O Estado Plurinacional e o novo constitucionalismo latino americano

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Resumo: Análise do processo de formação do novo constitucionalismo latino americano como uma possibilidade de superação do direito colonial moderno excludente e uniformizador. O artigo analisa as novas constituições da América Latina e a busca do conhecimento do outro em um projeto democrático e radicalmente diverso.

Sumário: Origens do Estado moderno. Democracia e Constituição. Poder Constituinte. O novo constitucionalismo. O Estado Plurinancional. Uma nova teoria da constituição.

Introdução: origens

A teoria do poder constituinte atualizada pela análise da relação entre democracia e constituição é uma contribuição importante para pensarmos a permanente conexão e tensão entre Constituição, como pretensão de segurança, permanência e garantia de direitos, e Democracia como transformação social e conquista de novos direitos históricos. O poder constituinte originário, como um elo extremo entre democracia e segurança, é o reconhecimento da possibilidade/necessidade de revolução. O Direito democrático não pode ficar distante, ou ignorar a possibilidade de revolução como processo radical e democrático de transformação social. O Direito deve estar próximo, permanentemente, à democracia. A Constituição significa a segurança de que a democracia, enquanto processo criador de transformação, não se perderá em lutas incessantes de poder, e logo no risco do autoritarismo ou totalitarismo. Neste sentido o poder constituinte originário deve ser este elo entre democracia e constituição no momento mais radical de transformação social: a ruptura revolucionária com a constituição antiga para a construção de um novo sistema democrático e também constitucional.

Neste ensaio buscaremos explicar esta ligação entre democracia e constituição na história moderna; revisitaremos a teoria do poder constituinte; para então vislumbrarmos os novos caminhos do estado plurinacional na América Latina, especialmente nas novas constituições democráticas e plurais da Bolívia e Equador. Os processos de transformação democrática, fundados em uma nova experiência constitucional, podem apontar para uma nova teoria da constituição que reconheça uma nova função para a constituição, agora não mais no seu papel de reação às mudanças não permitidas, mas sim, de instrumento, que coloca as instituições e leis, a favor das transformações democráticas populares ou, em outras palavras, nas transformações efetivamente democráticas.

1- Democracia e constituição

O Constitucionalismo não nasceu democrático. Nascido na forma liberal, o constitucionalismo visava à construção de um espaço de segurança jurídica e de proteção da esfera de decisão individual. Segurança, propriedade privada e privacidade são as palavras que identificam o constitucionalismo liberal. Assim como o constitucionalismo não nasceu democrático, os direitos fundamentais declarados nas constituições liberais eram para poucos. Os direitos políticos eram assegurados apenas para homens, proprietários e ricos.

Dentro do conceito da época, a constituição seria incompatível com a democracia majoritária uma vez que a constituição visava proteger o direito e a vontade de cada indivíduo, enquanto a democracia representaria a vontade do coletivo majoritário sobre o minoritário e logo sobre a vontade individual.

A fusão entre democracia e constituição ocorreu apenas na segunda metade do século XIX, quando então, por força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda conquistou-se primeiramente o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo, gradualmente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o fim da discriminação, jurídica, de gênero. Esta relação entre democracia e constituição trouxe a noção de “democracia com segurança” que se transformou com o tempo, na idéia de que, a vontade da maioria tem limites de decisão estabelecidos na obrigatoriedade de respeitar os direitos das minorias e no núcleo duro de qualquer constituição: os direitos fundamentais.

Entretanto a tensão entre constituição e democracia não acabou, e nem poderia: constituição ainda significa segurança e pretensão de permanência, enquanto democracia significa mudança e, portanto, risco.

Democracia é risco uma vez que é expressão da vontade das pessoas em sociedade. Nós somos seres históricos, em permanente processo de transformação. Transformamos nossas sociedades permanentemente, como fruto de nossa busca incessante. Só uma ditadura (mesmo que travestida de outros sistemas muitas vezes até mesmo chamados de democracias) pode ter pretensão de permanência conservadora.

