A common law dos eua e sua teoria fundamental: a doctrine of stare decisis

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Resumo: Cuida-se de um artigo científico com o objetivo compreender a common law dos Estados Unidos. Para tanto, far-se-á uma apreciação sobre as bases e origens desta família do direito, bem como a análise de sua teoria fundamental: a doctrine of stare decisis. Tal estudo foi realizado com base em pesquisa científica e doutrinária, considerando as obras de GUIDO FERNANDO SOARES (1997), RENÉ DAVID (2002), LENIO LUIZ STRECK (2014), JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (2004), LUIZ GUILHERME MARINONI (2013) e outros.

Palavras-Chave: Common Law; Precedentes Judiciais; Stare Decisis.

Abstract: Takes care of a scientific article in order to understand the common law of the United States. Therefore, there will be an assessment of the bases and origins of family law and the analysis of it fundamental theory: the doctrine of stare decisis. This study was performed based on Scientific Research and doctrinaire, considering how GUIDO FERNANDO SOARES (1997), RENÉ DAVID (2002) , LENIO LUIZ STRECK (2014), JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (2004), LUIZ GUILHERME MARINONI (2013) and other.

Keywords: Common Law; Legal Precedents; Stare Decisis.

Sumário: Introdução. 1. As origens e o sentido da common law. 2. O que é a common law dos EUA?. 2. Teoria Fundamental: “Doctrine Of Stare Decisis”. Conclusão.

Introdução

O presente trabalho tem como intuito destrinchar a origem e as bases da família da common law, sobretudo a dos EUA, analisando para tanto sua teoria fundamental: a doctrine of stare decisis.

A família da common law arquitetou suas bases na antiga Britânia, com características essencialmente nativas, isto é, baseadas em regras cotidianas construídas paulatinamente pela prática dos tribunais então existentes, com pouquíssima influência do ius romarum.

Havia, no início, certa rejeição ao corpus iuris civilis de Justiniano, em virtude de seu caráter autoritário, já que os senhores feudais vislumbravam nesse sistema romano uma forma de ampliar os poderes do rei, de forma que seu grau de influência seria inversamente reduzido, o que se tornava nocivo para domínio desses senhores feudais.

 Contudo, foi entre meados do século XI até o início da dinastia Tudor, em 1485 (século XV), que se caracterizou a formação da common law, ou seja, foi quando se firmou um novo sistema jurídico frente aos costumes locais, de forma a ser um contraponto ou uma alternativa mais concreta e estável ao direito romano-germânico que era assentado fundamentalmente em normas escritas.

Porém, apesar de, nos primórdios da construção da common law, haver certa rejeição aos postulados de origem romano-germânica, os juízes aplicavam regras oriundas da antiga Germânia que posteriormente serviram de bases para a construção do sistema jurídico anglo-americano.

1. As origens e o sentido da common law

O internacionalista Guido Fernando Soares (1997) preleciona que são incorretas as denominações que se seguem para batizar a common law. Preliminarmente, ele afirma que não se trata de um direito anglo-saxônico, pois este era o direito das tribos e reinos da Inglaterra, antes da conquista normanda no século X, e que tal direito conviveria com a common law nos seus primórdios e que até nos dias atuais pode ser invocado em matéria de usos estritamente locais na Inglaterra.

 Além disso, não é direito inglês, porque engloba outros países independentes, como a República da Irlanda, Austrália, Nova Zelândia, Canadá (Província de Quebec), Índia, Paquistão e os EUA (salvo o Estado da Luisiana), dentre outras nações que foram colonizadas ou sofreram influências da Inglaterra.

Ademais, outra iniquidade relatada por Soares (1997) é dizer que a common law seria um direito costumeiro, pois há quem considere a jurisprudência como um costume, (repetição de julgados com a convicção de representarem uma regra jurídica) falando mesmo na existência de um costume judiciário, em comparação ao costume geral (aquele que o povo praticaria). O que para o internacionalista é um erro grave que deve ser evitada a sua propagação.

