novos tributos e da elevação dos já existentes, em particular daqueles não suscetíveis à partilha com estados e municípios. E isso foi realizado sem a devida preocupação com os reflexos para a sociedade, para o comércio e para a indústria. Houve a reintrodução de impostos cumulativos, em especial sob a forma de contribuições, tais como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, CSLL, e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, CPMF, e o aumento da alíquota da COFINS e do IOF (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008; LIMA, 1999).

Mas o Brasil tem feito das suas, não se pode negar. E as soluções – se é que podemos dizer dessa forma – que o governo federal apresentava, a despeito de resolverem parcialmente a questão da arrecadação e da receita, levaram a uma queda vertiginosa na configuração do péssimo sistema criado pela CF/1988, desfazendo-se, portanto, as principais conquistas históricas (LIMA, 1999).

Com o aumento progressivo da carga tributária sobre o consumo e a produção, potencializou-se o fenômeno da regressividade tributária, prejudicando diretamente a população, inviabilizando o comércio e a prestação de serviços, desestimulando o processo de industrialização e terminando por firmar a questão fiscal como dilema ao desenvolvimento do país. O modelo era falho e revelou-se inadequado. Portanto, a celeuma estava instalada, começando a chamar a atenção dos responsáveis pela política macroeconômica nacional, uma vez que ficaríamos, no curtíssimo prazo, sem ter mais como remediar esse paciente terminal (CARDOSO JÚNIOR, 2009).

Entretanto, esses não eram todos os problemas. O buraco parecia mais fundo, podendo-se ainda listar que: a) a atribuição de competência para que os estados manipulassem as alíquotas do ICMS ocasionou a guerra fiscal entre entes federados; b) a eliminação da faculdade, atribuída pela Constituição anterior à União, de conceder isenções de impostos estaduais e municipais, diminuiu o controle federal sobre estes; e c) o fato de não se poder impor condições ou restrições à entrega ou emprego de recursos distribuídos às demais unidades federativas ocasionou a perda de receita sem a devida contrapartida (VARSANO, 1996).

4 – Depois de 1988

Vamos sintetizar o discorrido até aqui. O sistema que vigora desde a Constituição de 1988 revelou-se precário e problemático, principalmente quando da adoção de políticas restritivas visando o controle dos enormes déficits do aparelho estatal. Porém as ações do governo federal, anteriormente descritas, se mostraram eficientes nas sucessivas elevações da receita, com recordes na arrecadação em tributos, a elevar sobremaneira a pressão que a excessiva tributação exerce sobre o PIB, o que representa um alto ônus para um país de renda média e em vias de desenvolvimento como o Brasil, com visível agigantamento da deterioração do quadro econômico. Basta ver que “a carga tributaria, segundo estudos da Receita Federal do Brasil, elevou-se de 25,7% para 35,8% do PIB no curto espaço de 15 anos, entre 1993 e 2008” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2010, p.72). E a fórmula repassada era muito clara, e também alarmante. Conter despesas, cortar gastos, reduzir o endividamento interno, diminuir o tamanho do Estado, eram temas que sequer eram mencionados, pois não faziam parte do utópico ordenamento constitucional. Todo planejamento das políticas públicas – se é que havia algum –, dali em diante, concebia o social como único e derradeiro farol, muito embora se soubesse que se estava fugindo a qualquer parâmetro válido e confiável em termos de orçamento e equilíbrio fiscal. Como subterfúgio, para manter os gastos com a seguridade e os repasses obrigatórios às demais unidades componentes da Federação, a União abusou, e muito, da criação de contribuições. “A mera descrição dessa desproporção entre contribuições (infladas) e impostos (abandonados) já indica a anomalia em que o que deveria ser marginal ou acessório se tornou o principal” (SENADO FEDERAL, 2010, p.19). Foi a junção de tudo isso que levou à amplificação, para além dos limites do aceitável, dos nocivos fenômenos da bitributação, da regressividade e da elevação exponencial da carga tributária, a se abaterem sobre toda a sociedade brasileira e a estagnarem o desenvolvimento nacional. A situação era grave e ficava cada vez pior.