Logo é fácil concluir que, mesmo democráticas, as constituições como limitadoras e conformadoras, mesmo sofrendo mutações interpretativas e mudanças formais de seu texto, serão sempre, em algum momento, superadas pela dinâmica social histórica. Daí a existência do poder constituinte originário como poder de ruptura democrática. Este é o momento onde a democracia rompe com uma ordem que não mais responde socialmente, para então, democraticamente, estabelecer outro sistema constitucional. Este é sempre um momento de risco, pois é o momento onde a democracia se desprende da constituição, se desprende dos limites jurídicos, para logo estabelecer novos limites, em um novo processo constituinte originário, diante do risco de que, a falta de limites, transforme esta vontade criadora livre em uma ditadura da maioria.

2- O poder constituinte 

A diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação formal.

Na França revolucionária (1789) foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, entretanto, sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no complexo jogo de poder por traz da da assembleia constituinte, aqueles que têm a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.

Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na cultura europeia, com SIÉYÈS, pensador francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos como poderes derivados do primeiro, são contribuições desta teoria..

SIÉYÈS afirmava que objetivo ou o fim da Assembléia representativa de uma nação (a idéia de nação aí aparece como algo maior que o povo, diferente da idéia de povo como aqueles que se sentem parte do Estado nacional desenvolvida em outro momento) não pode ser outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de um determinado grupo.[1]

3- A amplitude do poder constituinte

Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro como, por exemplo, em PINTO FERREIRA, a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.[2] Entre muitos clássicos podemos destacar WALTER DODD, KELSEN, HAURIOU entre muitos, os que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o Poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição encontramos entre outros SCHMITT, HELLER, RECASÉNS SICHES e CARL FRIEDRICH.

A importância desta discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (através de emenda e revisão). Alguns autores tendem admitir força igual ao poder originário, em algumas circunstâncias, fazendo com que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareçam.

O problema central desta discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de insegurança grande, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado, não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isto fique claro.

Podemos acrescentar ainda, que a tese de que não será mais necessário um poder constituinte originário, que a época das revoluções acabou, que chegamos aos sistema possível, natural ou outras bobagens como a tese do fim da história, ajudam a sustentar uma maior amplitude do poder constituinte derivado (o poder de reforma) sempre nas mãos dos representantes. Por sua vez estes representantes são escolhidos pelo voto, em sistemas partidários onde as opções de escolha efetiva (por alguma coisa diferente) é cada vez mais reduzido (ou inexistente em muitos casos) e o resultado das eleições cada vez mais condicionado por aparelhos ideológicos poderosos e sofisticados liderados por uma mídia privada extremamente concentrada e descaradamente mentirosa e manipuladora.

Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negar a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, preservando com isto a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Esta é a questão central que nos interessa.

Lembrando as palavras de IVO DANTAS:

“O Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente a sociologia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma, erroneamente denominado Poder constituinte derivado.”[3]

Seguindo esta linha de raciocínio, e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual ele está rompendo, este poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.

Talvez seja necessária neste ponto uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da assembléia constituinte decorrentes das influências dos diversos grupos de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte, desde que manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes por meio do abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas, puramente corporativas, sobre o processo de votação na assembléia constituinte. Convém lembrar que estas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a este sistema econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que SIÉYÈS já mencionava como ilegítimas (e improváveis) pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ilegítima (não vamos também acreditar nesta inocência de Siéyès que não era nenhum democrata).

Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente neste ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nesta perspectiva legalista já ultrapassada, que reduz o Direito à regra, transformando a construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto.

Importante entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente, sendo, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a ordem com a qual este poder rompe, e pela qual não se limita. Desta forma, o que legitima o poder constituinte originário é o fato de expressar uma inequívoca vontade popular radicalmente democrática, revolucionariamente democrática.