José Rogério Cruz e Tucci (2004) relata que o direito dominante à época em que a common law dava os primeiros passos era composto por decisões judiciais, do rei e dos juízes, que continham o comando a seguir em um caso determinado. Sua catalogação dava-se, ao longo dos anos, nos statute books, considerado um livro de precedentes a ser utilizado pelos juízes e juristas como fonte para a solução dos casos vindouros.

Reitera ainda o jurista que a interpretatio iuris (interpretação do direito), nesse período primitivo, não ficava atrelada a um critério essencialmente rígido, isto é, tinha o rei como o natural intérprete da lei. Já os juízes tinham apenas a incumbência de procurar a ratio para adaptá-la aos casos concretos sub judice. Além disso, não havia submissão a qualquer texto legal escrito.

Para René David (2002), na Inglaterra, a obrigação de recorrer às regras que foram estabelecidas pelos juízes (stare decisis), de respeitar os precedentes judiciários, atrela-se a um sistema de direito jurisprudencial. Esse sistema inglês sofreu, conforme o jurista, influências da escola da exegese francesa, cuja base estritamente legalista conduziu a Inglaterra à submissão a uma regra mais rigorosa do precedente.

 Todavia, a situação na Inglaterra se apresentava de maneira diferente para David (2002), pois nunca se reconheceu lá a autoridade do direito romano como se fizera no continente europeu. Cumpre salientar que a common law foi cria das sentenças judiciais dos Tribunais Reais de Westminster (Inglaterra) que eram cortes constituídas pelo Rei e a ela subordinadas diretamente.

Destarte, nota-se que, apesar de posição contrária sustentada por David (2002), a common law não foi concebida isoladamente, isto é, mesmo que rejeitasse inicialmente o ius romarum, bem como as regras oriundas da antiga Germânia, acabou gradativamente inserindo em suas bases elementos aperfeiçoados, bem como produzidos por estes e outros sistemas. Essa inserção de elementos se deu por meio de fatores históricos e políticos (guerras, ampliação de território, modificação da forma de governo, etc.) que possibilitaram e ainda possibilitam, nos dias atuais, essa permuta de ideias, pensamentos e institutos jurídicos.

Soares (1997), com o fito de se alcançar o sentido da Common Law, faz um contraste entre esta e outros fenômenos jurídicos. Inicialmente, ele faz um comparativo entre a common law e a equity law. A common law, para o jurista, surgiu em oposição aos direitos costumeiros e locais dos habitantes iniciais da Inglaterra, aplicados pelas County Court, que logo seriam suplantados. E enfatiza ainda que:

“A distribuição da justiça era considerada como uma prerrogativa real, que os reis outorgavam a funcionários, os “judges” que perambulavam pelo reino (a ideia de “circuit” que permanece na denominação de alguns tribunais nos EUA e da Inglaterra, como circunscrição delimitativa de jurisdição de um tribunal), na sua tarefa de representar o Rei. À semelhança dos “praetores” do Direito Romano da época formular, ouviam as queixas e davam (ou antes, “vendiam” no sentido de pagamento por um serviço público, de custas processuais) um writ, que era uma ação nominada e com fórmulas fixadas pelos costumes, que correspondia à obtenção de um remédio adequado à situação. (SOARES, 1997, p. 175 e 176)”

Já a equity law é concebida como o direito aplicado pelos Tribunais do Chanceler do Rei, originando de uma necessidade de amenizar o rigor daquele sistema e de atender a questões de equidade. Soares (1997) aduz que os EUA receberam a equity em um contexto histórico em que as oposições common law v. equity law já se encontravam vazias de quaisquer debates jurídicos. Nos EUA, não há o Common Lawers e Equity Lawers como na Inglaterra outrora existiu, em virtude da última unificação promovida em 1938 (na justiça federal).

Para Soares (1997), o segundo sentido da common law se refere ao contraste existente entre, de um lado, o direito criado pelo juiz (judge-made law) e, de outro, o direito criado pelo legislador postado fora do Poder Judiciário (statute Law). Desta forma, nas precisas palavras do jurista, há uma oposição entre a common law e o statute law, onde o último é entendido como um direito resultante dos enactements of legislature (tratados internacionais, Constituição Federal, constituições estaduais, leis ordinárias, regulamentos, dentre outros), suscetível de ser estruturado por um sistema em formato de pirâmide, o que não ocorre na outra família.

