A postura do juiz no sistema acusatório

Resumo: Este artigo apresenta as principais características do sistema acusatório adotado pelo processo penal brasileiro, com a finalidade de situar a atuação do juiz criminal dentro desse espectro. Essa relação de conformidade entre a postura do juiz criminal com o modelo acusatório é de total relevância porque referido sistema está atrelado aos alicerces da teoria garantista, forjada pelo Estado Democrático de Direito sobre o qual se funda a República Federativa do Brasil.

Palavras-chave: Constituição Federal. Estado Democrático de Direito. Processo Penal. Sistema acusatório. Juiz.

Abstract: This article presents the main features of the accusatory system adopted by the Brazilian criminal procedure, in order to situate the role of the criminal judge within this spectrum. This relationship of conformity between the criminal judge’s posture with the accusatory model is of utmost importance because this system is linked to the foundation of the guarantee theory, forged by the Democratic Rule of Law which the Federative Republic of Brazil is founded in.

Key-words: Federal Constitution. Democratic Rule of Law. Criminal Procedure. Accusatory system. Judge.

1 Sistemas de investigação criminal

Neste artigo, aborda-se, singelamente, três espécies globais de sistemas de investigações no Processo Penal ― inquisitório, acusatório e misto ―, conquanto existam outras que, obviamente, são empregadas com maior ou menor densidade, como, ad exemplum, o sistema adversarial empregado no direito americano e inglês.

A propósito, importante dizer que está longe de haver uniformidade quanto à construção doutrinária do que seriam os modelos inquisitório e acusatório, visto que todos os dados baseiam-se em elementos históricos que podem variar de acordo com o ângulo da pesquisa e as fontes utilizadas pelo pesquisador.

Ao depois, oportuno registrar que, entre esses dois sistemas, houve uma alternância histórica durante os séculos por força de regimes políticos. Para Luigi Ferrajoli[1], o processo penal da Antiguidade, tal como se configurou na Grécia e na Roma republicana, tinha estrutura acusatória, haja vista o caráter privado da acusação e a consequente natureza arbitral do juiz. Essa causa era de iniciativa do ofendido, que tinha o ônus da prova e de produzir sua acusação. Somente com a Roma Imperial é que se passou a desenvolver os procedimentos de ofício para os delicta publica, sobretudo nos casos de crimina laesae majestatis de subversão e conspiração.

No mesmo período histórico, nasceria, ainda, o sistema inquisitório, desenvolvido ex officio, por força de magistrados que exerciam funções delegadas. Posteriormente, o processo voltaria a ser acusatório, diante das jurisdições bárbaras com os ritos das ordálias e os duelos judiciais.

No século XVI o processo inquisitório difundiu-se por toda a Europa para todos os tipos de crimes, com práticas de torturas, intrigas, milícias togadas e todas as modalidades de arbitrariedades.

Com a Revolução Francesa, o sistema acusatório volta à carga, por conta da ação popular, do júri, do contraditório, da publicidade e da livre convicção do juiz, com uma fase posterior de índole inquisitória, a sinalar para um “processo misto”, ou seja, inquisitório na primeira fase e acusatório na segunda[2].

Vale lembrar que, até os dias atuais, o direito canônico se caracteriza pelo sistema inquisitório.

2 Sistema inquisitório

O sistema inquisitório pode ser conceituado, em linhas gerais, como aquele no qual o juiz atua de ofício à cata de provas, sem qualquer limite para a sua produção, mediante instrução escrita e secreta, sem qualquer contraditório e direito de defesa (Luigi Ferrajoli[3]).

De acordo com Francesco Carnelutti[4], este sistema foi extremamente marcado pela luta travada diretamente entre juiz e imputado, daí por que denominado inquisitivo puro. Este magistrado agia sem limites, na colheita de provas, como verdadeiro inimigo estatal do imputado.

A classificação do sistema inquisitório pode ser feita tanto do ponto de vista histórico, como do ponto de vista teórico. Do primeiro, o tópico anterior apresentou uma pequena ideia de sua evolução. Quanto ao plano teórico, o sistema inquisitório se evidencia: a) pela iniciativa do juiz na produção de provas; b) pela disparidade de poderes entre a acusação e a defesa; c) pelo caráter escrito e secreto da instrução; d) pela figura do investigado como objeto da prova.