“Um trabalho conduzido pela Coordenação de Estudos Tributários da SRF observou que o debate sobre “tributação cumulativa versus tributação do valor agregado” se acirrou nos últimos anos no Brasil, devido, principalmente, à crescente participação das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento (PIS/Cofins) e da CPMF na arrecadação total (se considerar apenas essas três contribuições, verifica-se que sua participação agregada na carga tributária total passou de 15,5% em 1989, para 35%, em 2002). Assim, a discussão da cumulatividade se concentra, obviamente, nos tributos incidentes sobre vendas de bens e serviços. Quanto ao aspecto discutido naquele estudo, a tributação sobre bens e serviços foi dividida em dois grandes grupos de tributos: valor adicionado (ICMS e IPI […]) e os que incidem cumulativamente (Cofins, PIS/Pasep, CPMF, IOF e ISS […]). Analisando dados que vão desde 1968 a 2002, constatou-se um acentuado aumento da tributação cumulativa. Em 1968       os tributos cumulativos representavam 1,60% do PIB e apenas 6,87% do total da receita nacional. Em 2002 atingiram 7,87% do PIB, ou 21,8% do total. Os impostos sobre valor adicionado, por seu turno, respondiam por 11,70% do PIB e por 50,21% da carga total em 1968 e, em 2002, responderam por 9,45% do PIB e por 26,18% do total. É notório, portanto, que a tributação sobre valor agregado vem sendo substituída pela de caráter cumulativo. A explicação mais difundida pelos que defendem essa última é de que esse tipo de tributação é de mais fácil fiscalização, além de ser menos afetado pelas oscilações na conjuntura econômica, já que a maior parte incide sobre o faturamento e não sobre o lucro. Entretanto, embora seja considerada inadequada e indesejada, essa forma de tributação gerou, em 2002, cerca de R$ 86 bilhões, somente entre Cofins […], PIS e CPMF. Para se desfazer dessa forma de tributação, a União teria de descobrir outras fontes de arrecadação de imposição não-cumulativa, o que é uma tarefa muito fácil. Esse é o principal argumento da União para mantê-las” (AVARTE; BIDERMAN, 2004, p.170).

Inadequação do pacto federativo, entes que se digladiam entre si, carga tributária que consome mais de 1/3 de toda riqueza produzida em um ano, verborragia e complexidade legal, elevados custos de fiscalização e de cobrança, regressividade ao invés de progressividade, quase total inexistência de retorno social, informalidade, alta sonegação, desincentivos à iniciativa privada e à indústria, falência do projeto de desenvolvimento nacional, economia estanque, abandono de planejamento para o amanhã. O leque é grande, e que o leitor, nesse cardápio do terror fiscal, escolha qual pode ser apontada como sendo a maior mazela do sistema tributário vigente no Brasil.

Na voracidade por aumentar a receita, sucedeu nova tentativa de aperfeiçoamento da Administração Fazendária Federal, agora com uma maior especialização tributária, a partir da criação de Delegacias Especiais, compostas de mão de obra treinada. Junto a essa descentralização, houve a instituição de coordenações, tais como COPEI (Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação), COPAT (antiga Coordenação-Geral de Estudos Econômico-Tributários) e CORAT (antiga Coordenação-Geral do Sistema de Arrecadação), a gerir as ações implementadas. Aquisição e investimentos em tecnologia da informação também faziam parte desse processo renovatório (VASCONCELOS, 2002). O fortalecimento e a valorização da Advocacia Pública e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional também são evidentes, com ajustes organizacionais imprescindíveis.

E a explicação para tamanho movimento da máquina pública era óbvia, uma vez que mexer na legislação tributária era difícil, inexistindo ambiente político ou econômico favorável, cresceu a relevância da fiscalização e do aparelho arrecadatório para enfrentar a crise em curso. O orçamento da União precisava ser inflado de recursos, em detrimento das pressões que tais iniciativas teriam perante os cidadãos-contribuintes e o PIB do país. Era a velha e exaurida fórmula sendo mais uma vez reaplicada, só que agora com um detalhe ainda mais macabro: sabíamos, de antemão, que essa maneira de tratar o problema não teria futuro algum.