Entretanto, Soares (1997) afirma que na common law os juízes não aplicam um statute law enquanto não houver um case na qual seja o mesmo decidido. Isto é, trata-se, conforme o autor, de uma questão de método: enquanto no sistema brasileiro, por exemplo, a primeira leitura do advogado e do juiz é a lei escrita e, subsidiariamente a jurisprudência, na common law o caminho é inverso: primeiro os cases e, a partir da constatação de uma lacuna, vai-se à lei escrita.

Vale ressaltar que não há tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra uma common law pura, pois os EUA, por exemplo, tem um sistema misto entre a common law e a civil law, segundo Soares (1997). Além disso, o doutrinador internacionalista ainda afirma que só havia uma common law pura na Inglaterra ao tempo da Rainha Victoria, anterior à Revolução Industrial. E traz à baila o fato de a Inglaterra, atualmente, pertencer à União Europeia e se submeter ao direito escrito elaborado pelos legisladores supranacionais desta comunidade de nações.

Ademais, o fato de pertencer a uma comunidade de nações (União Europeia) ou a organismos supranacionais (ONU, Mercosul, OTAN) possibilita uma permuta constante de experiências jurídicas, mesmo que involuntária, bem como a construção de marcos jurídicos ou normas outrora inexistentes para a solução de litígios que emergem em virtude dessa constante interdependência entre a nações.

Soares (1997) considera ainda outro fator para distinguir a civil law da common law no que diz respeito a saber se o juiz cria ou revela o direito preexistente. Para o autor, na civil law, o debate torna-se importante em virtude da vigente concepção da separação dos Poderes, herdada do direito europeu continental. No entanto, na common law, o assunto já foi amplamente discutido, e hoje prevalece a tese de que o juiz verdadeiramente cria o direito.

2. O que é a common law dos EUA?

Como pilar da common law, seja nos EUA, na Inglaterra ou outro país que se filia a esta família, Soares (1997) atribui esta tarefa à denominada doctrine of stare decisis, também denominada de doctrine of precedents, chegando a afirmar que “precedent é a única ou várias decisões de um appellate court, órgão coletivo e segundo grau que obriga sempre o mesmo tribunal ou os juízes que lhe são subordinados”. E completa afirmando que:

“Nos EUA, a organização federal e a independência dos Estados federados (e se fala em State sovereignty, soberania dos Estados-membros) vêm trazer algumas complicações no que se refere à jurisdição, permanecendo, contudo, a norma de que são obrigatórios os precedentes conforme julgados pelos tribunais superiores (devendo notar-se que os julgados das “inferior courts of original jurisdicion” ou seja dos órgãos de primeiro grau, não constituem “precedents”). (SOARES, 1997, p. 182 e 183)”

Soares (1997) concatena ainda que a autoridade (authority), que é a força de impor-se a futuros casos os case law, segundo a doutrina correlata, pode ser dividida em duas classes:

“A. Persuasive, em geral de decisões de cortes de jurisdição paralela (mesma jurisdição de outros Estados), ou de votos vencidos ou minoritários da mesma Corte ou de cortes superiores, e a determinados assuntos (p. ex.: as cortes de Dellaware, especializadas em “corporations” e direitos de arena, ou as de New York especializadas em comércio exterior), quando invocadas em outros estados.

B. Binding authorithy, as decisões das cortes superiores de mesma jurisdição, ou as decisões da mesma Corte; repita-se que uma única decisão pode constituir-se em “precedent” (portanto, em oposição ao nosso sistema, onde, pelo menos, para considerar-se jurisprudência firme, em geral, se exige um número razoável de decisões no mesmo sentido). (SOARES, 1997, p. 184 e 185)”

No que concerne à hierarquia constitucional dos EUA, Soares (1997) aduz que lá tal hierarquia não é só determinada pelas normas contidas na Constituição Federal, mas também pelos “cases laws”. E relata que a estrutura normativa dos Estados Unidos é constituída da seguinte forma:

