Desapropriação de assentamentos irregulares: exclusão da posse e violação do direito à moradia

Resumo: A desapropriação de assentamentos irregulares pode representar uma violação ao direito humano à moradia se não for garantido às famílias removidas o direito à prévia e justa indenização, que pressupõe a reposição integral da perda sofrida. Nas situações em que o imóvel não está registrado em nome do morador junto ao Cartório de Registro de Imóveis, o Município de Belo Horizonte tem ofertado um pagamento apenas pelas benfeitorias realizadas no imóvel, ou seja, pela edificação, quando não é o caso de reassentamento em unidades verticais, deixando de pagar pela posse do terreno, o que significa uma indenização abaixo do valor de mercado. O Decreto Lei 3365/41 se refere à indenização da propriedade que segundo o Código Civil é adquirida mediante a inscrição da escritura pública junto ao Cartório de Registro de Imóveis, entretanto, a informalidade é a regra na maioria das cidades brasileiras e nem todos os lotes comercializados são ou foram precedidos do devido parcelamento do solo e registro. Nas desapropriações de imóveis destituídos do registro deve haver uma indenização da posse do terreno, enquanto bem jurídico autônomo, sem prejuízo do pagamento das benfeitorias ou acessões artificiais realizadas no imóvel, a fim de garantir o direito constitucional da justa indenização.

Palavras chaves: desapropriação da posse; indenização; assentamento irregular

Sumário: 1 Introdução. 1.1 Da formação de assentamentos irregulares ou favelas. 1.2 Do direito de propriedade e da desapropriação. 1.3 A desapropriação e o direito à moradia. 1.4 Das propostas de reassentamento e a desapropriação de assentamento irregular. 1.5 Benfeitorias e Acessão. 1.6 Da desapropriação da posse na doutrina. 1.7 Da desapropriação da posse na Jurisprudência. 2 Conclusão.

1- Introdução

A realização de grandes obras públicas, a exemplo da abertura de vias públicas para tentar solucionar o problema da mobilidade urbana nas grandes cidades brasileiras, às vezes, perpassa pela remoção das famílias que ocupavam o local das obras, por meio do procedimento de desapropriação, que, quando recai sobre assentamentos informais, pode representar uma violação ao direito humano à moradia das famílias se não lhes for garantido o direito à prévia e justa indenização, conforme previsão constitucional.

À pretexto de abertura de vias públicas ou criação de bacias de detenção de cheias, várias remoções em massa estão acontecendo em Belo Horizonte e, como nem todas as famílias aceitam ir para os apartamentos, oferecidos como medidas de reassentamento, parte delas recebem uma indenização das benfeitorias, insuficiente para aquisição de outra moradia, já que exclui a posse do terreno sobre o qual elas foram realizadas, resultando em um processo de exclusão do espaço anteriormente ocupado e em um empobrecimento delas.

A desapropriação de assentamentos informais deve compreender o processo excludente de formação das cidades e abranger mecanismos que diminuem o impacto causado pelo deslocamento forçado e importem em melhorias habitacionais para esses moradores marginalizados como medida de garantir a função social das cidades.

1.1 Da formação de assentamentos irregulares ou favelas

A União se desincumbiu de sua competência legislativa para organizar o processo de urbanização criando leis que disciplinam o parcelamento de áreas ou glebas e os Municípios leis que organizam o uso e ocupação do solo. Essa legislação impôs várias obrigações ao proprietário que, uma vez cumpridas, agregava valor ao seu imóvel. Essa legislação somada à adoção pela Constituição da ideologia capitalista que protege a propriedade privada como direito fundamental e somada ainda a um contexto político econômico de décadas de inflação tornaram a propriedade imobiliária um bem caro, acessível apenas a uma parcela da cidade, se contrapondo à necessidade humana, inerente a todo ser vivo, de ter um local adequado para descanso.

Esse contexto de leis excludentes e elististas (FERNANDES, 2008) referentes ao acesso formal à terra urbana infraestruturada e a conjuntura econômica desfavorável nas décadas de 70 e 80 resultou na inserção da maior parte da população brasileira em imóveis dotados de alguma ilegalidade, sem contar a parcela que está completamente excluída do mercado formal de terras. Os cidadãos que possuem sua moradia, ainda que adequada no que tange à oferta dos serviços públicos básicos de água, luz e saneamento básico, mas carente da legalização do terreno junto ao Cartório de Registro de Imóvel, podem ser prejudicados no momento de uma desapropriação por interesse social, cujas regras são voltadas à indenização de imóveis legalizados assim compreendidos aqueles que estão devidamente matriculados junto ao Cartório em nome do morador criando um verdadeiro tormento para aqueles que possuem somente a posse do imóvel.