A compreensão sistêmica do modelo inquisitório exige do intérprete que associe o entendimento da dimensão política da época de sua aplicabilidade com o método de investigação respectivamente praticado naquele período. Nesse sentido, é forçoso concluir que o sistema inquisitório é conciliável com a concepção absolutista de Estado, pois, nesta forma, existe a primazia inexorável do Estado em detrimento de garantias individuais do investigado ou acusado. Consoante Geraldo Prado[5]:

“A maior parte da doutrina refere como características do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do processo penal ― de acusar, de defender e julgar ― em um só sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade multiforme […]; procedimento extremamente secreto e destituído do contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado; forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente preocupado com o descobrimento da verdade real, via de regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir outros meios de prova.

Não custa colocar em relevo a observação de Franco Cordero, sobre este período e acerca do emprego da tortura. Nota o jurista italiano que provido de instrumento virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura os pacientes como quer: dentro do seu marco pessimista o animal humano nasce culpado.”

Depreende-se que o sistema inquisitório é um modelo histórico e obsoleto, não compatibilizado com o arquétipo evoluído de Estado Democrático de Direito. Por essa razão, somente subsiste em países de regimes autoritários e totalitários, nos quais há subversão de direitos e garantias fundamentais e inexistência de liberdades públicas.

3 Sistema acusatório

O surgimento moderno do Estado de Direito fez enterrar de vez o modelo inquisitório, visto que restou “desacreditado ― principalmente ― por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar” (Aury Lopes Jr.[6]).

Na atualidade, o sistema acusatório é aquele pelo qual o modelo de persecução se faz mediante total respeito aos direitos e garantias fundamentais do investigado e do acusado, em processo público e transparente, com um juiz devidamente investido em suas funções (princípio do juiz natural) e afastado da produção da prova, cuja atribuição da carga é do órgão acusador. Assegura-se, no sistema acusatório, a paridade de armas e o juiz é o verdadeiro guardião constitucional do respeito aos direitos fundamentais. Em Luigi Ferrajoli:

“[…] pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. […]”[7]

Destaca-se que, no modelo acusatório, o juiz deve ser apenas o receptor da prova produzida para que não se contamine com a sua coleta direta, tal como se dava no método inquisitório. Aury Lopes Jr. relembra:

“Como explica J.Goldschmidt, no modelo acusatório, o juiz se limita a decidir, deixando a interposição de solicitações e o recolhimento do material aqueles que perseguem interesses opostos, isto é, às partes. O procedimento penal se converte desse modo em um litígio, e o exame processado não tem outro significado que o de outorgar audiência”[8].

No espectro acusatório, o juiz deixa de se juntar à acusação e exercer seu verdadeiro papel de julgador, preservando-se de forma equidistante das partes, descomprometido com a coleta de provas, cuja carga recai sobre o órgão acusador criado para essa finalidade. A atividade do juiz é marcadamente imparcial.

A função do julgador no sistema acusatório, como guardião dos direitos fundamentais, é primordial não apenas para deixar de produzir provas para o órgão acusador, mas, também e principalmente, para assegurar a todo tempo a paridade de armas. Para Francesco Carnelutti, o que sedimenta o sistema acusatório puro é este balanceamento[9]:

“O grave perigo de injustiça, que daí se segue, denuncia a inferioridade do tipo inquisitório e determina sua substituição pelo tipo acusatório, cujo caráter consiste, por sua vez, não tanto na presença da acusação, quanto na mediação da acusação e da defesa entre juiz e imputado. […]”

Por isso que, dessa análise histórica antes vista, o sistema acusatório consolidou-se nos Estados Democráticos de Direito por respeitar globalmente os direitos humanos e, uma vez internalizados, os direitos e garantias fundamentais e as liberdades públicas.

A Constituição da República de 1988 se apresenta com esses contornos em que se respeitam direitos fundamentais e, no âmbito do processo penal, se desemboca na teoria garantista e no consequente sistema acusatório, conforme menciona José Frederico Marques[10], ao observar que a Carta Magna optou pelo sistema acusatório, ao prestigiar o fundo político democrático-liberal de suas origens.