“No ápice, encontra-se a Constituição dos EUA, aprovada por um Congresso Constituinte em 17 de setembro de 1787 e ratificada pelos Estados da Federação, em 1788. Suas dez primeiras emendas, elaboradas naquela época e em vigor a partir de 1789, são denominadas “Bill of Rights” […]. Espalhados por entre os dispositivos primitivos e as emendas posteriores, há princípios jurídicos e regras hermenêuticas e de aplicação, que se denominam clauses, em razão dos artigos (“clauses” são as denominações do que para nós seriam os “artigos”) da Constituição: “Supremacy Clause” (superioridade da Constituição e da legislação federal sobre as constituições e a legislação dos Estados-membros, inclusive sobre os tratados internacionais); “Full Faith and Credit Clause” (obrigatoriedade de os Estados atribuírem aos “statute” e “cases” de “sister states” o mesmo valor jurídico que os “statute” e “cases” nascidos no próprio território); “Due Process Clause” (obrigatoriedade de a União e os Estados respeitarem os princípios fundamentais e constitucionais relativos a direitos a um processo civil e criminal onde se assegurem ampla defesa, o contraditório, a proibição de dupla condenação…), “Commerce Clause” (proibição de leis estaduais ou federais que criem empecilhos ao livre comércio de bens entre os Estados da União).

 A seguir, encontram-se os tratados internacionais e os “Executive Agreements” (acordo executivo), que vêm logo abaixo da Constituição Federal, na hierarquia das leis. Em virtude da “Supremacy Cause”, os atos internacionais são superiores às leis federais (“federal statute”) revogam-nos, mas são por elas revogáveis.[i] (SOARES, 1997, p. 186 e 187)”

Abaixo dessas espécies normativas, há os Federal Statutes [ii] e abaixo deles há os States Statutes [iii] que são as constituições dos Estados. No que concerne à competência legislativa dos municípios, Soares (1997) afirma que:

“[…] tanto podem ser organizados como “municipalities” (correspondendo a uma cidade ou região metropolitana) ou “counties” (organização política territorial que engloba várias cidades, “towns” ou “regions”) variando muito em cada “State” são regidos pelas “Home Rule” (o equivalente à nossa “lei orgânica dos municípios”) elaboradas de maneira mais diversa nos vários Estados (seja pelo legislativo estadual, seja pelos órgãos legisladores das unidades político-administrativas interessadas). Expedem-se a nível municipal (a melhor tradução para o termo é “local”) “local ordinances” ‘local rules” e “local regulations”. Em geral, nas “municipalities” e nos “counties” há um prefeito (“Mayor” e uma assembleia unicameral, o “Council”), reservando-se para o que denominamos “lei municipal”, a apelação de “Municipal Ordinances”. (SOARES, 1997, p. 189)”

Ademais, conforme David (2002), nos EUA há uma publicação cuja finalidade é expor as regras da common law do país, trata-se do Restatement of the Law. É um periódico de uma associação privada, o American Law Institute, que procura, nas matérias em que as intervenções do legislador não foram muito numerosas, expor, de um modo exato as soluções que estão em maior harmonia com o sistema da common law norte-americana e que, consequentemente, fazem jus à consagração pelos tribunais do país.

A referida obra possui 2 (duas) séries de volumes: a série Restatement in the Courts que aponta as espécies em que um artigo do Restatement foi cintado; e a série do State Annotations responsável por informar em que medida as regras que se encontram no Restatement são, efetivamente, reproduzidas pelos Tribunais dos Estados.

Insta salientar que de modo algum o Restatement é utilizado nos EUA como um código. Trata-se, em verdade, consoante David (2002), de uma espécie de manual em que se podem encontrar, fazendo uso de um plano ordenado, as decisões de jurisprudência que são importantes na espécie.

No que diz respeito à organização judiciária dos Estados Unidos, adota-se o federalismo, com arrimo na 10ª (décima) Emenda à Constituição, onde prevê que “os poderes não delegados aos Estados Unidos, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados ou ao povo”.[iv] A competência dos Estados da federação, assim como do povo, com fulcro nesta emenda, é residual.