O presente estudo se concentrará na problemática de desapropriação de imóveis não registrados de assentamentos irregulares assim compreendidos, nos termos do artigo 47, VI, da Lei 11977/2009 como “ocupações inseridas em parcelamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públicas ou privadas, utilizadas predominantemente para fins de moradia”, seja porque foram provenientes de parcelamentos informais ou irregulares ou fruto de ocupação de áreas privadas para formação de favelas”.

São parcelamentos informais ou irregulares aqueles que não foram precedidos de projeto de parcelamento ou desmembramento do solo aprovado junto ao setor competente do Município e registrado no Cartório de Registro de Imóveis, consoante Lei 6.766/79, originando a matrícula de cada lote junto ao Cartório o que permite a transcrição da Escritura Pública de compra e venda nas eventuais alienações como forma de transmissão da propriedade (artigo 1245 do Código Civil).

Segundo Osório (2006), entende-se por loteamento clandestino lotes que nunca foram apresentados às autoridades legais e que só poderão se regularizar através de normas especiais e lotes irregulares aqueles que foram vendidos faltando uma condição legal.

A Lei Federal 6766/79 disciplina o parcelamento do solo em duas modalidades: loteamento e desmembramento. O loteamento significa a divisão de uma gleba em lotes destinados à edificação e implica na abertura de vias de circulação, logradouros públicos ou prolongamento e modificação e ampliação das vias existentes (§1º, artigo 2º). O desmembramento se difere do loteamento apenas pelo aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique em abertura de novas vias.

As favelas surgiram de uma forma mais espontânea que os loteamentos. Elas se caracterizam pelo forte adensamento, ausência de planejamento e pelo surgimento em periferias dos centros urbanos embora algumas delas estejam, atualmente, extremamente bem localizadas em razão do crescimento das cidades (NEPOMUCENO, 2012, p.19). Para Fernandes:

“Favelas são assentamentos humanos que resultam de invasão de áreas públicas e de particulares; o que define juridicamente as favelas de outras formas de ocupação precária do solo comuns no Brasil, tais como loteamentos “clandestinos” e “ irregulares”, é o fato de que os favelados não têm qualquer forma de título de posse ou propriedade” (FERNANDES, 1998, p. 1330)

A Fundação João Pinheiro se utiliza da expressão aglomerado subanormal em seu levantamento das moradias inadequadas, se valendo da definição do IBGE, que o compreende pelo conjunto constituído por no mínimo 51 unidades habitacionais (barracos, casas etc.) ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de forma desordenada e densa, e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais (FJP, 2007).

Os moradores dos assentamentos irregulares seja ele considerado um loteamento irregular ou clandestino, favela ou aglomerado ainda ressentem de um tratamento isonômico em relação ao morador da cidade legal no momento da desapropriação em virtude da ausência da titulação dos imóveis.

1.2 Do direito de propriedade e da desapropriação

O direito de propriedade é um direito humano fundamental, mas não absoluto. As prerrogativas que lhes são inerentes de reaver o bem, alienar e usufruir são limitadas. A propriedade está condicionada pelo dever de cumprir a sua função social e, extrinsecamente, limitada pelas regras de direito administrativo e urbanístico. O poder público pode, compulsoriamente, adquirir a propriedade de bens particulares, de forma originária, por meio do procedimento de desapropriação, em prol do interesse público, tendo por contrapartida o pagamento da prévia e justa indenização que visa a recompor a perda patrimonial do desapropriado, tornando-o indene de prejuízo.

A desapropriação é uma das formas de intervenção do Estado no domínio privado e a mais drástica delas. Ela está prevista no artigo 5º, XXIV da CF condicionada a três pressupostos: a necessidade pública, utilidade pública e interesse social. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública está regulamentada pelo Decreto Lei 3365/41.