4 Sistema misto

Houve, no passado, períodos em que, nos procedimentos investigatórios, existira uma mescla entre o sistema acusatório, mas grandes resquícios autoritários no modo de captação das provas de um fato noticiado criminoso. Os pesquisadores costumam classificar esse sistema como “misto”. Um exemplo disso pode ser notado na seguinte lição de Luigi Ferrajoli:

“[…] Foi portanto natural que a Revolução Francesa adotasse (…) o sistema acusatório (…). Mas a experiência acusatória não perdurou, no continente europeu, depois dos anos de revolução. Já o Código termidoriano de 1795 e depois o Código napoleônico de 1808 deram vida aquele ‘monstro, nascido da junção entre os processos acusatório e inquisitório’, que foi o assim denominado ‘processo misto’, com prevalência inquisitória na primeira fase, escrita, secreta, dominada pela acusação pública e pela ausência de participação do imputado quando este era privado da liberdade; tendentemente acusatório na fase seguinte dos debates, caracterizada pelo contraditório público e oral entre acusação e defesa, porém destinado a se tornar uma mera repetição ou encenação da primeira fase”[11].

No entanto, até hoje, há correntes doutrinárias que invocam o “sistema misto” como uma subespécie que se fincaria entre os sistemas inquisitório e acusatório, sob o argumento de que, nenhum ordenamento jurídico, adota exatamente o modelo inquisitório clássico, tampouco o modelo acusatório puro.

Surge, também, o argumento de que, no Brasil, haveria um sistema misto, porquanto teríamos duas fases, quais sejam (i) da investigação preliminar, que seria inquisitorial, e (ii) da fase processual, com característica acusatória. Anota Rogério Lauria Tucci[12]:

“[…] o moderno processo penal delineia-se inquisitório, substancialmente, na sua essencialidade; e formalmente, no tocante ao procedimento desenrolado na segunda fase da persecução penal, acusatório.”

Entendemos ― como afirmado no capítulo que tratou do sistema inquisitório ― que esse modelo é histórico, e não mais subsiste em países que seguem a estrutura de Estado Democrático de Direito.

O fato de existir uma investigação criminal preliminar ― quer seja feita pela polícia judiciária, Ministério Público ou qualquer outra instituição que tenha tal atribuição ― não quer dizer que a primeira etapa, de per si, siga o sistema inquisitorial, porquanto esta tem características “autoritárias”, violadoras dos direitos e garantias fundamentais, sendo o investigado encarado como “objeto” da investigação.

No Brasil, conquanto ainda seja importante desenvolver bastante o modelo acusatório ― notadamente no tocante à investigação defensiva ―, o procedimento preliminar assegura respeito ao investigado e a seus direitos, o qual sempre poderá socorrer-se da proteção judicial em caso de lesão ou ameaça a direito (Constituição Federal, art. 5º, inciso XXXV).

O equívoco em sustentar-se a existência de um modelo misto até hoje consiste na inobservância do “núcleo fundante” dos sistemas inquisitório e acusatório, tanto que aqueles que apontam, ainda hoje, a existência de um sistema misto não apresentam uma identidade para essa pseudoespécie, como ressalta Mauro Fonseca Andrade:

“O fato de ser híbrido e marcadamente multiforme leva os seguidores dessa corrente a não apresentarem uma descrição concreta do sistema misto. Como justificativa, afirmam que essa característica conduziria a uma variação de seus elementos quase ao infinito, dificultando a possibilidade de se encontrarem dois sistemas idênticos ou uniformes. Como já disse Valiante, ‘non esiste una strutura mista única’”[13].

Com efeito, não haverá, na atualidade, em nenhum ordenamento jurídico, sistemas de investigação que se encaixem como luva nas características históricas de outrora. Cabe ao pesquisador investigar o núcleo fundante e concluir por qual modelo a ordem jurídica de determinado país se filiou. Nesta etapa, surge a importância do papel do jurista, que deve contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico de um Estado moderno. De conformidade com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

“[…] Não obstante, não é preciso grande esforço para entender que não há ― e nem pode haver ― um princípio misto, o que, por evidente, desconfigura o dito sistema. Assim, para entende-lo, faz-se mister observar o fato de que, ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro. […]”[14]

Segue-se que não há que se falar, no Brasil, em sistema misto de investigação criminal, visto que o procedimento preliminar não tem características inquisitoriais.