Nesta perspectiva, Richard D. Freer (2006) relata que “os estados independentes que formaram os Estados Unidos cederam poderes para a formação de um governo nacional” e, em virtude disso, “os poderes não cedidos para o governo federal remanescem com os estados e o povo”. Assim, cada Estado possui sua organização judiciária, mas por ter uma organização judiciária piramidal, todos os Tribunais judiciais dos Estados ficam vinculados aos precedentes da Suprema Corte norte-americana.

Freer (2006) reitera ainda que não há um direito amplo e irrestrito de se recorrer à Suprema Corte, porque ela julga apenas uma pequena quantidade de casos, ou seja, a Corte escolhe apenas aqueles em que um pronunciamento pela última Corte máxima é necessário para dirimir quaisquer dúvidas que impeçam a existência de clareza, certeza e segurança para a aplicação do direito, criando, desta forma, um precedente.

3. Teoria Fundamental: “Doctrine Of Stare Decisis”

Inicialmente, para se compreender a doutrina do stare decisis, faz-se necessário estabelecer premissas básicas. Primeiro, a common law não se confunde com doutrina do stare decisis, pois esta transcende a família da common law, já que é possível vislumbrar a força dos precedentes que decorre da doutrina do stare decisis em outros ordenamentos jurídicos, como em sistemas jurídicos filiados à família do civil law.

Neste sentido, Luiz Guilherme Marinoni (2013) afirma que não há que se confundir common law com stare decisis, pois o primeiro, compreendido como os costumes gerais que determinavam o comportamento do Englishmen, existiu, por vários séculos, sem stare decisis e rule of precedent (regra do precedente). É importante deixar claro também que tanto na common law, quanto na civil law, há leis, mas com grau de importância distinto. Contudo, o processualista enfatiza ainda que não há como negar a importância que o stare decisis teve para o desenvolvimento da common law em sua faceta hodierna, tampouco esquecer que os precedentes – ao lado da lei e dos costumes – constituem fonte de direito neste sistema.

Ademais, Lenio Luiz Streck (2014) é enfático em dizer que a doutrina do stare decisis não pode e não deve ser confundida com a doutrina dos precedentes judiciais. A primeira doutrina surgiu no século XIX, quando a apreciação de um determinado caso passou a ser tratada como obrigatória em um tribunal no julgamento de um caso semelhante vindouro. Frisa ainda que a doutrina do stare decisis origina-se da doutrina dos precedentes, contudo, esta almejava fazer com maior clareza a distinção entre a holding e a dictum. Já a doutrina dos precedentes estava mais vinculada aos costumes dos juízes, e consistia em uma linha de casos em vez de apenas uma única decisão que poderia ter efeito vinculante, conforme admite o stare decisis.

A doutrina do stare decisis, originária do direito inglês, decorre da expressão latina stare decisis et non quieta movere que significa “mantenha-se a decisão e não se mexa no que está quieto”.  Na Inglaterra, já existia desde o século XIX, onde havia uma imposição aos juízes de, em dadas circunstâncias seguirem as regras de direito decorrentes de julgamentos precedentes de outros juízes.

Porém, para David (2002), nos Estados Unidos há uma regra semelhante, mas a regra norte-americana do stare decisis não funciona nas mesmas condições e não tem o mesmo rigor que a atual regra inglesa do precedente, até porque a estrutura política norte-americana assentada no federalismo objetiva que o direito assegure a segurança jurídica necessária para manutenção das relações jurídicas, sem deixar de lado a evolução da sociedade norte-americana e as influências recebidas por outros ordenamentos jurídicos.

 Vale destacar que a globalização proporcionou uma interdependência política, econômica e até jurídica entre os países inseridos nesse processo, em que há uma constante permuta de experiências, bem como a construção conjunta de normas jurídicas com o fito de regular as relações jurídicas que transcendem os limites geográficos de determinado país.

