A fundamentalidade do bem de família à luz do direito fundamental à moradia

Resumo: O artigo tem por objetivo analisar os elementos necessários à compreensão de que o instituto da impenhorabilidade do bem de família deve ser assegurado a todos haja vista o direito à moradia ser uma prerrogativa constitucional.

Palavras-chave: Impenhorabilidade do bem de família; direito fundamental à moradia.

O presente artigo tem por objetivo esclarecer a importância do instituto do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que trata, entre outros, de um direito fundamental previsto na Constituição Federal, que é o direito à moradia.

Em outras palavras, este artigo tem por objetivo evidenciar a necessidade e a fundamentalidade do bem de família no ordenamento jurídico brasileiro, mormente quanto a sua impenhorabilidade sob o aspecto de que o direito à moradia é um direito fundamental social previsto na Constituição Federal, indispensável para a sobrevivência digna de qualquer indivíduo.

O instituto jurídico do bem de família que destina-se a assegurar um lar aos cidadãos, a garantir a sua moradia, teve sua origem nos Estados Unidos da América, especificamente na República do Texas, “cuja Constituição de 1836 estabelecia que todo cidadão poderia receber do Governo uma porção de terra para trabalhar e torná-la produtiva, com a evidente intenção de estimular a população a se estabelece naquele território ainda desabitado e subdesenvolvido.” (VASCONCELOS, 2002. p.42).

No Brasil o referido instituto foi incorporado no Código Civil de 1916 em seus artigos 70 a 73, tendo sido transportadas, as disposições sobre o bem de família, para o Código Civil de 2002, nos arts. 1711 a 1722. Também no Pergaminho Processual Civil, havia previsão expressa quanto a impenhorabilidade processual nos arts. 649 e. 650, bem como no novo Código de Processo Civil (art. 833).

No ano de 2000, a Emenda Constitucional nº 26 incluiu no art. 6º da Constituição Federal o direito a moradia como um dos direitos fundamentais sociais, alterando o texto legal para a seguinte redação: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

A partir da EC nº 26/00 o direito a moradia passou a ter status constitucional e, apesar da generalidade do dispositivo, reconheceu-se a sua proteção normativa. A emenda reavivou a discussão sobre a impossibilidade da penhora do único bem de propriedade do devedor.

Destaca-se, ademais, que a proteção ao bem de família está albergada no ordenamento jurídico pátrio em diversas normas legais de âmbito geral e específico, visando, sempre, a efetiva proteção ao direito fundamental à moradia.

O art. 1.712 prevê que: "O bem de família consistirá em prédio residencial urbano e rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família”

Em seu turno, a Lei 8.009/90 de 29 de março de 1990 dispõe especificamente sobre a impenhorabilidade do bem de família. Tal norma privilegia valores como a propriedade, a família e a dignidade da pessoa humana, respeitando princípios constitucionais genéricos como é o caso da proteção à dignidade da pessoa humana, à construção de uma sociedade libre, justa e solidária, e à garantia do desenvolvimento nacional.

Todavia, apresenta questões de forma muito abrangentes – o que pode dificultar a proteção ao direito fundamental à moradia –, ex vi,  o termo “qualquer tipo de dívida” em seu art. 1º, permitindo a interpretação literal para excluir toda e qualquer possibilidade de penhora de bem de família com a ressalva de exceções previstas em norma legal.

Sob outro viés, ressalta-se que a Norma legal especial susomencionada, estabelece como conceito de família tão-só o agregado familiar, o qual é definido no art. 226, § 4, da Carta Magna, como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

Assim sendo, além da Codificação Cível descrever em que consiste o bem de família e da norma supramencionada dispor sobre a sua impenhorabilidade, a Constituição Federal, igualmente, tutela o direito à moradia e a proteção à família, estando, pois, plenamente amparado pela legislação brasileira o direito fundamental social à moradia.

Por sua vez, passa-se à análise do direito fundamental à moradia, o qual é um direito fundamental social autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios, previsto no art. 6º da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, o qual tem conexão com o direito a uma existência digna, isto é, um direito de um mínimo vital, situado aquém das exigências de dignidade da pessoa humana.

Por hora, convém citar a conceito de dignidade nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:

“a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988., 5.ed., p. 62).