O Plano Real, de 1994, conseguiu conter a inflação, iniciando uma importantíssima fase de estabilização econômica e financeira e de controle cambial, afora o desenvolvimento econômico que propiciou, mas em seu âmbito fiscal revelou-se como tão somente mais uma mal redigida página da “tragédia” cotidiana, com os tradicionais incrementos da receita através do aumento exponencial da carga tributária. Dessa maneira, a conjuntura contraditória e incerta gerada pela Constituição Cidadã apenas terminou por se agravar. Ressalte-se que, nas discussões em torno das finanças públicas federais, em geral, ocorreu a exclusão de assuntos importantes, tais como pagamento de juros e dos encargos da dívida pública, duas enormes amarras para qualquer economia, e que representaram, àquele instante, um verdadeiro desafio (OLIVEIRA, 2010; GARCIA, 2008).

Por fim, mencionamos que os anos seguintes, marcados pela mudança no poder em 2003, e também de orientação política a ser seguida, assistiram a uma piora progressiva e irracional do sistema tributário como um todo, o qual se apresentava tão desequilibrado quanto em outros períodos (BIDERMAN; AVARTE, 2004). Nessa época, muito embora tenha que se reconhecer que o compromisso com o crescimento do país tenha sido uma política acertada, e que sucedeu sim uma efetiva distribuição de renda e uma maior inclusão social, com a expansão do crédito e do consumo, e a melhoria dos principais indicadores gerais, ainda assim, as promessas de reforma não são cumpridas, e o problema continuou longe de ter o tratamento apropriado e mais do que necessário (OLIVEIRA, 2010). Não sabemos se pela ausência de opções ou pela certeza de que já não havia mais como corrigir o que não funciona há muito tempo.

5 – Considerações finais

O escritor italiano Aretino proferiu que “as únicas falsas loucuras que ainda existem são aquelas que vez por outra os sábios cometem” (BARELLI; PENNACHIETTI, 2001, p.561). As pessoas à frente do destino do país, responsáveis pelo pensamento estratégico da nação, tem o dever de raciocinar sobre os passos tomados até aqui, uma vez que insistir no caminho equivocado, repetindo erros históricos, de nada surte efeito face à realidade de um mundo pós-globalizado como o que nos deparamos atualmente.

Por tudo que fora explanado, deveríamos ter em mente as consequências que algumas “loucuras” do passado têm sobre a vida prática de cada um de nós. Rudolf Von Ihering (2000, p.77) sentenciou: “Mas, se só chegamos a compreender as lições da história quando já é tarde, a culpa é nossa; não é por causa da história que não as percebemos em tempo, pois ela nos ensina de forma clara e inconfundível”. Por isso é que mudar se revela algo realmente prioritário.

 

Referências
AVARTE, Paulo Roberto; BIDERMAN, Ciro. Economia do setor público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BARELLI, Ettore; PENNACCHIETTI, Sergio. Dicionário das citações: 5000 citações de todas as literaturas antigas e modernas com o texto original. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CARDOSO JÚNIOR, José Celso (Org.). A Constituição brasileira de 1988 revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2009.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Preparativos do IV ENAI, Encontro Nacional da Indústria. A indústria e o Brasil: uma agenda para crescer mais e melhor. Brasília-DF: Confederação Nacional da Indústria, 2010.
GARCIA, Ronaldo Coutinho. Despesas correntes da União. Revista desafios do desenvolvimento. Ano 5. nº 41. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 2008, p.16-22.
GIAMBIAGI, Fabio; ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
GUARACY, Thales. Máximas: para os negócios e sua vida pessoal. São Paulo: Negócio Editora, 2001.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Coleção a obra-prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret, 2000.
OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. A evolução da estrutura tributária e do fisco brasileiro: 1889-2009. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2010.
REZENDE, Fernando. O processo para reforma tributária. Brasília: IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 1996.
VARSANO, Ricardo. A evolução do sistema tributário brasileiro ao longo do século: anotações e reflexões para futuras reformas: texto para discussão nº 405. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 1996.
VASCONCELOS, André Rogério [et.al.]. Condicionantes e perspectivas da tributação no Brasil: estudo tributário 07. Brasília: Ministério da Fazenda; Receita Federal, 2002.
 
Notas:
[1] In: GUARACY, 2001, p.69.


Informações Sobre o Autor

Thiago Nóbrega Tavares

Advogado Especialista em Direito Tributário e Mestre em Ciências Jurídicas


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