Nos dizeres de David (2002), tudo o que de certo se pode dizer acerca da regra do stare decisis nos Estado Unidos é que ela comporta uma importante limitação: a Suprema Corte dos Estados Unidos e as Cortes dos Tribunais dos Estados não estão vinculados às suas próprias decisões e podem desviar-se delas, desde que ocorra a devida justificação/motivação. Ressalte-se ainda que os Estados são soberanos, em virtude da adoção do federalismo, e a regra do stare decisis funciona apenas com relação às matérias de domínio da competência dos Estados, no seio da hierarquia das jurisdições deste Estado.

 No entanto, alguns autores norte-americanos, desejando uma evolução acelerada do direito, afirmaram que a regra do stare decisis não se impunha no atual direito estadunidense, enquanto outros, mais contrários às mudanças, afirmam que esta doutrina é uma peça essencial do sistema jurídico dos EUA.

O stare decisis, nas palavras da ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie Northfleet (1994), é a pedra angular do sistema da Common Law dos Estados Unidos e permite que o juiz se beneficie da experiência de seus antepassados; uniformiza a aplicação do direito e, sobretudo, torna esse direito mais previsível, acrescentando o ideal de segurança jurídica.

Já para Edward Domenic Re (1994), professor da Faculdade de Direito da St. John’s University – New York, o stare decisis foi implantado nos Estados Unidos da América como parte da tradição da common law, visando prestigiar a estabilidade e permitir o desenvolvimento de um direito consistente e coerente, preservando a continuidade, manifestando respeito pelo passado, assegurando igualdade de tratamento aos litigantes em situações semelhantes, poupando, desta forma, os juízes da tarefa de reexaminar as regras de direito a cada caso subsequente, assegurando à lei uma desejável medida de previsibilidade.

Todavia, a doutrina do stare decisis não é dotada de limitações, isto é, o precedente não deve ser encarado como um dogma, uma verdade intangível, mas como ponto de partida para ulteriores decisões. O precedente concebe um princípio, onde o juiz afirma a pertinência deste princípio extraído, depois, trata de aplicá-lo, lapidando e aperfeiçoando aquele princípio com o objetivo de alcançar a realidade da decisão dos casos concretos futuros.

Domenic Re (1994) aduz ainda que num sistema de common law, as discussões sobre o stare decisis frequentemente se desenvolvem como se o sistema fosse idêntico ao que vigorava há alguns séculos atrás.  E afirma também sobre o sistema norte-americano:

“O nosso sistema (o sistema norte-americano) ainda é um sistema de common law no qual os casos anteriormente decididos têm força de precedentes. Um novo elemento muito importante, no entanto, foi acrescentado ao conjunto de fontes a ser considerado pelo juiz em sua decisão. No passado, particularmente no campo do direito privado, os juízes consultavam essencialmente os precedentes judiciais. Raramente atos legislativos tinham influência sobre as decisões. O sistema da common law no mundo moderno, no entanto, precisa tomar em consideração a política legislativa expressa ou implícita numa multidão de dispositivos legais pertinentes.[v] (DOMENIC RE, 1994, p. 285)”

Desta forma, é notória a diferença existente em como o precedente era visto nos seus primórdios e nos dias atuais, isto é, hoje há uma figura importante que influencia demasiadamente a sua aplicabilidade: a legislação. Domenic Re (1994) concatena que na aplicação de um precedente, o jurista precisa determinar a autoridade desse precedente. Será ele vinculativo ou meramente persuasivo? Se for vinculativo, o princípio estabelecido no caso antecedente deve ser aplicado e define o julgamento do caso subsequente. Já se for apenas persuasivo, uma variedade de fatores adicionais deve ser considerada para que se decida sobre sua aplicação e sobre a extensão e o grau desta aplicação.

Entretanto, mesmo diante de um precedente vinculativo, o jurista deve ter o máximo de cautela ao aplicá-lo, pois não há casos concretos iguais. Há, sem sobram de dúvidas, casos que se assemelham, seja em razão das causas lhes deram origem, seja em virtude das consequências ou da identidade de partes envolvidas nos litígios, mas jamais existirão casos idênticos assim como não existem pessoas idênticas, pois mesmo os gêmeos univitelinos possuem suas diferenças, sobretudo no caráter.