Esta afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição na sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura. Somente um poder social mais forte, porque representando a força democrática da vontade histórica do povo, pode romper com a Constituição para então criar uma nova Constituição. O poder originário nasce da revolução e nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo uma vez que é o poder de transformação social da própria história.

Neste recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária procuram desenvolver mecanismos meramente representativos evitando muitas vezes os mecanismos consultivos como os plebiscitos e referendos (quando estes não estão sob o seu controle) para justificar uma alteração radical do texto constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na verdade uma nova Constituição. Estes mecanismos podem ser verdadeiros golpes contra a segurança jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão.

Pode-se afirmar, entretanto, que estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas como proteger estes milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular fundada em uma democracia dialógica permanente, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.

Apenas os processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular podem justificar uma ruptura, que sendo fato irresistível se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será esta compreensão dialogicamente construída em uma sociedade, em um determinado momento histórico, capaz de legitimar o Direito e suas transformações, incluindo as rupturas constitucionais.

O Poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar. O poder constituinte originário tem sustentar-se nos diversos processos participativos expressos pelos movimentos sociais populares para além das instituições formais representativas (legislativo e executivo) ou não (judiciário).

Portanto, podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade em um determinado estado.

Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas por meio de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima mobilização e pressão dos movimentos sociais.

Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica seja contido ou melhor, eliminado. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.

Este poder constituinte originário democrático se manifestou na América do Sul em 2008 e 2009 na Bolívia e no Equador.

4- O novo constitucionalismo sul americano e o estado plurinacional.

A América Latina vem passando por um processo de transformação social democrática importante e surpreendente. Da Argentina ao México os movimentos sociais vêm se mobilizando e conquistando importantes vitórias políticas (não só eleitorais). Direitos historicamente negados às populações indígenas agora são reconhecidos. Em meio a estes variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, e a maioria vêm somando ao caminho institucional da democracia representativa uma forte democracia dialógica participativa popular.  

Algo novo, com força de ruptura com a teoria constituinte moderna (europeia) ocorreu de forma mais radical na Bolívia e no Equador, onde governos eleitos a partir de movimentos populares, promulgaram suas novas Constituições, e com estas trouxeram um conceito totalmente inovador para o mundo jurídico: o Estado plurinacional.

Vamos apenas introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente, após 500 anos de exclusão radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.

4.1- O Estado Nacional

Para entender o estado plurinacional e seu potencial revolucionário é necessário entender antes o paradigma que vivemos há quinhentos anos e que sustentou a afirmação e expansão do capitalismo: o estado nacional.

A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais e as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional, que surge neste momento, e de outro lado, se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o processo que ocorre inicialmente em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.[4]

Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).

Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.

Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria com a qual, claramente, ele se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras características, com outra identidade, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes.[5] A unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, valencianos entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado à dissolução. Como exemplo, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.

Portanto a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.

Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.

A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionada com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana européia.

O Estado nacional marca a modernidade, estado este que mais tarde, no século XVIII, se transformará em um Estado constitucional.

Fundamental a compreensão de que, sem o estado moderno o capitalismo, com a sua classe burguesa, não prosperaria. Não haveria capitalismo sem a uniformização das subjetividades no espaço territorial, inicialmente do estado, assim como são fundamentais para a afirmação desta economia a existência de um exercito nacional (que invadirá territórios, subjugando povos para extrair suas riquezas). Outras invenções modernas são também essenciais para o desenvolvimento da economia capitalista: as moedas nacionais; os bancos nacionais; a polícia nacional (para controlar, vigiar e punir os excedentes necessários ao sistema, durante um bom tempo)[6]; a uniformização do direito de família e do direito de propriedade e com isto a uniformização de comportamentos familiares e comerciais; a imposição de um idioma, uma religião para a normalização de comportamentos; e para a exclusão daqueles que resistem a esta uniformização, os presídios e manicômios; a burocracia estatal, a Igreja oficial, a escola. o idioma oficial e outros dispositivos que serão desenvolvidos com as transformações do estado, da sociedade e da economia moderna.

Na América Latina os Estados nacionais se formaram pelos e para os descendentes dos invasores europeus, a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares que a maior parte da população se sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.

De forma diferente da Europa onde foram construídos estados nacionais para todos que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos estados, na América não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos indígenas, que não existissem: milhões foram mortos.

Neste sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas e romper com as bases uniformizadoras do direito de propriedade e de família que sustentam o capitalismo: o Estado plurinacional, democrático e popular.

Nunca na América, tivemos tantos governos democráticos populares como neste surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são apenas democráticos representativos, mas, fortemente participativos, dialógicos.

Uma idéia nova, neste processo chama a atenção: o Estado Plurinacional das Constituições do Equador e da Bolívia.

4.2- O Estado Plurinacional

A idéia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema econômico entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos anteriormente o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com a intolerância religiosa.

A partir da constitucionalização e sua lenta democratização (em geral, ainda de bases liberais meramente representativas e pouco representativas) não se poderia mais admitir a construção da identidade nacional com base em uma única religião que uniformizasse o comportamento no plano econômico (direito de propriedade) e no plano familiar. Tornou-se necessário construir uma outra justificativa e um outro fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais presentes no Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do Estado como legitimo.

A Constituição irá cumprir está função. Inicialmente não democrático, o constitucionalismo irá uniformizar (junto com o direito civil) as bases valorativas desta sociedade nacional, criando um único direito de família e um único regime de propriedade que sustentaria o sistema econômico. Isto ocorreu em qualquer dos tipos constitucionais capitalistas, seja liberal seja social-democrata.

A uniformização de valores e comportamentos, especialmente na família e na forma de propriedade exclui radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que, ou se enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade constitucionalizada (uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o aculturamento e perda de raízes acompanhado da miséria, presídios e manicômios.

A lógica do Estado nacional, agora constitucionalizado e mesmo “democratizado”, sustenta esta uniformização. A ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto “pacto social” ou “contrato social”, ou qualquer outra idéia que procura identificar nas bases destas sociedades americanas um suposto acordo uniformizador, como se as populações originarias tivessem aberto mão de sua história e cultura para assumir o direito de família e o direito de propriedade do invasor europeu, que continuou no poder com seus descendentes brancos e mestiços a partir dos processos de independência no século XIX.

A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e "democrático" representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente.

O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa e dialógica como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes.

Nas palavras de Ileana Almeida[7] sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:

     “Sin embargo, no se toma en cuenta que los gruos étnicos no luchan      simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho      histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de      preservar las zonas de significado ecológico-cultural.”

Certamente este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno que sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da propriedade e mais tarde da economia liberal.

Nas palavras de Ileana Almeida:

     “Al funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple      también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las      nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma      de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los      diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su      identidad y pasar a forma filas de  la nación ecuatoriana aunque, pólo general, en      su sectores más explotados.”[8]

A Constituição da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos originários” (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser revisadas pela Justiça comum.

Outro aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais. Assim os representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas comunidades.

A Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena.

A nova Constituição democrática transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus recursos econômicos.

O projeto constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional ao acabar com a vinculação do estado com a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o Brasil é desde 1891).

Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da família.

Além de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o caminho para se pensar em um Estado democrático e social de direito internacional.

Citando novamente Ileana Almeida:

“En contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étnica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica”.

     A América Latina (melhor agora a América Plural ou Indo-afro-latino América), que nasce renovada nestas democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena, democrática, economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no egoísmo e na competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e diverso, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta de quinhentos anos de Estado nacional.

5- Uma nova teoria da constituição democrática plurinacional – a democracia consensual

5.1- Democracia “versus” constituição

Comentamos acima que o constitucionalismo moderno não nasceu democrático e o seu processo de transformação e lenta democratização ocorreu por força dos  movimentos sociais do século XIX, especialmente o movimento operário, os sindicatos e a constituição dos partidos políticos vinculados às reivindicações e lutas operárias.