5 O juiz do sistema acusatório

A importância de tratar do tema acima destacado repousa na necessidade de, a partir da compreensão inicial das diretrizes básicas dos sistemas de investigação ― especialmente o inquisitório e o acusatório ―, possa a figura do juiz criminal ser compatibilizada com o “devido processo penal” do país. Nas palavras de Rogério Lauria Tucci:

“Assim concebido, especifica-se o devido processo penal nas seguintes garantias: a) de acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c) de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal; d) da plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos atos processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; g) da fixação de prazo razoável de duração do processo penal; h) da legalidade da execução penal”[15].

Em nossa ordem jurídica, o sistema adotado é o acusatório, como anotado em tópico anterior, pelo que a atuação do juiz criminal deve estar afeiçoada a esse modelo, e não a características de índole autoritária, o que muitas vezes ocorre de maneira até inconsciente ― fruto da cultura inquisitória ―, e por estar convencido que esse proceder se compatibilizaria com o anseio “utilitarista” da sociedade órfã.

O primeiro aspecto a estar atento é que a ação penal não é deflagrada de ofício pelo Estado-juiz, mas por órgão constitucionalmente criado para tanto ― Ministério Público ―, de modo que é preciso estar atento à natureza jurídica do processo como “situação jurídica[16]” (James Goldschmidt). A ação penal é provocada pelo órgão acusador e este tem a atribuição pela carga probatória em juízo diante da aludida situação jurídica do processo.

Ao depois, é mister observar que o figurino consentâneo ao juiz do sistema acusatório deve estar imunizado de eventuais influxos que lhe cercam em suas atividades cotidianas, uma vez que, como ressabido, a mencionada “neutralidade” do magistrado é uma grande falácia por refugir à própria “característica humana”[17], tanto que, em seu imo, acaba por ter opiniões, ideologias e convicções formadas sobre os mais diversos assuntos. Na verdade, deve o juiz ter “imparcialidade” ― que significa, de acordo com Werner Goldschmidt[18], colocar entre parênteses as considerações subjetivas do julgador ― e postura no processo que se compatibilize com essa característica.

A problemática da incompatibilidade do juiz do modelo acusatório com esse sistema se dá quando este profissional entende que sua atuação é mais profícua para a sociedade ao se juntar ao órgão acusador na produção de provas, tal como ocorria antanho, quando da atuação ativista do juiz inquisidor (lógica inquisitória).

Nessa acumulação indevida de funções (produtor de provas + julgador), seu convencimento estará contaminado: sua atuação futura, certamente, buscará ratificar suas hipóteses; o processo tornar-se-á mero instrumento contemplativo, pois a culpa estará consolidada de antemão; tudo que praticar estará virtualmente direcionado para aquilo que irá decidir.

Por isso, o juiz do sistema acusatório deve cumprir o “princípio dispositivo”, segundo o qual a gestão das provas recai sobre as partes, máxime sobre a acusação (nulla accusatio sine probatione), visto que é só na regência do “princípio inquisitivo” que se justifica um juiz que tenha responsabilidade pela gestão probatória. Vale dizer: no sistema acusatório, o juiz criminal não deve ser agente protagonista do processo penal na produção da prova.

É preciso entender que, com a Constituição de 1988, a República conferiu a atividade da investigação à Polícia Judiciária, e ao Ministério Público a titularidade, em regra, da ação penal, razão pela qual ao Parquet recai a atribuição exclusiva da carga probatória de determinado fato penalmente relevante. Não é o juiz, no devido processo penal, quem deve preocupar-se em perseguir a prova da acusação, acreditando, com essa ambição probatória, estar sendo eficiente quando assim o faz. O Ministério Público é parte exatamente “criada” no processo penal, como diria Francesco Carnelutti[19], para exercer a função ativa no processo penal e, como assinala Joaquim Canuto Mendes de Almeida[20], para afastar o juiz dessa função.