 Todavia, a máxima latina ex facto oritur jus assevera que o direito deriva dos fatos, ou seja, cada caso tem suas particularidades, suas nuances próprias que o distingue dos demais, não devendo o precedente ser engessado e frio como a letra de uma lei. Para o professor norte-americano, a autoridade do precedente depende e é limitada aos “fatos e condições particulares do caso” que o processo anterior “pretendeu adjudicar”. Assim, os precedentes não devem ser aplicados de forma automática, deve-se ter um estudo cuidadoso destes para verificar se existem ou não similaridades de fato e de direito dos casos em exame com relação ao julgado proferido anteriormente pela Corte.

Domenic Re (1994) traz interessante excerto doutrinário de uma decisão da Corte de Apelação do Estado de New York para corroborar o que foi arrazoado anteriormente [vi]. In verbis:

“[…] a doutrina do stare decisis, como quase todas as outras regras de direito, comporta exceções. Ela não se aplica a um caso onde possa ser demonstrado que o direito foi mal compreendido ou mal aplicado ou onde a decisão anterior seja evidentemente contrária à razão. São tão numerosas as manifestações a advogar que, em tais casos, constitui dever dos tribunais reexaminar a questão. (DOMENIC RE, 1994, 284)”

Nesta perspectiva, Domenic Re (1994) emenda que a doutrina do stare decisis consequentemente não exige obediência cega às decisões passadas. Sua função é permitir que os tribunais se beneficiem da sabedoria do passado, mas rejeitem o que seja desarrazoado ou errôneo. Antes de qualquer coisa, é necessário que os tribunais determinem se o princípio deduzido através do caso anterior é aplicável. Em seguida, deve definir qual a extensão dessa aplicação. Assim, um tribunal pode optar por ampliar um princípio além dos contornos de um caso anterior se perceber que assim estará promovendo justiça. Caso contrário, se a aplicação produzir resultado indesejável, o tribunal lapidará ou restringirá o princípio anteriormente produzido, ou ainda aplicará outro precedente.

Ao percorrer nessa mesma linha, Frederick Schauer (2009) avaliza que para entender a ideia de precedente é necessário apreciar a diferença entre aprender com o passado e seguir o passado unicamente em função de uma decisão passada, isto é, a decisão tem a habilidade de demonstrar a capacidade fundamental do ser humano de aprender com os seus semelhantes e com o passado.

Desta forma, o jurista não deve e não pode solucionar um caso concreto apenas com base em suas convicções pessoais ou com suporte em elementos essencialmente intrínsecos ao caso em apreciação. Ele deve interpretar de forma a adequar o precedente ao caso, extraindo a razão de decidir e aplicando-a quando necessário ao deslinde do feito, mas para isso deve o jurista fazer um exercício interpretativo.

No que concerne a tal exercício interpretativo, Ronald Dworkin (2001) traz um caso hipotético interessantíssimo. In verbis:

“[…] o Supremo Tribunal de Illinois (EUA) decide, há muitos anos atrás, que um motorista negligente que atropelou uma criança era responsável pelo dano emocional sofrido pela mãe da criança, que estava ao lado dela na rua. Uma tia promove uma ação contra outro motorista descuidado pelo dano emocional sofrido ao ouvir pelo telefone, há muitas milhas do lugar do acidente, que sua sobrinha fora atropelada. A tia tem direito a reparação por esse dano? Os advogados muitas vezes dizem que isso é uma questão de interpretar corretamente a decisão. A teoria jurídica da qual o juiz anterior realmente se valeu, ao tomar sua decisão sobre a mãe na rua, inclui a tia ao telefone? Mais uma vez, os céticos assinalam ser improvável que o primeiro juiz tivesse em mente alguma teoria suficientemente desenvolvida para decidir o caso da tia em qualquer sentido, de modo que um juiz que “interpreta” a decisão anterior está, na verdade, criando um novo Direito da maneira que julga melhor. (DWORKIN, 2001, p. 220)”

Depreende-se assim que a ideia de interpretação, consoante Dworkin (2001), não deve servir como descrição geral da natureza ou veracidade de determinados institutos jurídicos, ou seja, os juristas não devem tratar a interpretação como uma atividade sui generis, mas estudá-la como um modo de conhecimento, atentando para outros contextos e outros saberes imprescindíveis ao exercício hermenêutico-interpretativo.