Vimos que a função primeira de uma constituição liberal era de oferecer segurança aos homens proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de permanência e superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social e econômica para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários.

Ao contrário da constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação, mudança?

A dicotomia entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que se encontra na raiz de nossas vidas. Ao contrário de uma perspectiva contraditória cultural entre busca do novo (risco) e busca de segurança, a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o universo de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação. O próprio universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser humano, como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de transformação permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos outra característica essencial: somos seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um grau de autonomia racional razoável desde que conheçamos os mais diversos limites (culturais, históricos, biológicos, químicos, físicos, psíquicos, ideológicos, etc) que atuam em nossa percepção e experimentação do mundo. A partir do conhecimento psi descobrimos que, o que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de transformação, a busca do novo, o preenchimento de um vazio impossível de ser preenchido, ainda bem. Logo, uma sociedade livre e democrática, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de risco na medida em que é uma sociedade em mutação permanente.

Temos então a equação do constitucionalismo "democrático" moderno. A tensão permanente entre democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e permanência; transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos, aparentemente contraditórios, é uma busca constante. Democracia constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco minimamente previsível; mudança com permanência.

Importante lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e, portanto, como limite às mudanças. O papel da constituição moderna é reagir às mudanças não permitidas. Já, a democracia, é entendida como democracia majoritária e representativa.

A base da teoria da constituição moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático representativo majoritário. Como é oferecida esta segurança?

Para que a Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas, modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto. As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal); processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária para que a constituição acompanhe as transformações ocorridas pela democracia representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com a segurança, nem mudar nada o que acaba com sua pretensão de permanência. Daí que não pode a teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas (emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição. Isto representaria destruir a essência da constituição moderna: a busca de segurança. De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a não transformação da constituição por meio das mutações interpretativas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua essência, a busca de segurança.

Este é o equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno "democrático", considerando democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição enquanto limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que protege os direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se pode compreender as teorias modernas da constituição.

Permanece ainda uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se pretende democrática) de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre uma defasagem entre as transformações da sociedade "democrática" e as transformações da constituição "democrática". O que decorre desta equação é o fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essência da constituição e da "democracia" (permanência x transformação; segurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A teoria da constituição apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no que se refere a realidade social, cultural, histórica, econômica).

Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica "democrática" constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só por meio de um movimento inequivocamente democrático será possível (ou justificável) a ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática justifica a ruptura com a constituição, está ruptura só será legitima se for para, imediatamente, estabelecer uma nova ordem constitucional "democrática".

Assim, nesta perspectiva teórica constitucional moderna, a democracia só poderá legitimamente superar a constituição se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constituição "democrática". A democracia acaba com a constituição criando uma nova constituição a qual esta "democracia" se submete. Esta é a lógica histórica do constitucionalismo "democrático" moderno. Veremos mais adiante como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais a lógica contramajoritária.

5.2- Os problemas da democracia majoritária

O “casamento” entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de proteger a minoria, todos e cada um, contra maiorias que podem se tornar autoritárias, ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão se transformar em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites, transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição "democrática" (moderna, "democrática" representativa e majoritária) são os direitos fundamentais.

Assim, os direitos fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela constituição contra maiorias provisórias que em determinados momentos históricos podem ceder a tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a seguinte: pode a população, majoritariamente e livremente, escolher um regime de governo não "democrático"? O exemplo não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de "democracia" é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a "democracia". Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas de organização históricas, assim como as formas de participação e construção da vontade comum em uma sociedade também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na maioria das vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos ocidentais.

Mas voltando a discussão realizada dentro do paradigma moderno de "democracia" constitucional ocidental (europeia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir "democraticamente" contra a "democracia". A estes mecanismos de proteção às conquistas históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajoritários. Em momentos de crise podem os cidadãos cederem às tentações autoritárias e reacionárias e a função da constituição é reagir a estas mudanças não permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a proibição do “retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável, e por isto falsa.

Um exemplo claro disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso? Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso ou evolução?

Outro aspecto é necessário ressaltar a respeito da democracia majoritária. O voto, confundido muitas vezes com a própria ideia de democracia, é na verdade um instrumento de decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso, e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão.

Interessante notar que o tempo do debate, da exposição das opiniões está cada vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de "democracia" semi-direta, o espaço dedicado ao debate de ideias e propostas se reduz. Cada vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, ideia. A opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto, ideia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos vitoriosos e derrotados.

Assim, tanto no legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial. O sistema constitucional moderno de Judiciário e democracia representativa majoritária funciona sobre a lógica de uma expressão romana: "Roma Locuta, Causa finita" (Roma falou, causa encerrada). Neste sentido convém lembrar Slavoj Zizek quando nos provoca com a inversão da expressão: "Causa locuta, Roma finita".[9] Quando as pessoas enxergarem o que a ideologia do poder hegemônico oculta, este estará acabado. Mas, por enquanto, "Roma", o império, continua falando e até agora as causas vão sendo enterradas, provisoriamente caladas, pois permanecem latentes.

A democracia consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos fundamentais.

Vejamos.

Conclusão

 A democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano.

Uma vez compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais.

Comecemos pela democracia. Ao contrário da "democracia" moderna essencialmente representativa, a democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos representativos majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam, mas, sim, que devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados de construção de consensos em espaços não hegemônicos.

A proposta de uma democracia consensual deve ser compreendida com cuidado no paradigma do estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta democracia deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de dominação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as formas de violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o diálogo a ser construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos prévios, construídos por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração a necessidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações sociais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura.

A partir desta descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro.

Os consensos construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da democracia. Daí posturas novas precisam ser inauguradas. A postura não hegemônica deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos argumentos. Não se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate. Não é possível compreender uma democracia consensual com os instrumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição permanente. A democracia é impossível no capitalismo. Nenhum consenso se pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela necessidade de decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção de maiorias.

Compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais.

Como a democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são construídas por maiorias, mas, sempre, por todos, a constituição não necessita mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de mecanismos contramajoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria como fator de decisão.

Assim, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos permanentemente. O estado e a constituição no lugar de reagir às mudanças não previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes.

Trata-se de uma nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de estado, constituição e "democracia". Um conceito fundamental para desenvolvermos e aprofundarmos a discussão é o de pluralismo epistemológico. Esta será a nossa próxima análise.

Referências:
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Notas:
[1] SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat) organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986, pp. 141-142.

[2]PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno, Volume 1, 6 edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1983, p.51.

[3] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução, Rio de Janeiro, Editora Rio sociedade cultural Ltda., 1978, p.33.

[4] CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.

[5] Utilizamos neste texto as palavras identidade e identificações quase como sinônimos, ou seja, uma identidade se constrói a partir da identificação de um grupo com determinados valores. Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores diferentes. Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de características que uma pessoa tem e que permitem múltiplas identificações sendo dinâmicas e mutáveis. Já a idéia de identificação se refere ao conjunto de valores, características e práticas culturais com as quais um grupo social se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional ou uma identidade constitucional mas sim em identificações que permitem a coesão de um grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de direitos e valores que o sustentam, por exemplo.

[6] Hoje não é mais necessário um excedente de mão de obra. O capitalismo atual produz uma massa crescente de desnecessários. Estas pessoas não servem para serem exploradas, não servem nem mesmo como reserva de mão obra. São grandes incômodos que ocupam espaços de total anomia e barbárie.

[7] ALMEIDA, Ileana.  El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.

[8] ALMEIDA, Ileana.  El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19. 

[9] ZIZEK, Em defesa das causas perdidas. Editora Boitempo, São Paulo, 2011, pag. 19


Informações Sobre o Autor

José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.


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