Quando o juiz se junta à acusação para produzir provas, desnivela a balança do processo e, por autoridade própria, deixa de ser o garantidor da paridade de armas, para ser o protagonista da violação dessa garantia. O juiz é o destinatário da prova e essa é a única postura que se espera de um magistrado quando se opera no sistema acusatório, expungindo-se da perigosa ambição pela busca da verdade. Salah H. Khaled Jr. adverte:

“[…] Ao sistema acusatório convém um juiz espectador, dedicado acima de tudo à valoração objetiva e imparcial dos fatos e, portanto, mais prudente do que sapiente, enquanto o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo e por isso leguleio, versado nos procedimentos e dotado de capacidade investigativa. […]

No entanto, alguns entendem que o juiz pode ocupar o lugar do acusador e brilhar como se fosse estrela de seu próprio reality show. […]

Alguns encaram tudo isso com surpreendente naturalidade, o que não é por acaso: escondem sua predileção por estruturas processuais penais autoritárias. Existem precedentes históricos facilmente identificáveis para tais devaneios inquisitoriais. Por essa e muitas outras razões, a escolha entre acusatoriedade e inquisitoriedade não é uma simples opção teórica ou acadêmica. São dois modelos fundamentalmente distintos, que propõem jornadas processuais diametralmente opostas: a) um processo penal do inimigo, de corte inquisitório e autoritário, fundado na ambição da verdade; ou b) um processo penal do cidadão, de corte acusatório e democrático, fundado na dignidade da pessoa humana e na presunção de inocência[21].

Por isso, o juiz que produz provas ao lado do Ministério Público, sob a égide do modelo acusatório, conseguintemente acusa e, infalivelmente, se contaminará para julgar por acumular funções que são manifestamente incompatíveis entre si (acusar e julgar). Se busca provas antes de julgar o processo, valora-as precocemente. Na observação de Geraldo Prado[22]:

“O juiz é o destinatário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que pretende comprovar”.

Desse modo, falar em segurança jurídica, dentro do Estado Democrático de Direito, é pensar o Processo Penal como ritual de persecução criminal que observa as “regras do jogo”, as quais são preestabelecidas, não aleatoriamente, mas pelo ordenamento jurídico; por isso, é o Estado quem deve ser o primeiro a cumpri-las. Nessa construção teórica, pode-se afirmar que, no sistema inquisitório, busca-se obter o resultado da investigação a qualquer custo, por qualquer meio, ao passo que, no sistema acusatório, privilegiam-se, sobretudo, as referidas regras.

Da nítida distinção entre os sistemas inquisitivo e acusatório transmuda-se, outrossim, o modo de encarar a verdade no processo penal, livrando-se de muitos equívocos decorrentes do terrível influxo da teoria geral do processo e da mencionada cultura inquisitória do processo. Com efeito, não se afigura mais apropriado dizer que o processo civil busca a “verdade formal”, ao passo que o processo penal persegue a “verdade real”, pois esta classificação, a rigor, está subsumida ao modelo inquisitório antes mencionado, que busca coletar a prova a qualquer custo e onde investigado é considerado objeto da prova, e não sujeito de direitos[23]. O processo penal de modelo acusatório não busca uma verdade real, mas tem, tecnicamente, nível de cognição mais denso do que no processo civil, em termos de busca da verdade dos fatos trazidos ao mundo dos autos.

O processo penal republicano adota o sistema acusatório, pelo qual o juiz é imparcial e receptor da prova trazida pelas partes, imunizado de tentações que o leva à prática de “decisionismos”[24] e ao perigoso ativismo típico do sistema inquisitório.

Conclui-se, assim, pela importância em afirmar-se que, na atualidade nosso ordenamento jurídico segue o modelo acusatório no processo penal, de modo que cabe ao juiz criminal compreender suas nuances ao exercer a jurisdição nessa seara e manter postura, inclusive estética de imparcialidade[25], que se compatibilize com seus elementos fundantes, cujos alicerces repousam nos princípios da teoria do garantismo, uma vez que vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito, onde a jurisdição penal deve ser trilhada livre do tão repudiado processo ofensivo de há muito criticado por Beccaria[26].

 

Referências
ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Ação penal (análise e confrontos). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938.
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2013.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 6. ed. Revista da tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2013.
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. v. 1. Traduzido por Francisco José Galvão Bruno. 1. ed. Campinas: Bookseller Editora, 2004.
____________________. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Libreria El Foro, 1960. Disponível em: http://www.nparangaricutiro.gob.mx > Acesso em: 31 de mai. 2016.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Processo Penal brasileiro. p. 5. Disponível em: http://www.revistas.ufpr.br > Acesso em: 26 jul. 16.
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TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
 
Notas:
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 521.

[2] FERRAJOLI. Op.cit., p. 522.

[3] Op.cit., p. 520.

[4] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo Penal. v. 1. Traduzido por Francisco José Galvão Bruno. 1. ed. Campinas: Bookseller Editora, 2004. p. 217.

[5] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2006. p. 87-8.

[6] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158.

[7] Op.cit., p. 521.

[8] Op.cit., p. 165-6.

[9] Op.cit., p. 217.

[10] MARQUES, José Frederico. O Processo Penal na Atualidade. Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Acadêmica: 1993, p. 17-8.

[11] Op.cit., p. 521-2.

[12] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 44-5.

[13] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 2. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2013. p. 422.

[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Processo Penal brasileiro. p. 5. Disponível em: http://www.revistas.ufpr.br > Acesso em: 26 jul. 16.

[15] Op.cit., p. 61.

[16] GOLDSCHMIDT, James. Princípios Gerais do Processo Civil (Teoria Geral do Processo). Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Editora Líder, 2004. p. 145-9.

[17] PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O Mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/2052 > Acesso em: 25 jul. 16: “(…) é impossível para qualquer ser humano conseguir abstrair totalmente seus traumas, complexos, paixões e crenças (sejam ideológicas, filosóficas ou espirituais) no desempenho de suas atividades cotidianas, eis que a manifestação de sentimentos é um dos aspectos fundamentais que diferencia a própria condição de ente humano em relação ao frio ‘raciocínio’ das máquinas computadorizadas.

[18] GOLDSCHMIDT, Werner. La Imparcialidad como Principio Básico del Proceso (La Partialidad y la Parcialidad). Disponível em: <http://www.academiadederecho.org> Acesso em: 25 de mai. 2016.

[19] CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Libreria El Foro, 1960. Disponível em: http://www.nparangaricutiro.gob.mx> Acesso em: 31 de mai. 2016.

[20] ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Ação penal (análise e confrontos). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938. p. 37.

[21] KHALED JR, Salah H. Os inquisidores espetaculares e a bigbrotherização do processo penal. Disponível em:< http://www.justificando.com> Acesso em: 24 jul. 16.

[22] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório e conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 141.

[23] KHALED, Jr. Op.cit. […] Não que a rejeição da ‘busca da verdade’ signifique que o processo acusatório desconsidera a verdade: ela apenas perde sua posição hegemônica, o que permite afastar a patologia resultante de sua elevação a cânone no processo inquisitório, redefinindo seu lugar sistêmico na arquitetura processual penal. Com isso é possível abandonar a ambição da verdade, sem deslizar para o relativismo absoluto. Afinal, ‘se uma justiça penal integralmente com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça pena completamente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbitrariedade’”.

[24]FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.p. 46: “O decisionismo é o efeito da falta de fundamentos empíricos precisos e da consequente subjetividade dos pressupostos da sanção nas aproximações substancialistas e nas técnicas conexas de prevenção e de defesa social (…)”.

[25] LOPES JR, Aury. Op.cit. p. 175: “O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, há muito tempo e em diversas oportunidades, tem apontado a violação da garantia do juiz imparcial em situações assim, destacando, ainda, uma especial preocupação com a aparência de imparcialidade, a estética de imparcialidade, que o julgador deve transmitir para os submetidos à Administração da Justiça, pois, ainda que não se produza o pré-juízo, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento. (…)

[26]BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 6. ed. Revista da tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2013. p. 74.


Informações Sobre os Autores

Carlos Alberto Garcete de Almeida

Mestre em Direito Constitucional PUC/RJ, Doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, Professor de Direito Processual Penal ESMAGIS/MS, Juiz de Direito da 1a Vara do Tribunal do Júri em Campo Grande-MS

Carlos Alberto Garcete de Almeida

Mestre em Direito Constitucional PUC/RJ, Doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, Professor de Direito Processual Penal ESMAGIS/MS, Juiz de Direito da 1a Vara do Tribunal do Júri em Campo Grande-MS


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