O regramento jurídico sobre a indenização contido nesse Decreto se refere à propriedade que segundo o Código Civil é adquirida mediante a inscrição da escritura pública junto ao Cartório de Registro de Imóveis. A Lei de registros públicos, Lei 6015/73, por sua vez, determina que todo bem imóvel deva ter uma matrícula.

O crescimento urbano acelerado não permitiu que mediante o procedimento de parcelamento do solo todos os lotes comercializados tivessem sua inscrição e matrícula junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Ao contrário. A informalidade é a regra e as cidades são formadas por vários assentamentos irregulares, loteamentos clandestinos e favelas. A Secretaria Nacional de Programas Urbanos (SNPU) afirma que “mais de 12 milhões de domicílios urbanos ocupados por população de baixa renda são irregulares” (CARVALHO, 2007, p. 13) o que importa em afirmar que seus moradores possuem apenas a posse do terreno e não a propriedade, já que destituída do competente registro.

A justa indenização deve refletir o valor de mercado[1] a fim de que os desapropriados tenham condições de conseguir imóvel semelhante na mesma região onde eles moravam para que não haja prejuízo relacionado às relações de trabalho, à educação das crianças e adolescentes e aos vínculos com a comunidade ou o bairro;.

A busca pelo valor de mercado considerando o período inicial da avaliação dos imóveis e da realização das obras pode variar, posto que a intervenção urbana realizada pelo ente desapropriante gera valorização imobiliária no entorno das obras por ele implementadas, antes mesmo do seu término, porém, os desapropriados não podem suportar os ônus da intervenção urbana em detrimento do restante da sociedade que gozaria de seus benefícios, conforme princípio do Estatuto da Cidade contido no artigo 2º, IX, que se refere à “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”

Esse princípio importa em reconhecer que o ganho da sociedade com as obras públicas não pode implicar em prejuízo para os desapropriados, razão pela qual a Constituição impõe a prévia e justa indenização em dinheiro como medida mitigatória, do sacrifício dos cidadãos desapropriados, por exigência constitucional contida no artigo 183, §3º, que se propõe :

“(…) a buscar o equilíbrio entre o interesse público e privado, na medida em que o proprietário perde a propriedade, mas como compensação recebe o valor correspondente em dinheiro”. (DI PIETRO, 2006, p. 166).

Ao Município caberia, no âmbito de sua política urbana e econômica, adotar medidas para evitar a mais valia urbana e especulação imobiliária dos imóveis da região e garantir o direito de moradia dos desapropriados, como por exemplo, adquirindo imóveis na região, antes da desapropriação, para controlar os preços destes, revendendo-os aos munícipes a título de reassentamento ou justa indenização, com fundamento legal nos artigos 174, §1º e 182, ambos da Constituição Federal:

A irregularidade do imóvel não é empecilho para o poder público realizar a desapropriação e alcançar a destinação social pretendida ao bem desapropriado, mas também não pode servir de subterfúgio para não se pagar ao desapropriado um valor suficiente para a recomposição patrimonial, o que é válido para os imóveis destituídos de registro, uma vez que a posse tem conteúdo econômico e é normalmente comercializada segundo os costumes da comunidade, com a realização até mesmo de escritura pública não passível de registro. .

1.3 A desapropriação e o direito à moradia

A indenização prevista como medida mitigatória ao direito de desapropriar da Administração Pública visa a resguardar o direito de propriedade, considerado um direito fundamental (artigo 5º, XXII), mas deve também proteger o direito à moradia (artigo 6º) da qual a propriedade é apenas uma espécie, e, tendo em vista esse bem, de maior abrangência, alternativas de reassentamento devem ser oferecidas às comunidades pobres afetadas por grandes obras de infraestrutura, mantendo as famílias na mesma região da qual estão sendo despejadas.

O direito à moradia pressupõe a segurança da posse e a manutenção das famílias no local onde residem, excepcionados por condições que justifiquem a desapropriação (ALFONSIN, 2006, p. 17), que devem constar de diagnósticos e estudos que precedem aos projetos urbanos, conforme resta regulamentado pelo Ministério das Cidades, principal financiador das obras públicas, por meio da Portaria nº 317 de 19/07/2013 que dispõe sobre medidas e procedimentos a serem adotados nos casos de deslocamentos involuntários de famílias de seu local de moradia ou do exercício de suas atividades econômicas, provocados pela execução de programa e ações, sob gestão do Ministério das Cidades, inseridos no Programa de Aceleração do Crescimento (Ministério das Cidades).

A lógica de que o interesse público prevalece sobre o interesse privado no caso de intervenção do Estado na propriedade particular, segundo as regras do Decreto-Lei 3365/41, deve ser flexibilizada no contexto de grandes obras urbanas que interfiram no direito à moradia de diversas famílias, tendo por fundamento o princípio da gestão democrática das cidades (art. 2º, II) e da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (art. 2º, IX), ambos previstos no Estatuto das Cidades.

No contexto de proteção do direito à moradia e da necessidade de execução de grandes obras em virtude do interesse público, a Resolução 317do Ministério das Cidades se apresenta como uma importante ferramenta de mediação de conflitos, pois estabelece que a remoção só é razoável (e possível) se devidamente justificada. Essa justificativa se insere no direito à informação das comunidades afetadas que têm direito de entender o motivo pelo qual estão sendo desapropriadas. Esse diálogo entre o poder público e as comunidades é fundamental para o processo de negociação, remoção e pagamento das indenizações.

Justificada a desapropriação de bens particulares e a remoção dos moradores, a política de reassentamento deve ser preferida em relação à indenização, posto que o direito à moradia é assegurado por meio do recebimento de outra unidade habitacional, o que não exclui a garantia de recomposição patrimonial para as famílias que não se adequam à essa proposta.

1.4 Das propostas de reassentamento e a desapropriação de assentamento irregular

Em Belo Horizonte as desapropriações de assentamentos informais têm contemplado propostas de reassentamento em unidades verticais. Quando não é o caso de reassentamento, o Poder Público indeniza as edificações realizadas nos terrenos que não estão registrados em nome do morador, referindo-se à indenização das benfeitorias.

Apesar de o poder público prever a disponibilidade de unidades habitacionais aos moradores desapossados ou uma indenização das benfeitorias para aqueles que não recebem os apartamentos, a ausência de indenização da posse representa uma ameaça para aqueles que não se enquadram no perfil de apartamento ou não são para tanto selecionados. A opção dos apartamentos não é adequada para aqueles que possuem animais de estimação, que vivem de coleta de material reciclável, que possuem moradia de uso misto, ou seja, residência e atividade comercial, e ainda famílias muito numerosas, pois os apartamentos são pequenos. Os apartamentos também não são adequados para aquelas residências desapropriadas de valor superior a estes.

O pagamento das indenizações não é suficiente para aquisição de outra unidade habitacional na mesma região a ser desapropriada, já que recebem o valor apenas das benfeitorias e se forem comprar outra terão de pagar pelas benfeitorias e pela posse de outro terreno ou residência, como pode ser verificado pelo documentário “Uma avenida em meu quintal” produzido pelo Programa de Extensão Pólos Reprodutores de Cidadania da UFMG e dirigido por Frederico Triani e Samira Motta.[2].

A Defensoria Pública sustenta que os moradores de assentamentos irregulares possuem direito público subjetivo à regularização fundiária, com fundamento legal no artigo 46 da Lei 11977/2009 e que este direito importa no reconhecimento da posse como expressão do direito humano à moradia. Sustenta ainda que a posse é direito autônomo e independente da propriedade e como tal deve ser respeitado e devidamente indenizado.

Não é juridicamente admissível que o morador de assentamento irregular não seja destinatário do comando constitucional contido no artigo 182, §3º da Constituição Federal que garante a prévia e justa indenização mediante a desapropriação, só por ausência da titulação do imóvel que não foi por ele obtida em razão de um processo de urbanização excludente.

O Município de Belo Horizonte denomina como benfeitorias as acessões artificiais em terrenos públicos ou privados, consistentes nas construções e plantações. Tendo em vista o princípio de que o acessório acompanha o principal, a desapropriação das benfeitorias deve ser interpretada como a intenção de desapropriação da posse dos moradores que deve abranger, além das acessões artificiais, o respectivo terreno onde está a acessão, pois juntos formam um todo inseparável.

A intenção do Município é de buscar uma solução para o fato de a área indivisa da qual se formou o loteamento, desapropriada por Decreto, está registrada junto ao Cartório de Registro de Imóveis em nome de outra pessoa distinta do possuidor, mas a posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini é exercida por moradores pobres.

A solução apresentada de pretender indenizar as construções e plantações tratando-as como benfeitorias e separando-as da posse, ou seja, do terreno, de forma a encontrar um valor referente à terra nua e outro referente aos materiais de construção empregados na edificação não é judiciosa e não torna os moradores indenes de prejuízo ferindo o princípio constitucional da prévia e justa indenização em dinheiro, nos casos de desapropriação por utilidade ou necessidade pública, conforme exigência contida no artigo 182, §3º da Constituição Federal, em que pese o poder público, no caso, reconhecer a posse de boa-fé dos moradores.

O prejuízo consiste no recebimento pelo morador de valor inferior ao valor de mercado de seu imóvel, posto que ele recebe a quantia relativa à benfeitoria (acessão artificial), mas quando for comprar outro imóvel deverá pagar pela benfeitoria e pelo terreno, ainda que o adquira em áreas informais, destituído do competente registro imobiliário.

1.5 Benfeitorias e Acessão

Por meio da desapropriação o ente público ou seus delegados, mediante a declaração formal de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, adquire, compulsoriamente, bens privados, em troca de uma indenização. O procedimento pode ser formalizado extrajudicialmente ou judicialmente quando não houver acordo a respeito do valor indenizatório. (Di Pietro, 2012, p.166)

Conforme se depreende do artigo 2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, todos os bens poderão ser desapropriados, incluindo coisas móveis e imóveis, corpóreas e incorpóreas, públicas ou privadas. O vocábulo “bem” se presta a vários significados. Do ponto de vista jurídico, bem é palavra de significado amplo, abrangendo tanto as coisa corpóreas como as incorpóreas, móveis ou imóveis, fungíveis ou infungíveis, ou, ainda coisas divisíveis ou indivisíveis, simples ou compostas.

Para o ordenamento jurídico os bens são objetos das relações jurídicas ou, em outras palavras, são as utilidades materiais e imateriais que podem ser objeto de direitos subjetivos. O Código Civil conceitua os bens imóveis:

Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.” – grifo nosso(..)

Art. 81. Não perdem o caráter de imóveis:

I – as edificações que, separadas do solo, mas conservando a sua unidade, forem removidas para outro local;

II – os materiais provisoriamente separados de um prédio, para nele se reempregarem” (BRASIL, 2010)

O Código Civil apresenta a seguinte classificação dos bens : os bens considerados em si mesmos (móveis ou imóveis), fungíveis ou infungíveis, divisíveis e indivisíveis, singulares ou coletivos (artigos 79 a 91); bens reciprocamente considerados, principais e acessórios, (artigos 92 a 97); bens considerados em relação ao sujeito, públicos ou privados, (artigos 98 a 103). A partir da definição legal do artigo 79 do Código Civil, a doutrina, apresenta a seguinte classificação de bens imóveis, por exemplo:

a) por sua natureza, referindo-se ao solo, com sua superfície, subsolo e espaço aéreo, uma vez que, a rigor, tudo o que vier a ser aderido ao solo será considerado acessão. (…)

b) por acessão artificial, física ou industrial, incluindo-se tudo aquilo que o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada e o edifício construído, não podendo ser retirado sem causar-lhe destruição, modificação, dano ou fratura. São, basicamente, as construções e plantações. (….)

c) por acessão natural, compreendendo as árvores e frutos (…)d) por disposição legal, que, em conformidade com o artigo 80, CC ( e a Súmula 329doSTF), são os imóveis considerados para efeitos legais, englobando os direitos reais sobre imóveis e as ações que o asseguram (…)” (FARIAS, ROSENVALD, 2007, p. 353)   

As edificações que o Município indeniza sob a rubrica de benfeitorias são bens imóveis por acessão artificial, e podem ser consideradas como bem principal, pois junto com o terreno sob o qual foram erguidas, formam um único bem, inseparável. As acessões artificiais não se confundem com as benfeitorias. Segundo Rosenvald e Farias:

“Acessões artificiais e benfeitorias são institutos que não se confundem. A benfeitorias são incluídas na classe das coisas acessórias (artigo 96CC), conceituadas como obras ou despesas feitas em uma coisa para conservá-la (necessárias), melhorá-la (útil) ou embelezá-la (voluptuária). Já as acessões artificiais inserem-se entre os modos de aquisição da propriedade imobiliária, consistindo em obras que criam coisas novas e distintas, aderindo à propriedade preexistente”(ROSENVALD, FARIA, 2013, p. 487).

Celso Antonio Bandeira de Melo também sustenta que por benfeitorias se deve entender melhoramentos ou conservação feita à construção já existente e não se confude com edificações em imóvel nu:

“Por benfeitoria deve-se entender única e exclusivamente os melhoramentos ou a conservação feita em acréscimo ao já existente. Note-se que a palavra vai tomada em sentido estrito, técnico. Por esta razão não se confundem com benfeitorias as edificações feitas no imóvel nu”. (MELO, 2002, p.736)

De acordo com o artigo 1248 do Código Civil, a acessão é um modo de originário de aquisição da propriedade “ em razão do qual o proprietário de um bem passa a adquirir a titularidade de tudo que a ele se adere (MELO, 2002, p. 736)

As edificações que se pretende indenizar são, portanto, bens imóveis por acessão artificial o que representa também uma forma originária de aquisição da propriedade e, por presunção, as edificações, bens acessórios, pertence ao proprietário do bem principal, do solo ou do terreno, conforme o art. 1.253 do CC/2002:

“Art. 1.253. Toda construção ou plantação existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário”. (BRASIL, 2010)

A presunção de que as construções e plantações pertencem ao proprietário não se aplica em loteamentos clandestinos ou irregulares, em favelas e em toda sorte de assentamento irregular em que está presente o direito à aquisição da propriedade por parte do morador em virtude do decurso da posse no tempo (prescrição aquisitiva). Além disso, o instituto da posse é autônomo em relação ao da propriedade e, nesses casos, é patente o interesse do poder público na desapropriação da posse e não só da propriedade.

Quando o poder público decreta que deseja desapropriar a área sob a qual existe um loteamento clandestino ou irregular a perda do bem recai sobre o possuidor e seu direito público subjetivo à regularização fundiária, que pode ser instrumentalizado pela usucapião, que nestes casos, embora não decretada, serve apenas como argumento para que este morador reclame o pagamento da desapropriação do terreno, que seria do proprietário, a título de indenização pela posse.

Os imóveis sob os quais estão edificadas as acessões, objeto de desapropriação, estão registrados em nome dos loteadores e as edificações, de forma incontroversa, pertence aos moradores que nela obraram de boa fé, não valendo ao caso o princípio de que o acessório, acessão artificial, segue o principal, o terreno.

Em função do princípio de que o bem acessório segue principal, o Município separa as acessões artificiais, ou seja, as construções realizadas pelos moradores, dos terrenos de propriedade privada, classificando-as como benfeitorias e regendo-as pelas regras de que as benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-fé são indenizáveis e sobre elas há o direito de retenção (artigo 1219). Diz o artigo em questão:

“Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis” . (BRASIL, 2010)

Em relação às acessões artificiais, o Código Civil disciplina que quem construir ou plantar em terreno alheio perderá em favor do proprietário o que construiu ou plantou, fazendo jus à indenização se estava de boa fé (artigo 1255). O Código Civil é omisso em relação ao direito de retenção do possuidor de boa fé que constrói em terreno alheio, mas a mesma regra das benfeitorias vale, por analogia, para a acessão artificial, conforme sustentam Farias e Rosenvald (2013). Essa norma permite a indenização das acessões artificiais ao possuidor em detrimento do proprietário, mas deve servir também como argumento para a indenização da posse também em favor do posseiro, em prejuízo do proprietário.

A intenção do Município de separar o terreno das edificações de forma a indenizar o possuidor somente pelo que chama de benfeitoria não o deixa indene de prejuízo e importa em confusão dos institutos jurídicos.

O tratamento que o Município pretende dar às acessões artificiais chamando-as de benfeitorias não guarda qualquer relação com o conceito jurídico destas previstos no próprio Código Civil. O artigo 26, §1º do Decreto-Lei 3365/41 também se refere às benfeitorias, dispensando a elas o mesmo tratamento do Código Civil. Segundo, essa norma, as benfeitorias necessárias implementadas após a expropriação serão sempre indenizáveis as benfeitorias voluptuárias não serão jamais, e as úteis serão indenizáveis, desde que autorizadas pelo poder público.

O Município denomina de benfeitorias o que na verdade se trata de acessões artificiais e ainda que pretenda indenizar somente os materiais de construção empregados na aquisição originária de nova propriedade, a intenção é desapropriar a posse dos moradores do assentamento informal e é nessa perspectiva que a questão deve ser resolvida.

1.6 Da desapropriação da posse na doutrina

O instituto constitucional da desapropriação não afeta apenas o direito de propriedade, como também o direito de posse, se essa for adquirida pela Administração Pública, razão pela qual é expropriável e deve ser indenizada, como sustenta a doutrina:

“Em relação ao direito de posse, malgrado a divergência doutrinária entre as teorias objetiva e subjetiva, é majoritário o entendimento de que é expropriável a posse legítima ou de boa-fé. Afirma-se que, embora seja regra desapropriar a propriedade, o direito de posse também é passível de desapropriação, quando se está diante da posse de boa-fé”. (Carvalho, 2009 p.1062).

Decerto, assim como a propriedade, a posse exercida de acordo com a função social deve ser protegida judicialmente e, por isso, indenizada em caso de desapropriação, não obstante inexistir o título dominial no Cartório de Registro Imobiliário.

Não resta dúvida de que a desapropriação da propriedade é a regra. Mas a posse legítima ou de boa-fé também pode ser objeto de desapropriação como sustenta também MARINELA, 2010, já que possui valor econômico para o possuidor. Hely Lopes Meirelles ensina que:

“(…)a desapropriação da propriedade é a regra, mas a posse legítima ou de boa-fé também é expropriável, por ter valor econômico para o possuidor, principalmente quando se trata de imóvel utilizado ou cultivado pelo posseiro. Certamente, a posse vale menos que a propriedade, mas nem por isso deixa de ser indenizável, como têm reconhecido e proclamado os nossos Tribunais”. (MEIRELLES, 2002, p.571).

Tratando-se de desapropriação de assentamentos informais irregulares consolidados é sustentável que o morador receba o valor total devido pelo imóvel em prejuízo do proprietário, a título de indenização da posse, tendo em vista o decurso da posse no tempo e o princípio de recomposição da perda em favor daquele que está, de fato, experimentando o prejuízo.

1.7 Da desapropriação da posse na Jurisprudência

O Colendo Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou favorável à possibilidade de desapropriação da posse, consoante emerge do aresto ora transcrito:


“Tem direito à indenização não só o titular do domínio do bem expropriado, mas, também, o que tenha sobre ele direito real limitado, bem como direito à posse”. (STF, RE 70.338, Rel. Antonio Nader)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito de indenização da posse, independente da prova da propriedade no seguinte Recurso Especial; RECURSO ESPECIAL Nº 1.201.343 – PR (2010⁄0130367-2). Este Tribunal tem consolidado sua jurisprudência no sentido de entender que a posse é um bem jurígeno passível de indenização e que não se aplica ao caso o artigo 34 do Decreto Lei 3465/41, que determina a suspensão do processo de desapropriação a fim de haver decisão, em ação ordinária independente, sobre a quem pertence o domínio, conforme RECURSO ESPECIAL Nº 769.731 – PR (2005⁄0124045-0). Assim, segundo o STJ a desapropriação de posse não se insere na exigência do art. 34 do Dec.-Lei 3.365⁄41 para o levantamento da indenização, que deve ser paga a título de reparação pela perda do direito possessório. Precedentes da Corte: REsp 184762⁄PR; DJ 28.02.2000; AG 393343, DJ 13.02.2003; REsp 29.066-5⁄SP, RSTJ 58:327.

No Recurso Especial 769.731 a área desapropriada era de propriedade do Estado do Paraná e ainda assim a posse foi desapropriada, sem prejuízo da indenização pela desapropriação das benfeitorias, o que na verdade deve ser chamado de acessão artificial.

O STJ já afirmou que se o Estado propõe a ação contra o possuidor é porque a intenção é a desapropriação da posse: 'Se o expropriado propõe ação contra o possuidor, é porque não queria desapropriar o domínio, mas, simplesmente a posse. O possuidor, titular de promessa de compra e venda relativa a imóvel desapropriado, tem direito ao levantamento da indenização pelo desaparecimento de sua posse. (RESP 29.066-5 SP – 1ª Turma do STJ, Rel. Min. César Astor Rocha – RSTJ 58: 327).

Precedentes : STJ – REsp 1201343-PR, AgRg no AgRg no REsp 1226040-SP,   REsp 769731-PR, REsp 184762-PR

A Defensoria Pública reputa ser mais adequado e judicioso falar em desapropriação da posse e não das benfeitorias, pois, as edificações a que alude, acessões artificiais, agregam-se ao solo, de propriedade pública ou privada, de forma permanente. A presunção de propriedade das acessões por parte do titular do registro imobiliário deve ser relativizada no caso, posto que a posse pertence, de forma incontroversa, aos moradores que agregaram a ela uma função social: a de moradia e portanto são possuidores de boa fé.

A Defensoria pede que nas ações de desapropriação em que o terreno esteja registrado em nome de pessoa que não mais exerce a posse do imóvel (nem a posse direta ou indireta) que se não houver acordo com o posseiro acerca do pagamento pelas acessões artificiais (benfeitorias) seja ajuizada uma ação de desapropriação das acessões artificiais em face do posseiro (morador) e ação de desapropriação em face do proprietário registral, pelo valor do terreno, com pedido de intimação do posseiro para que este defenda o seu direito de receber o valor ofertado pela propriedade, com fundamento na posse, consignando o Município na exordial que reconhece que o posseiro tem direito de receber pelas acessões artificiais, já pagas ou com ação em andamento, e que tem o direito de receber também pela posse do imóvel, pugnando por uma decisão neste sentido. As duas ações são, obviamente, conexas, e devem ser distribuídas por dependência.

O sugerido facilita a defesa por parte do morador posseiro e o seu direito de receber uma indenização justa que possa, o quanto possível, torná-lo isento do prejuízo decorrente do desapossamento involuntário.

Conclusão

Nas situações em que o imóvel não possui registro, o Município de Belo Horizonte tem ofertado um pagamento apenas pelas benfeitorias (acessões artificiais) realizadas no imóvel, deixando de pagar pela posse do terreno, sob o argumento de que o imóvel carece de legalização, o que significa uma indenização abaixo do valor de mercado e acaba por provocar a expulsão dos moradores da região desapropriada, ocasionando uma gentrificação dos locais onde as residências são desapropriadas para a construção de obras públicas.

Os imóveis destituídos da competente escritura pública, mas desapropriados pelo poder público, devem ser devidamente valorizados. A indenização ofertada deve compreender o valor das construções e plantações no terreno, acessões artificiais, como também o valor da posse, em prejuízo do proprietário, que já não tem mais direito sobre o bem, embora conserve a propriedade em seu nome. A posse é bem jurídico autônomo e como tal deve ser considerado nos procedimentos de desapropriação, sob pena de marginalização e empobrecimento de moradores de assentamentos informais que devem ser priorizados pelo poder público como alvo de políticas de regularização fundiária e não de remoções forçadas sem o devido reassentamento ou indenização.

Palavras chaves: desapropriação da posse; irregularidade urbana; indenização

 

Referências
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NEPOMUCENO, Cleide Aparecida. Direito à Moradia: Acesso à aquisição de unidades habitacionais e à regularização fundiária. Revista de Direito Difusos. São Paulo, Ano XII – vol. 57-58, p. 11-24, jan-dez. 2012
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo, 7ª Ed., Editora Impetus, Niterói, 2013
Curso de Direito Administrativo – Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração- 2a ed.- Rev., amp. e atualizada2009
 
Notas
[1] Neste sentido há os seguintes precedentes: REsp 867.010/BA, 1ª Turma, Min. Luiz Fux, DJ de 03/04/2008 e REsp 922998/PR, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavaski, DJ de 11/09/2008

[2] Uma avenida em meu quintal. Direção de Frederico Triani e Samira Motta. Produção: Programa de Extensão Pólos Reprodutores de Cidadania. UFMG. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=rlxKVtikzPw>, Acesso em: 05 de jun de 2013.


Informações Sobre o Autor

Cleide Aparecida Nepomuceno

Defensora Pública do Estado de Minas Gerais, titular da Defensoria Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais. Especialista em Direito Público. Examinadora da prova oral de Direito Civil do VI Concurso da Defensoria Pública de Minas Gerais.


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