Destaca-se que o direito à vida, os direitos de liberdade e de igualdade, bem como os direitos políticos e os direitos sociais, correspondem, cada qual com suas especificações, ao princípio fundamental da pessoa humana  (VASCONCELOS, 2002, p. 171).

Imprescindível, por sua vez, apresentar uma definição para direitos sociais que, segundo Alexandre de Moraes, “caracterizam-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1º, IV. A Constituição Federal consagra os direitos sociais a partir do art. 6º.” (2000, p. 43-44)

As características dos direitos fundamentais desenvolveram-se à luz das concepções jusnaturalistas, as quais designam que os direitos fundamentais do homem são inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis e imprescritíveis.

Os direitos fundamentais do homem apareceram com as revoluções burguesas, evoluíram e ampliaram-se com o passar dos tempos. São considerados históricos como qualquer direito já que nascem e modificam-se com o surgimento de novos direitos. Em razão de não terem conteúdo econômico-patrimonial, tornam-se intransferíveis, inegociáveis. Desta forma, em virtude de serem atribuídos a todos, através da Constituição, são sempre exercíveis e exercidos, não havendo a intercorrência de tempo, justificando-se com isso, a sua imprescritibilidade. Além disso, esses direitos são irrenunciáveis, ou seja, podem deixar de ser exercidos, mas são se admite que sejam renunciados (SILVA, 2000, p. 185).

Desta forma, compreende-se que José Afonso da Silva (2000, p. 185) defende os direitos fundamentais como caracterizados pela historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade. Aragão (1990, p. XX), por sua vez, concorda em parte com tal caracterização afirmando que “(…) os direitos do homem são faculdades naturais, inalienáveis, imprescritíveis. São direitos fundamentais da pessoa humana, tanto no âmbito individual quanto em relação à comunidade.”

Logo, é transluzente que o direito fundamental social à moradia deve ser resguardado em qualquer hipótese.

Com propriedade, acerca da importância desta proteção, ensina Ingo Wolfgang Sarlet:

“Sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida.” (2007, p. 216-127).

Ressalta-se que o acesso a moradia digna é um problema atual no Brasil, o que não se pode agravar ainda mais com a possibilidade de penhora do bem de família. O direito à moradia, na condição de direito fundamental da pessoa humana, deve ser observado pela ótica de sua eficácia e efetividade.

Por derradeiro, evidencia-se que é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais.

Logo, sendo o direito à moradia um direito fundamental social, este deve ser preservado de forma primordial, levando-se em consideração a dignidade da pessoa humana, já que o ser humano é a razão essencial para a existência de um Estado de Direito e de todas as discussões existentes. Sem sua existência, não haveria justificativa para tamanhas controvérsias.

Todavia, objetivando por um ponto final no assunto neste trabalho, é importante ressaltar que é difícil petrificar um direito fundamental tornando-o absoluto, questão inadmitida pela doutrina dos direitos fundamentais quando considera que nem a vida é direito absoluto. Contudo, não convém, discorrer sobre o tema presente trabalho, o qual defende a impenhorabilidade do bem de família à luz do direito fundamental à moradia.

Desta forma, conclui-se que a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana insertos na Constituição de 1988 é uma das metas fundamentais do nosso sistema de garantias dos direitos fundamentais, devendo ser sopesados quando se trata do tema do direito fundamental à moradia, buscando-se assegurar a máxima efetivação da dignidade da pessoa humana.

Referências
ARAGÃO, Selma Regina. Direitos humanos: do mundo antigo ao Brasil de todos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 236-241.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Parma Ltda, 2000.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social. Coleção Prof. Agostinho Alves.
HARADA, Kiyoshi. Impenhorabilidade do bem de família: comentários de acórdãos. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo.
INGO, SARLET WOLFGANG. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5.ed.
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PARIZZATO, João Roberto. Da Penhora e da Impenhorabilidade de Bens. Ed. de Direito. 2007.
SILVA, José Afonso da Silva. Comentário Textual à Constituição. Malheiros Editores. 2005.
____­__. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades familiares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
VILLAÇA, Azevedo Álvaro. Editora RT. São Paulo. 2008.

Informações Sobre o Autor

Fernanda Fóes Bianchini

especialista em Direitos Humanos e analista técnico da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina


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