Neste diapasão, o stare decisis emerge para alguns, como teoria, para outros, como doutrina, mas com um único objetivo, qual seja: respeito ao precedente, vinculando o Poder Judiciário para casos futuros, mas sem previsão normativa expressa, nos EUA, acerca desse efeito vinculante.

Conclusão

À guisa de conclusão, nota-se que a common law não se trata de um direito anglo-saxônico, pois este era o direito das tribos e reinos da Inglaterra. Ademais, não é um direito exclusivamente da Grã-Bretânia, pois está presente em países que não fazem parte da ilha britânica.

Outrossim, tal sistema tem como teoria fundamental a doctrine of stare decisis, quem tem como escopo manter uma decisão anteriormente tomada e não ofendê-la posteriormente com outras decisões, salvo quando o caso levado a juízo tenha alguma distinção.

Sendo assim, tal estudo tem uma demasiada importância, tendo em vista a inserção de elementos da família da common law no ordenamento jurídico brasileiro, seja através dos recentes entendimentos jurisprudenciais, seja pela promulgação do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).

 

Referências
DAVID, René, 1906- Os grandes sistemas do direito contemporâneo/ René David; tradução: Hermínio A. Carvalho. – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. – (Coleção justiça e direito).
DWORKIN, Ronald. Uma questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2001.
FREER, Richard D. Introduction to civil procedure. New York: Aspen Publishers, 2006.
MARINONI, Luis Guilherme. Precedentes Obrigatórios/Luiz Guilherme Marinoni. – 3. ed. rev. atual. e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
RE, Edward D. Stare Decisis. Trad. Ellen Gracie Northfleet, In: Revista de Informação Legislativa, 1994.
Rumsey v. New York & New England R.R. Co., 133 N.Y. 79, 85 (1982)
SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Frederick Schauer. Cambridge, Harvard University Press, 2009.
SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law – Introdução ao Direito nos EUA. Guido Fernando Silva Soares. 2ª Edição. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000.
SOARES, Guido Fernando Silva. Estudos de Direito Comparado (I). O que é a “Common Law”, em particular, a dos EUA. Guido Fernando Silva Soares. Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo 1997.
STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?/ Lenio Luiz Streck, Georges Abboud. – 2. ed. Rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como fonte do direito. José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: RT, 2004.
 
Notas:
[i] Os tratados internacionais devem ter aprovação de 2/3 do Senado Federal. Já os “Executive Agreements” não necessitam para seu vigor interno nos EUA da aprovação legislativa.

[ii] Soares (1997) afirma que são as normas federais entendidas como: 1ª) os atos normativos elaborados com a participação do Executivo e do Legislativo, com suas duas Casas: a “House of Representatives” e o (Federal) “Senate”; 2ª) os atos normativos elaborados pelo Poder Executivo diretamente ou indiretamente, com denominações que revelam mais sua finalidade do que a origem; 3ª) os atos normativos elaborados pela “Supreme Court”, em especial em matéria de processo.

[iii] Soares (1997) aduz que os “States Statutes” são as normas votadas na jurisdição do território dos Estados-membros, devendo dizer-se que são as mais detalhadas, uma vez que a legislação federal é intersticial.

[iv] Disponível em:

[v] Tradução de Ellen Gracie Northfleet.

[vi] Rumsey v. New York & New England R.R. Co., 133 N.Y. 79, 85 (1982).      


Informações Sobre o Autor

Diego de Lima Leal

Advogado Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia UNEB. Pós-Graduando em Direito Eleitoral pela Universidade Cândido Mendes


Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

O Direito Processual Civil Contemporâneo: Uma Análise da Ação…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Felipe Antônio...
Equipe Âmbito
53 min read

Análise Comparativa das Leis de Proteção de Dados Pessoais…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Rodrygo Welhmer...
Equipe Âmbito
13 min read

O Financiamento de Litígios por Terceiros (Third Party Funding):…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Autor: Fernando...
Equipe Âmbito
18 min read

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *