Constitucionalismo e garantismo: sistema jurídico-penal antigarantista e o constitucionalismo brasileiro tardio

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Resumo: Este artigo, baseado em pesquisa do tipo documental, visa a análise do constitucionalismo brasileiro tardio e a sua relação com as práticas antigarantistas presentes no sistema jurídico-penal brasileiro. Com a presente pesquisa objetivou-se a demonstração de que a ausência de um sentimento constitucional apresenta reflexos em todo o sistema jurídico brasileiro, especialmente no sistema jurídico-penal, a partir de revisão da bibliografia sobre o fenômeno do Constitucionalismo brasileiro tardio, bem como, sobre a Teoria do Garantismo. O método de abordagem utilizado foi do tipo documental, analisando a questão a partir da doutrina de autores nacionais e internacionais, bem como, da análise de sistemas normativos. A pesquisa demonstrou a importância de fomentar uma Cultura Constitucional no quotidiano dos operadores do direito, bem como em toda a sociedade, para que os direitos fundamentais previstos nas normas constitucionais sejam de fato efetivados e se reflitam em todo o sistema jurídico brasileiro, especialmente, no sistema jurídico-penal.

Palavras-chave: Constitucionalismo tardio. Sentimento constitucional. Garantismo. Direitos fundamentais.

Abstract: This article, based on research of documentary type, concerns the analysis of Tardy Brazilian Constitutionalism and its relationship with the “antigarantistas” practices present in the Brazilian criminal legal system. The present work aimed to demonstrating that the absence of a constitutional sense has consequences throughout the Brazilian legal system, especially in the legal and penal system, from review of the literature on Tardy Brazilian Constitutionalism phenomenon, and on the Theory of “Garantismo”. The approach method used was the documentary kind, analyzing the question from doctrine of national and international authors, as well as, analyzing regulatory systems. Research has shown the importance of fostering a constitutional culture in the daily lives of law professionals, as well as the whole society, so that the fundamental rights provided for in the constitutional rules are actually hired and are reflected throughout the Brazilian legal system, especially in the juridical system criminal.

Keywords: Tardy Constitutionalism. Constitutional sense. “Garantismo”. Fundamental rights.

Sumário: 1. A cultura constitucional e o sistema constitucional brasileiro. 1.1. Concausas histórico-político-jurídicas. 1.2. Breve relato histórico sobre as constituições brasileiras. 2. Garantismo penal enquanto instrumento de efetivação de direitos fundamentais. 2.1. A teoria do garantismo e seus três significados. 2.2. Constitucionalismo garantista e a dimensão substancial da democracia 3. Constitucionalismo brasileiro tardio e o sistema jurídico-penal brasileiro antigarantista. 3.1. Sistema jurídico-penal brasileiro e suas origens ditatoriais. 3.2. Movimentos antigarantistas em uma sociedade de risco. 3.3. Ausência de cultura democrática em modelo penal antigarantista. 3.4. Sistema inquisitorial brasileiro e o sistema democrático adversarial. A experiência chilena e a necessidade de mudança cultural.

Introdução

Desde a sua edição, o texto Constitucional brasileiro de 1988, marco da transição democrática do país, é alvo de críticas que dizem respeito, especialmente, à falta de efetividade de suas normas, a necessidade de constantes modificações em seu texto e a comparação com outros que seriam menos extensos, como é o caso da Constituição Americana.

Contudo, quais seriam as causas reais para a dificuldade em tornar suas normas efetivas? Haveria relação entre a falta de efetividade do Sistema Constitucional brasileiro e um modelo de Sistema jurídico-penal caracterizado por práticas antigarantistas?

Diante desses questionamentos principais, o presente trabalho aborda o tema do Constitucionalismo e a Teoria do Garantismo, delimitando-se na análise do constitucionalismo brasileiro tardio e a sua relação com as práticas antigarantistas presentes no sistema jurídico-penal brasileiro.

 Objetiva-se a demonstração de que a ausência de um sentimento constitucional apresenta reflexos em todo o sistema jurídico brasileiro, especialmente no sistema jurídico-penal. Para tanto, utiliza-se do método de abordagem do tipo documental, a partir de revisão doutrinária sobre o fenômeno do Constitucionalismo brasileiro tardio, bem como, sobre a Teoria do Garantismo.

Dessa forma, no primeiro capítulo são abordados os conceitos de Cultura Constitucional e Constitucionalismo brasileiro tardio, apresentando suas causas histórico-político-jurídicas, presentes em relatos históricos sobre as diversas Constituições brasileiras.

Em um segundo capítulo, a Teoria do Garantismo, a partir de seus três significados (modelo normativo de Direito, teoria jurídica e filosofia política), é analisada enquanto instrumento para efetivação de Direitos Fundamentais.

Por fim, no terceiro capítulo apresenta-se o sistema jurídico-penal brasileiro e suas práticas antigarantistas como um dos efeitos ou consequências de um constitucionalismo brasileiro tardio.

O presente trabalho propõe, então, demonstrar a importância de fomentar uma Cultura Constitucional no quotidiano dos operadores do direito, bem como em toda a sociedade, para que os direitos fundamentais previstos nas normas constitucionais sejam de fato efetivados e se reflitam em todo o sistema jurídico brasileiro, especialmente, no sistema jurídico-penal.

1. A Cultura Constitucional e o Sistema Constitucional Brasileiro

A necessidade de buscar respostas diante das tradicionais críticas ao texto constitucional brasileiro conduz à análise de termos como “cultura constitucional” e “constitucionalismo brasileiro tardio”.

Segundo Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 19), há uma relação entre ambos, pois o constitucionalismo brasileiro tardio representa “a ausência de uma cultura constitucional nos Estados pós-modernos que são organizados formalmente por meio de uma constituição, o que conduz à ineficácia social dos textos constitucionais.” E, por sua vez, cultura constitucional é definida pelos: “comportamentos e condutas, públicas ou privadas, tendentes a: I) preservar a “vontade de constituição”; II) efetivar, no plano máximo possível, os princípios e normas constitucionais; III) disseminar o conhecimento a respeito do texto constitucional” (SILVA NETO, 2016, p. 19).

No que diz respeito às críticas, importante ressaltar que essas não devem se restringir a comparar a Carta Magna brasileira em relação à americana de 1787 pela sua extensão e estabilidade. Percebe-se que se trata de realidades e sistemas jurídicos diversos, nos quais cada texto constitucional está refletido por seu contexto característico de sistemas de “Civil Law” e “Commom Law”, respectivamente. Dessa forma, enquanto no Brasil ao Poder Legislativo cabe o papel de atualizador das normas constitucionais em relação à realidade política, social e econômica, nos Estados Unidos essa é uma atribuição do Poder Judiciário (SILVA NETO, 2016, p. 25-26).

Ademais, não há que se falar em constitucionalização do direito através da disseminação dos valores constitucionais nas normas infraconstitucionais, dentre elas inclua-se o Direito penal, em um contexto de deficiência de uma cultura constitucional no Brasil. E, à luz dos ensinamentos de Lenio Luiz Streck (2013, p. 14), essa constitucionalização do ordenamento é feita com base em jargões vazios de conteúdo reproduzindo o prefixo “neo” acreditando-se “ser a jurisdição responsável pela incorporação dos ‘verdadeiros valores’ que definem o direito justo”. Percebe-se, então, que a questão está além da jurisdição, pois perpassa, na verdade, pela necessidade de uma cultura constitucional.

A crítica, contudo, assume caráter diverso quando feita de maneira a buscar as causas do problema e nelas as possíveis soluções, pois: “A crítica é o combustível que move a máquina da ciência. A sua estagnação significaria sua inoperância, pois não estaria apta a desenvolver-se paralelamente às mudanças derivadas do contexto fático-social” (SILVA, 2007, p. 15).

1.1. Concausas histórico-político-jurídicas

Apenas apresentar críticas ao texto constitucional pátrio não é suficiente na tarefa de busca de possíveis soluções, desta feita mostra-se importante a identificação das causas históricas, políticas e jurídicas que resultaram no fenômeno do constitucionalismo brasileiro tardio.

A primeira causa histórica remonta ao período do Brasil colônia e a formação de um povo que não se via como integrante daquela sociedade, resultando na ausência de sentimento de pertencimento e responsabilidade pelo destino de seu Estado. Sob o domínio de um modelo violento de organização social imposto pelo colonizador, incluído o sistema jurídico, da mesma maneira que havia resistência das comunidades nativas no passado, no presente encontra-se a resistência do povo brasileiro à efetivação da vontade de constituição (SILVA NETO, 2016, p. 34-35).

Ainda relacionada à forma de colonização, encontra-se a segunda causa histórica, qual seja, a pretensa finalidade apenas de exploração dos recursos naturais do país colonizado. E esse comportamento, segundo ensinamentos de Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 36) “arraiga ao inconsciente coletivo a ideia de naturalidade de comportamentos individuais nocivos ao interesse comum, instalando pífio desenvolvimento da solidariedade social”.

Nas palavras de Zygmunt Bauman (2001, p. 54): “Não é mais verdade que o “público” tente colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar vestígios, no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas.”

É nesse aspecto de colonização do público pelo privado que se encontra o “homem cordial”, apresentado como terceira causa histórica. Esse indivíduo, especialmente na figura do “administrador cordial” não é capaz de separar seus interesses privados do interesse público que demanda sua função, tornando-se essa uma extensão de sua conduta privada (SILVA NETO, 2016, p. 37).

Associada aos domínios da vida pública está também a quarta causa histórica para o constitucionalismo brasileiro tardio. É o personalismo incompatível com os ideais de solidariedade inerentes ao sistema constitucional.

O texto Constitucional brasileiro de 1988, já em seu primeiro artigo, estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Contudo, a despeito de possuir uma Constituição como repositório do ideal democrático, o Brasil não possui cultura democrática consolidada, o que implica na primeira causa política para a ausência de um sentimento constitucional. E dentre as diversas formas que expressam uma cultura antidemocrática pode-se situar a resistência a um modelo de Direito Penal Garantista, objeto de análise deste estudo.

Como segunda causa política, apresenta-se o fato de a primeira Constituição Brasileira ter sido outorgada, em 1824. Dessa forma, o início do constitucionalismo brasileiro se mostrou contrário aos próprios ideais iluministas de constitucionalismo, concebidos a partir da Revolução Francesa que abolia o absolutismo monárquico.

Marco Antonio Villa (2011, p.9) faz o relato desse momento histórico do Brasil: “O imperador, tentando dourar seu autoritarismo, chegou até a convocar, em 17 de novembro de 1823, eleições para uma nova Constituinte, porém não estabeleceu data. Pura manobra. O decreto foi logo esquecido. Quatro meses depois, pela “graça de Deus e unânime aclamação dos povos”, o imperador outorgou a nossa primeira Constituição. Fingindo humildade, logo na apresentação, dizia que enviou o projeto às Câmaras aguardando sugestões, que, evidentemente, não ocorreram – nem seriam aceitas. Tudo fez, como escreveu, para a “felicidade política” do povo brasileiro. Não esqueceu de destacar que a Constituição foi outorgada “em nome da Santíssima Trindade”.”

“No dia 16 de novembro de 1889 todos eram republicanos” (VILLA, 2011, p.16). O relato sarcástico do momento da formalização do surgimento do novo regime representa a terceira causa política, qual seja, a ausência do sentimento republicano. Diante do medo de retomada do regime monárquico e sua incompatibilidade com a forma federativa de Estado, propícia ao desenvolvimento do sistema de oligarquias, optou-se pelo modelo republicano (SILVA NETO, 2016, p. 46).

E é a esta forma de federalismo de Estado que se relaciona a quarta causa política. Isso se explica, segundo Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 44), pelo fato da divisão dos recursos financeiros do Estado e das competências federativas se operarem em nível constitucional, o texto constitucional torna-se alvo de controvérsias que fragilizam o sentimento constitucional diante da ausência de respostas efetivas a essas questões.

Como quinta causa política, cita-se a fisionomia oligárquica da política brasileira. Nela o sentimento constitucional é destruído ao relegar o interesse de determinados grupos e famílias para o interior de sistemas constitucionais brasileiros que eram expressam desse poder das oligarquias estaduais (SILVA NETO, 2016, p. 45).

Por fim, apresenta-se como causa jurídica a visão individualista do direito fundada na doutrina francesa. Isso porque o individualismo jurídico mostra-se incompatível com os valores constitucionais inerentes aos interesses da coletividade (SILVA NETO, 2016, p. 46). Importante destacar que essa percepção individualista, a partir da Declaração Francesa de 1789, continha a ideia de um ser humano considerado de maneira abstrata e sob a égide de uma igualdade apenas do ponto de vista formal, atendendo aos interesses da classe burguesa (TRINDADE, 2012, p. 143). É possível citar, ainda, como exemplo desse individualismo jurídico no Brasil a dissociação existente entre um direito material coletivizado, demonstrada pela existência de interesses transindividuais, e um direito processual individualizado que não acompanhou a necessária coletivização do processo, pois estaria preso a paradigmas de solução de conflitos individuais (SILVA NETO, 2001, p. 59).

1.1. Breve relato histórico sobre as Constituições Brasileiras e a Interpenetrabilidade dos Fatos

Apesar de terem sido apresentadas divididas em categorias, verifica-se que as causas apontadas são concomitantes, uma vez que fatos políticos ocorrem dentro de um contexto histórico, o qual conforma a edição de normas jurídicas, as quais expandem seus efeitos no modo de realizar a política. Dá-se, dessa forma, segundo ensinamentos de Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 47) a interpenetrabilidade dos fatos.

Diante dessa afirmação, faz-se necessária uma breve exposição sobre as Constituições Brasileiras através de relatos de fatos históricos, políticos e jurídicos que demonstram a presença das apontadas concausas para uma deficiência no sentimento constitucional brasileiro.

Nesse sentido, Marco Antonio Villa (2011, p. 5) ao apresentar a História das Constituições Brasileiras ressalta: “Tivemos sete Constituições, uma no Império (1824) e seis na República (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988). Pode ser acrescentada ainda à lista a Emenda Constitucional no 1 de 1969, tendo em vista o número de alterações realizadas na Constituição de 1967. Se cada uma teve suas peculiaridades, o conjunto desses textos foi marcado pela dissociação com o Brasil real. Pode ser que Machado de Assis tenha razão: ainda estamos na fase da infância constitucional. Mas quando vamos crescer?”

Já na primeira Constituição brasileira, em 1824, é possível perceber uma concausa política diante do fato de ter sido outorgada, portanto, sem a participação do poder constituinte originário, bem como, dos governados, desde o início de sua formação enquanto Estado constitucional.

“[…] e o poder constituinte derivado do absolutismo, o poder constituinte do príncipe que fez a Carta Imperial; ao invés da promulgação, uma outorga; ao invés do ato de soberania de um colégio constituinte, o mesmo ato por obra da vontade e do livre arbítrio de um imperador, que na Carta Fundamental decretara a autolimitação de seus poderes.” (BONAVIDES, 2000, p.165-166).

Importante destacar, ainda, alguns aspectos desse primeiro texto constitucional que dizem respeito ao sistema jurídico-penal, demonstrando uma dissociação entre a realidade do sistema e aquilo que estava prescrito no texto. Nesta senda é que a norma constitucional, em seu artigo 179, inciso XIX, previa dentre os direitos dos cidadãos: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as penas cruéis”, ao mesmo passo que o Código Criminal, em seu artigo 60, vigente até 1886, dispunha: “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado à de açoites, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz determinar” (VILLA, 2011, p.12).

O conceito de cidadão, na forma prevista pela Constituição de 1824, parte de uma visão marshalliana da liberdade e dos demais direitos à cidadania como pertencimento a uma comunidade é o reflexo de uma noção política da liberdade, própria do mundo antigo, interpretada não como liberdade do indivíduo enquanto tal, mas do cidadão enquanto não escravo nem estrangeiro, como membro e partícipe de uma polis ou de uma comunidade política (FERRAJOLI, 2004, p. 100).

Representa, pois, um elemento de exclusão: “Los otros son exclusivos, es decir, excludendi alios, y por ello están en la base de la desigualdade jurídica, que es también una inégalité en droits” (FERRAJOLI, 2004, p. 46).

Com o advento da Constituição de 1891 é possível perceber a concausa política da ausência do sentimento republicano. Nas palavras de Paulo Bonavides (2000, p. 169) a república ainda não havia penetrado a consciência da elite governante e da camada social hegemônica. Mais uma vez foi possível perceber a dissociação entre o texto constitucional e a realidade brasileira: “Durante 30 anos haviam deblaterado contra o Império e os seus homens, numa campanha em grande parte pessoal; mas, durante esse longo lapso de tempo, de germinação e triunfo da ideia republicana, não pensaram sequer em elaborar um plano detalhado e preciso da Constituição e governo. Podiam ter-nos dado um belo edifício, sólido e perfeito, construído com a mais pura alvenaria nacional – e deram-nos um formidável barracão federativo, feito de improviso e a martelo, com sarrafos de filosofia positiva e vigamentos de pinho americano.” (VIANNA, 1929, p. 58).

Em 1934, a Constituição restringiu os direitos fundamentais, introduziu o conceito de segurança nacional e estabeleceu o estado de guerra, implicando na suspensão das garantias constitucionais (VILLA, 2011, p. 33-34). E permaneceram suspensas até a Constituição de 1937, segundo Marco Antonio Villa (2011, p. 47), “uma declaração de direitos às avessas, um grande salto para trás na defesa das liberdades e da democracia”. A qual passou a prever, pela primeira vez, a pena de morte não somente em estado de guerra contra país estrangeiro, mas estendendo-a a outros tipos penais: “A pena de morte foi adotada pela primeira vez. As Constituições de 1891 e de 1934 admitiam essa pena somente em caso de guerra com país estrangeiro. Dessa vez, não. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, foram identificados cinco crimes políticos passíveis de pena capital: 1. tentar submeter o território ou parte dele à soberania estrangeira; 2. procurar desmembrar o território nacional com auxílio ou apoio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional (a referência é explícita à Internacional Comunista, também conhecida como III Internacional); 3. tentar por meio de movimento armado desmembrar parte do território nacional; 4. mudar a ordem política ou social da Constituição com auxílio de Estado ou organização de caráter internacional; e 5. subverter por meios violentos a ordem social com o fim de apoderar-se do Estado e estabelecer uma ditadura de uma classe social (referência também explícita aos comunistas). Incluiu um item para retirar o caráter “apenas político” da pena de morte: era passível da pena capital o “homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade” (art. 122, 13).” (VILLA, 2011, p. 49)

Assim, para os crimes contra a Segurança do Estado, aplicava-se um Direito penal do Inimigo, sem a garantia dos direitos fundamentais. Tal previsão permaneceu em voga até o advento da Constituição de 1946, a qual, segundo Marco Antonio Villa (2011, p. 58) teria sido a Constituição republicana, até então, mais extensa e democrática.

Contudo, instalado o regime ditatorial, com o texto constitucional de 1967 e seus respectivos Atos institucionais, todas as garantias e direitos fundamentais, especialmente no que tange à aplicação da ultima ratio penal, foram renegadas. Assim, foi suspensa a garantia do habeas corpus para crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular, bem como, introduzidas as penas de morte, perpétua e o banimento para os crimes de guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva (VILLA, 2011, p. 71-72). Mais uma vez, é possível perceber a adoção de características do Direito Penal do Inimigo, contrárias, portanto, a uma teoria garantista.

Em 1988, enfim, surge a chamada Constituição Cidadã, nas palavras de Paulo Bonavides (2000, p. 174) a melhor de todas as Constituições brasileiras, prestando-se por meio de direitos fundamentais tanto à defesa do corpo social quanto à tutela de direitos subjetivos. Constitui-se, segundo Marco Antonio Villa (2011, p. 81), um programa econômico político-social para o Brasil, normatizando diversos aspectos da vida social. Percebe-se que as críticas à Carta Magna de 1988, poderiam dirigir-se não às normas ali estabelecidas, mas às práticas, sejam institucionais ou sociais, que se distanciam das disposições ali prescritas.

Nesse sentido, Paulo Bonavides (2000, p. 176) finaliza seu relato sobre a Evolução Constitucional do Brasil fazendo o seguinte alerta: “Aqui termina, minhas senhoras e meus senhores, a evolução constitucional do Brasil; termina com as omissões da falsa elite representativa, cúmplice silenciosa dos atos que destroem a democracia e o regime. Mas não termina aí a luta do povo brasileiro. A alvorada da democracia participativa se desenha nas linhas do horizonte político e esparge luz sobre as esferas teóricas nas quais se constrói um novo constitucionalismo de luta e resistência, abraçado com o povo, com a cidadania, com as atas da Inconfidência, com a memória da Confederação do Equador, com a campanha abolicionista de Castro Alves, Nabuco e Rui Barbosa, com as Diretas-Já e com as jornadas do impeachment que ontem mostraram como as lideranças podem sucumbir. O que jamais poderá sucumbir é o povo brasileiro”.

Diante de tais considerações, a partir de relatos históricos sobre as Constituições brasileiras, é possível perceber que as concausas histórico-político-jurídicas estão envolvidas em um processo dialético, segundo Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p.47), fato imprescindível para análise do constitucionalismo brasileiro tardio.

Geraldo Prado (2005, p. 111), reforçando a importância de se considerar esse processo dialético na formação e conhecimento do Direito, afirma: “[…] se o Direito, como matéria de estudo, é um objeto cultural, criado pelo homem na medida em que estabelece formas de convivência comunitária, sedimentadas no especial modo de viver em um instante específico dessa vida politicamente organizada, as suas regras são, portanto, contingentes”.

Cuida-se de consequência da própria contingência da organização social sujeita a transformações decorrentes das condições demográficas e de exercício do poder, além das experiências positivas e negativas vividas, de sorte que o conhecimento do Direito seria impossível sem o conhecimento do lugar que ocupa no estudo da evolução jurídica.

2. Garantismo penal enquanto instrumento de efetivação de direitos fundamentais

Luigi Ferrajoli (2002, p. 683) faz um alerta para o risco da divergência entre a normatividade do modelo penal garantista em nível constitucional e a sua não efetividade nos níveis inferiores. Assim, explica o jurista italiano, que apesar de recebido tanto pela Constituição italiana quanto por outras Constituições, o referido modelo, na prática, é constantemente desatendido: “seja ao se considerar a legislação penal ordinária, seja ao se considerar a jurisdição, ou pior ainda, as práticas administrativas e policialescas”. E a Constituição torna-se uma simples referência, com função de mistificação ideológica no seu conjunto.

Nesse sentido, a adoção de práticas antigarantistas, baseadas em normatividade de emergência e de exceção a partir de interesses setoriais da sociedade, demonstra o enfraquecimento do modelo de Estado de Direito enquanto artifício político a serviço de todo o corpo social. A partir desta constatação, surge a preocupação com o resgate da dimensão do Estado Constitucional de Direito e seu caráter democrático. (CADEMARTORI, 1997, p. 103-104).

2.1. A teoria do garantismo e seus três significados

Diante disso, a Teoria do Garantismo propõe um modelo de Estado de Direito: “em que se deve verificar a aproximação do direito positivo com o direito que realmente é observado no meio social, sob pena de deslegitimação, reclamando a aproximação entre direito válido e direito efetivo” (BAGGENSTOSS, 2013, p. 311).

Em que consiste, então, a palavra “garantismo”? À luz dos ensinamentos de Luigi Ferrajoli (2002, p. 684), a partir dela é possível extrair três significados distintos, porém conexos: modelo normativo de direito, teoria jurídica e filosofia política.

Como modelo normativo de direito, especialmente no que diz respeito ao Direito penal, o garantismo diz respeito a um modelo de estrita legalidade. O qual se caracteriza, a partir do plano epistemológico, político e jurídico, respectivamente como: um sistema cognitivo ou de poder mínimo; uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade; e, um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. Será, dessa forma, garantista todo sistema penal que não apenas se conforma normativamente com esse modelo, mas que o satisfaz efetivamente.

Em razão disso, os graus de garantismo são medidos a partir da distinção entre o modelo constitucional e o efetivo funcionamento do sistema. Assim, o sistema penal italiano, utilizado como exemplo por Luigi Ferrajoli (2002, p. 684), no que diz respeito aos seus princípios constitucionais possui elevado grau de garantismo, contudo ao considerar sua prática efetiva, esse grau torna-se baixíssimo.

No contexto do sistema penal brasileiro, marcado por princípios constitucionais que aderem normativamente a um modelo garantista, a realidade das práticas legislativas, jurisdicionais, administrativas e “policialeslas”, semelhante ao sistema italiano, demonstra o seu baixo grau de garantismo, bem como, vale acrescentar, a sua deficiência de um sentimento constitucional afeta a um constitucionalismo tardio: “[…] uma Constituição pode ser muito avançada em vista dos princípios e direitos sancionados e não passar de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas – ou seja, de garantias – que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo”. (FERRAJOLI, 2002, p. 684)

Como teoria jurídica, o garantismo apresenta as categorias distintas de validade e de efetividade, separando o “ser” do “dever ser” no direito. Dessa forma, enquanto Teoria da Divergência entre normatividade e realidade, o garantismo possui como questão central a divergência entre modelos normativos de tendências garantistas e práticas operacionais de tendências antigarantistas interpretando-a com a antinomia entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas.

“Sob ambos os aspectos, o garantismo opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis vigentes, por causa do duplo ponto de vista que a aproximação metodológica aqui delineada comporta seja na sua aplicação seja na sua explicação: o ponto de vista normativo, ou prescritivo, do direito válido e o ponto de vista fático, ou descritivo, do direito efetivo” (FERRAJOLI, 2002, p. 684-685).

A par de uma concepção simplesmente formal de validade, o modelo garantista distingue duas dimensões de regularidade ou legitimidade das normas: uma que se refere à forma chamada de vigência ou existência, dependendo da conformidade com as normas formais sobre sua formação; outra que diz respeito ao conteúdo, chamada de validade propriamente dita, dependendo da coerência com as normas substanciais sobre sua produção.

Como consequência dessa dupla sujeição, todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos de substância que condicionam a validade substancial das normas produzidas e expressam, ao mesmo tempo, os fins a que está orientado o Estado Constitucional de Direito (FERRAJOLI, 2004, p.21-22).

O garantismo, por fim, enquanto filosofia política pressupõe a separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre o ponto de vista interno e externo na valoração do ordenamento, entre o “ser” e o “dever ser” do direito. Consiste, assim, na assunção do ponto de vista exclusivamente externo para legitimação e deslegitimação ético-política do direito e do Estado, requerendo desses “o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade” (FERRAJOLI, 2002, p. 685).

Sobre esse terceiro significado do garantismo, Luis Prieto Sanchís (2011, p. 21) explica que nele adota-se um ponto de vista externo tanto sobre todo o Direito positivo como também um ponto de vista externo crítico sobre o direito realmente existente. Em razão disso, possui como seus dois postulados a separação iluminista e positivista entre Direito e moral, bem como, a concepção contratualista do Estado e das instituições como artifícios e instrumentos ao serviço de fins externos ao próprio ordenamento jurídico. E esses fins externos são os direitos fundamentais, cujas garantias representam a fonte de legitimação ou deslegitimação da ordem política: “deslegitimadora del poder a la luz de un modelo ético o normativo que, en pocas palavras, es el modelo de los derechos humanos, lógicamente previos y condicionantes de todo orden jurídico” (SANCHÍS, 2011, p. 13).

E é o constitucionalismo que representa o modelo jurídico, como explica Luis Prieto Sanchís (2011, p. 22), em que melhor se reflete o programa da filosofia política garantista, bem como, sendo condição indispensável para o desenvolvimento de uma dogmática garantista: “La clave de um sistema jurídico garantista es por tanto la existencia de una Constituición en el sentido más fuerte de la expresión, o sea, de una norma suprema y rígida, vinculante incluso para el legislador, dotada de un importante contenido material o sustantivo de principios y derechos fundamentales, y judicialmente garantizada” (SANCHÍS, 2011, p. 23-24).

2.2. Constitucionalismo garantista e a dimensão substancial da democracia

Diante disso, percebe-se a importância de uma cultura constitucional que preserve a vontade da constituição, efetive seus princípios e normas constitucionais e dissemine o conhecimento a respeito de seu texto. E o garantismo é expressão dessa cultura, na medida em que representa um horizonte ideal que se verá mais ou menos satisfeito em função de quais sejam as garantias normativamente estabelecidas e qual o grau de sua efetiva realização (SANCHÍS, 2011, p. 24).

O constitucionalismo, enquanto sistema jurídico, equivale a um conjunto de limites e de vínculos substanciais e formais, impostos a todas as fontes normativas pelas normas supraordenadas, e enquanto teoria do direito, a uma concepção de validade das leis que não está ancorada apenas na conformidade das suas formas de produção a normas procedimentais, mas também na coerência dos seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente estabelecidos (FERRAJOLI, 2012, p. 13).

Nesse sentido, no garantismo adota-se o constitucionalismo normativo ou garantista, caracterizado por uma normatividade forte em que a maior parte dos princípios constitucionais, em especial os direitos fundamentais, comporta-se como regras, implicando na existência ou impondo a introdução de regras consistentes e proibições de lesão ou obrigações de prestações que são suas respectivas garantias. E a violação das normas relativas à produção não apenas formais, mas também materiais geram as antinomias, por comissão, ou lacunas, por omissão (FERRAJOLI, 2012, 18-19).

Esses vícios de antinomias e lacunas são, na verdade, o maior mérito do Estado Democrático de Direito, uma vez que excluem formas de legitimação absoluta, permitindo a deslegitimação do exercício dos poderes públicos por violações ou descumprimentos das promessas elevadas e difíceis formuladas nas suas normas constitucionais (FERRAJOLI, 2004, p. 28).

Trata-se de um constitucionalismo rígido que representa um complemento do positivismo jurídico e do Estado de Direito. No que tange ao positivismo jurídico, positiva não apenas o “ser”, mas também o “dever ser” do Direito. E quanto ao Estado de Direito, comporta a submissão, inclusive da atividade legislativa, ao direito e ao controle de constitucionalidade. Nesse sentido, o constitucionalismo jurídico excluiu a última forma de governo dos homens, a qual, na tradicional democracia representativa, manifestava-se na onipotência da maioria. (FERRAJOLI, 2012, p. 22-23).

Assim, o garantismo constrói um paradigma de democracia constitucional e de Direito cujo elemento central é precisamente a garantia dos direitos fundamentais que delimitam a esfera daquilo que não se deve decidir (indecidible) por nenhuma maioria (SANCHÍS, 2011, p. 14). Nesse sentido, a soberania deixa de ser um poder desvinculado do respeito às leis: “Ela “pertence ao povo”, continuam a afirmar todas as Constituições. Mas esta norma equivale a uma garantia: significa, negativamente, que a soberania pertence ao povo e a nenhum outro e que ninguém – presidente ou assembleia representativa – pode apropriar-se dela e usurpá-la. E, como o povo não é um macrossujeito, mas a soma de milhões de pessoas, a soberania popular é, positivamente a soma daqueles fragmentos de soberania que os direitos de todos” (FERRAJOLI, 2012, p. 26-27).

Dessa forma, a dimensão substancial do Estado de direito se traduz em uma dimensão substancial da própria democracia, na qual nenhuma maioria pode, ainda que por unanimidade, legitimamente decidir a violação a um direito de liberdade ou não decidir a satisfação de um direito social: “Los derechos fundamentales, precisamente porque están igualmente garantizados para todos y sustraídos a la disponibilidad del mercado y de la política, forman la esfera de lo indecidible que y de lo indecidible que no; y actúan como factores no sólo de legitimación sino también y, sobre todo, como factores de deslegitimación de las decisiones y de las no-decisiones” (FERRAJOLI, 2004, p. 24).

A partir de uma concepção substancial da democracia, são garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos e não simplesmente da onipotência da maioria, através da admissão da possibilidade de existência de antinomias e lacunas geradas pela introdução de limites e vínculos substanciais. Pois eles funcionam como condicionantes de validade das decisões da maioria. Dessa forma, é a possibilidade de que o direito seja inválido ou lacunoso que consiste na condição prévia tanto do Estado constitucional de direito quanto da dimensão substancial da democracia (FERRAJOLI, 2004, p. 25).

Nesta senda, a filosofia política do garantismo se opõe às concepções da democracia que cifram toda sua legitimidade unicamente no princípio das maiorias: “[…] la filosofía política del garantismo asume una función crítica desde los parámetros de un constitucionalismo liberal: conjugar la máxima autodeterminación de las mayorías con la máxima protección de las minorías. Lo que tiene su imediata traducción en la filosofia penal, donde el utilitarismo reformado que propone el garantismo presta atención no sólo a los interesses de la mayoría no desviada, como ha sido habitual, sino también a los dela minoria desviada” (SANCHÍS, 2011, p. 30).

Percebe-se, então, que a partir de um constitucionalismo rígido, até mesmo a democracia sofre limitações, no que tange às decisões das maiorias, a fim de garantir a efetividade dos direitos fundamentais: “Somente através de uma constituição garantista que devidamente limite a democracia naquilo que possa ou não possa deixar se decidir, é possível garantir e assim, atingir ao objetivo da democracia substancial de considerar os sujeitos em seu ínterim, contemplando seus interesses e necessidades individuais e coletivas” (COPETTI NETO; MARCHT; NIELSON, 2016).

Para o garantismo, o Direito penal não deve, então, representar a lei do mais forte, mas a lei do mais fraco, o qual está representado, no momento do processo e da condenação, pelo acusado ou réu ameaçado por uma pena excessiva ou arbitrária. Dessa forma, percebe-se que a defesa dos direitos humanos, à qual se presta a teoria garantista, é também contra majoritária, pois está ligada à proteção de parcelas minoritárias da população. Nesse caso, a proteção e garantia da efetividade dos direitos fundamentais da minoria desviada.

Em razão disso, não há que se falar no modelo garantista em personalidades criminosas ou perigosas, constituídas por aclamação popular, midiática ou política. Existem apenas fatos tipificados como delitos por uma norma penal, os quais têm de ser devidamente provados em um procedimento de verificação e refutação (SANCHÍS, 2011, p. 12).

Além disso, no que tange à função da pena, enquanto violência institucional, só resulta tolerável e deixa de ser ilegítima se está e só na medida em que é justificada. E o garantismo penal equivale à exigência de justificação das intervenções penais, tanto das proibições como dos castigos: “Sobre el ius puniendi pesa la carga de la justificación y, em la perspectiva utilitária, dicha justificación consiste precisamente em la prevención del delito; el delito futuro y no el passado es el que fundamenta la pena.” (SANCHÍS, 2011, p. 52).

Assim, representando a pena um mal, nesse poder de castigar a lei do mais fraco requer que seja garantida a liberdade, mas ao mesmo tempo a verdade. Nesse aspecto reside a importância do papel do juiz garantista, enquanto titular de um poder singular no qual a vontade que está por trás de suas falhas e decisões não recolha legitimidade dos votos do público, mas precisamente de seu fundamento cognitivo e racional (SANCHÍS, 2011, p.11).

A incorporação dos direitos fundamentais no nível constitucional, como explica Luigi Ferrajoli (2004, p. 26) muda a relação entre o juiz e a lei e atribui à jurisdição uma função de garantia do cidadão diante das violações de qualquer nível da legalidade por parte dos poderes públicos. Diante disso, a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma, que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais, substanciais e com os direitos fundamentais estabelecidos pelas mesmas.

Diante disso, prestam-se as garantias para que os pronunciamentos desse juiz garantista sejam, na maior medida possível, verdade, e não resultado de um livre decisionismo. Assim, o ideal garantista do poder judicial consiste em que seja um poder-saber (SANCHÍS, 2011, p. 12).

Nesse aspecto, questiona-se a atuação de magistrados do Judiciário brasileiro que se distanciam da realidade dos processos que julgam, tornando-se meros repetidores de decisões de tribunais que consagram aspectos como a personalidade voltada para o crime. Elemento esse, vale acrescentar, rechaçado pela teoria garantista, conforme ensinamentos de Luis Prieto Sanchís (2011, p. 55), sendo necessário que a lei penal descreva fatos e não estados espirituais.

 Percebe-se que há uma incompreensão do que se trata, de fato, o modelo garantista, bem como, sobre o papel do juiz garantista: “una sociedad civil y una esfera política que se mueven cada día más por ressortes irracionales dificilmente puderen compreender um esquema epistemológico como el comentado” (SANCHÍS, 2011, p.12).

Nesse sentido, passa-se à análise de uma resistência e incompreensão sobre o garantismo, representadas por práticas antigarantistas no sistema jurídico brasileiro e relacionadas à constatação de um constitucionalismo brasileiro tardio.

3. Constitucionalismo brasileiro tardio e o sistema jurídico-penal

Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 57) ao tratar das consequências ou efeitos jurídicos do constitucionalismo brasileiro tardio, elenca a questão da falta de efetividade dos direitos fundamentais, estes atingidos pela ausência de cultura constitucional e concepção tardia do constitucionalismo.

Nesse sentido, considerando que o garantismo busca, através de suas técnicas, a efetividade dos direitos fundamentais, percebem-se, então, as práticas antigaratistas que divergem dos princípios constitucionais como efeitos do fenômeno Constitucionalismo brasileiro tardio.

3.1. Sistema jurídico-penal brasileiro e suas origens ditatoriais

No Brasil, desde o seu período colônia até seu primeiro Código Criminal de 1830, mencionado no primeiro capítulo deste trabalho destacando seu caráter dissociado do texto constitucional de 1824, ainda imperavam resquícios de vingança privada: “Nada obstante as características positivas, não foi definida a figura da culpa e imperava a desigualdade, principalmente em relação aos escravos, que, aliás, eram equiparados a animais e, portanto, considerados como bens semoventes” (MASSON, 2011, p. 67).

No período republicano, o Código Penal de 1890 permaneceu desapontando por seus equívocos e falhas, ignorava os avanços das teorias positivas, e, nas palavras de Cleber Masson (2011, p. 67) consistia em uma verdadeira colcha de retalhos.

O Código Penal Brasileiro de 1942, vigente até os dias atuais, teve seu projeto apresentado durante o Estado Novo de 1937. E, apesar de ter sofrido mudanças, como a reforma de sua Parte Geral em 1984 com a finalidade de humanizar as sanções penais e adotar penas alternativas à prisão (MASSON, 2011, p. 67-68): “Justamente pela gênese operada na década de 40 do Século passado, o atual código ostenta matriz positivista e neoretributivista. Referidas doutrinas são perfectibilizadas atualmente pelos movimentos do Direito Penal do Terror e movimentos como do law and order, operacionalizando verdadeiro resgate do modelo positivista do Direito Penal, escorado na reformulação do conceito de delito como mal social” (SESTREM, 2012, p. 3-4).

Com o sistema processual penal ocorre situação semelhante, possuindo um Código de Processo Penal datado de 1941 que, apesar de tentativas de reformas para incluir um viés garantista, possui também raízes em teorias clássicas absolutistas da pena (SESTREM, 2012, p. 4).

Dessa forma, é possível perceber no modelo penal brasileiro então vigente práticas antigarantistas exemplificadas por elementos que demonstram a presença de movimentos como o de Lei e Ordem e o Direito Penal do Inimigo.

3.2. Movimentos antigarantistas em uma sociedade de risco

À luz dos ensinamentos de Aury Lopes Jr. (2002, p. 102), a prática antigarantista do movimento Lei e Ordem: “Prega a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e de seus direitos fundamentais. O Brasil já foi contaminado por esse modelo repressivista há mais de dez anos, quando a famigerada Lei dos Crimes Hediondos (Lei no 8.072/90), seguida de outras na mesma linha, marcou a entrada do sistema penal brasileiro na era da escuridão, na ideologia do repressivismo saneador”.

Sua origem remonta à chamada política de tolerância zero desenvolvida pelo promotor Rudolph Giuliani, na cidade americana de Nova Iorque, em 1993. A política era caracterizada por repressão rigorosa a qualquer desvio de comportamento, perseguindo-o e punindo-o (SESTREM, 2012, p.6). Apesar dos índices de criminalidade terem diminuído isso não foi fruto da política de tolerância zero, mas sim em razão de um complexo avanço social e econômico dos Estados Unidos. Da mesma forma, é possível perceber no modelo brasileiro onde a edição de Leis como a dos Crimes Hediondos, próprias desse modelo de repressão, não teve o condão de diminuir as taxas de criminalidade. O que reforça o argumento sobre ineficiência de uma política de aumento de penas e endurecimento de regime de cumprimento: “A idéia de que a repressão total vai sanar o problema é totalmente ideológica e mistificadora. Sacrificam-se direitos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os problemas que realmente geram a violência” (LOPES JR., 2002, p. 102).

Contudo, a denominada “Sociedade de Risco”, de Ulrich Beck (2011, p. 28) diante de ameaças que são insaciáveis, intermináveis, infinitas e auto produzíveis, tem como base e impulso a busca por uma segurança, a qual, todavia, consiste em uma utopia negativa e defensiva, caracterizada apenas por evitar o pior (BECK, 2011, p. 59-60).

E o sistema penal, semelhante aos riscos que se autoproduzem, é autofágico alimentando-se de si próprio: “Primeiramente o processo busca excluir o indivíduo. Depois o rotula (labelling). Através dessa escolha de clientela é que o processo faz o indivíduo adentrar seu sistema (typical input), submetendo-o a primeira das penas, o conjunto de procedimentos. Após o término dos procedimentos, o indivíduo é submetido à legitimatio processum, a pena in natura, a restrição da liberdade. Cumprida esta, o sistema liberta o indivíduo rotulado no meio social (output). Uma vez rotulado e estigmatizado o indivíduo nunca voltará a ser o mesmo, retornando ao sistema, para alimentá-lo novamente. Ao fazer dos não menos delinquentes clientes assíduos do processo penal, o sistema deixa evidenciar sua segunda característica peculiar: a necrofilia” (SESTREM, 2012, p. 11).

Nesse processo de autofagia penal insere-se, ainda, o processo de “coisificação da sociedade”, no qual é dada preferência à coisa levando o homem a ter um desapreço pelo próximo. Essa é, segundo Felipe Cidral Sestrem (2012, p. 10-11), a máxima do individualismo moderno neoliberal.

Nesse contexto de individualismo, Zygmunt Bauman (2001, p. 49-50) diferencia o indivíduo do cidadão, sendo esse uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade, enquanto aquele tende a ser morno, cético ou prudente em relação à causa comum, ao bem comum, à boa sociedade ou à sociedade justa. Neste aspecto, relaciona-se, dessa forma, o sistema penal antigarantista a uma das causas para a ausência de cultura constitucional no Brasil, qual seja, o individualismo jurídico que impede que os preceitos de solidariedade e coletividade presentes no texto constitucional sejam efetivos.

“As únicas duas coisas úteis que se espera e se defesa do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam “em paz” – protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus” (BAUMAN, 2001, p. 50).

Semeia-se, assim, a produção de ameaças e colhe-se a necessidade de um Estado interventor que ofereça respostas coercitivas interferindo em direitos fundamentais, recorrendo ao que deveria ser a ultima ratio.

Dentro dessa sociedade de risco, em uma modernidade fluida, Zygmunt Bauman (2001, p. 118) retrata a figura da cidade perfeita, na qual aquele que pode “comprar uma casa em Heritage Park, pode passar boa parte de sua vida afastado dos riscos e perigos da turbulenta, hostil e assustadora selva que começa logo que terminam os portões da cidade”.

Cria-se a chamada institucionalização dos medos urbanos, e, a despeito de enfrentar a escolha de apoiar a política governamental para eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar a todos em instituições públicas comuns, escolhe-se comprar proteção, estimulando o crescimento da indústria da segurança privada, como alerta o autor. Assim, produzem-se as necessidades insaciáveis e infindáveis dos riscos da modernização que são big business, nas palavras de Ulrich Beck. E o espectro arrepiante e apavorante das “ruas inseguras” mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da busca da arte e das habilidades necessárias para compartilhar a vida pública (BAUMAN, 2001, p. 120-121).

O sentimento de insegurança, segundo Paulo Silva Fernandes (2001, p.21) apresenta-se como resultado desse estado de coisas e é potenciado pelos meios de comunicação, além de gerar uma sensação de impotência.

Se vivemos em (sociedade do) risco, também se poderá dizer que vão-se assumindo os contornos de uma sociedade da insegurança: é precisamente esta que caracteriza o ser dos nossos tempos. A insaciável busca pela segurança afeta, ainda segundo Villamor Maquieira, “o homem, a família, a sociedade, o Estado e o direito… Demanda-se segurança no trabalho, segurança no futuro, segurança do Estado, segurança do cidadão, segurança social, proteção civil, segurança nacional, seguros privados de toda a índole, segurança econômica. Este apetite pela segurança chega até aos fatos da vida quotidiana” (FERNANDES, 2001, p. 45).

“E neste modelo de sociedade, apela-se a uma crescente intervenção do Direito Penal, o qual é: “tido como o guardião e defensor último dos aflitos, ratio de emergência do sistema. E lá se chamam mais penas, mais polícias, mais terror. É uma espécie de andar em círculos, de eterno retorno, de infindável cornucópia de discursos” (FERNANDES, 2001, p.41).

O Direito Penal como remédio para os conflitos sociais corre o risco de se tornar simbólico “de se relativizar, funcionalizar (ou politizar), administrativizar-se, procurar ancorar-se em portos diversos do seu, para conseguir uma maior efetividade” (FERNANDES, 2001, p. 53). Dessa forma, os movimentos antigarantistas, como o de Lei e Ordem, fundamentam-se em um “simbolismo penal, no qual as necessidades de segurança social subjetiva (sentimento) e os interesses particulares levam à adoção de práticas exacerbadas, verdadeiro Estado Policial” (SESTREM, 2012, p. 6). E, em lugar da garantia de direitos mínimos para os cidadãos, a lógica do garantismo de proteção das minorias é invertida pelo princípio pro societatis.

Para essa sociedade de risco, o juiz garantista se mostra favorável ao delinquente e, por isso mesmo, insensível às crescentes demandas sociais por segurança penal: “En suma, el juiz garantista parece un estorbo para la parte sana de la sociedad y para la misma democracia, empecinado siempre en el cumplimiento exquisito de unas garantias que son poco más que ritualismos estériles y sordo al clamor popular de justicia y seguridad” (SANCHÍS, 2011, p. 9-10).

Contudo, feitas as considerações sobre o que, de fato, representa a Teoria do Garantismo, bem como, sobre as características que permeiam e fundamentam as práticas antigarantistas, é possível perceber que se trata de uma visão parcial e equivocada sobre esse juiz garantista. E diante da falha de um sistema que demanda expansão e maximização do Direito Penal na prevenção do delito e na reforma do delinquente, os sistemas penais possuem: “buenas razones para pensar que un programa de reducción del Derecho penal haría del mismo una herramienta más útil y selectiva” (SANCHÍS, 2011, p. 10).

Em contraposição, da análise do modelo processual penal e de direito material penal brasileiro nota-se um sistema antigarantista. E nesse sistema, acredita-se que a repressão teria o condão de inibir a prática de crimes, atribuindo-se a origem deles no estereótipo de personalidades criminosas e não no meio social, político e intelectual em que são produzidas as condutas criminosas (SESTREM, 2012, p. 8).

Nesse sentido, aproxima-se do chamado Direito penal do autor, no qual o indivíduo não é absorvido pelo sistema processual penal ao ser tipificado pela prática de um crime, mas deve ser primeiramente rotulado e selecionado para adentrar esse processo penal. E uma vez selecionado, o indivíduo é submetido a um processo penal de caráter retribucionista, que não visa, portanto, sua ressocialização ou reintegração à sociedade (SESTREM, 2012, p. 13).

Importa destacar também, a vertente mais moderna dentre as teorias de Direito Penal, em conformidade com um direito penal do autor: a Teoria do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida por Günther Jakobs, configurando a faceta mais atual dos movimentos antigarantistas (SESTREM, 2012, p. 21).

A existência de um corpus legal de inimigos no Direito seria, segundo Luis Gracia Martín (2007, p. 76-77), uma das características do Direito Penal Moderno e sua tendência expansiva. Ao Direito Penal do Inimigo contrapõem-se o Direito Penal do Cidadão que a despeito da prática de ato delituoso apresenta comportamento que demonstra sua qualidade de cidadão que deseja o retorno ao convívio social e fidelidade ao ordenamento jurídico. Por conta disso, a ele é conservado o status de pessoa. Em situação oposta, estariam os indivíduos com distanciamento presumivelmente duradouro em relação ao Direito, fato que não ofereceria garantias de um comportamento pessoal seguro (MARTÍN, 2007, p. 82).

“O Direito Penal do Inimigo é a disciplina jurídica da exclusão dos inimigos, que se justifica atualmente porque estes não são pessoas, e, conceitualmente, vislumbra uma guerra cujo alcance, limitado ou total, depende do que se possa temer em relação a eles” (MARTÍN, 2007, p. 86).

Dessa forma, ao negar a um indivíduo seu status de cidadão, com fundamento em um Direito Penal do inimigo orientado à exclusão de certos indivíduos da sociedade (MARTÍN, 2007, p. 92), nega-se também o exercício de direitos fundamentais que por seu caráter de inclusão formam a base da igualdade jurídica sendo, nos dizeres de Luigi Ferrajoli, uma égalié en droits. Percebe-se que a referência histórica, da Constituição brasileira de 1824 feita no primeiro capítulo, da visão do réu como excluído da sociedade e do Estado demonstra a presença da ideia do delinquente como inimigo ao longo da história até os dias atuais.

3.3. Ausência de cultura democrática em modelo penal antigarantista

Dentre as causas políticas para um constitucionalismo tardio encontra-se a ausência de um sentimento de democracia. Importa, então, analisar de que maneira se desenvolve ou não o caráter democrático em um modelo penal antigarantista.

Geraldo Prado (2005, p. 74) inicia sua explanação sobre o tema trazendo a preocupação dos estudiosos da ciência política, a partir da análise de modelos de transições políticas como foi o caso do modelo brasileiro, sobre a importância da consolidação cultural dos valores que alicerçam o regime democrático. Dessa forma, a escolha constitucional pelo regime democrático, feita pela Carta Magna brasileira de 1988, não consiste em fator suficiente para a estabilização democrática.

“É preciso que a democracia se faça presente como um valor decisivo na vida das pessoas, pragmaticamente imprescindível para alcançarem a vida digna. Moisés assinala que a cultura política é condição sine qua non para a orientação de comportamentos e ações envolvendo a generalização de um conjunto de valores elementares ao processo de democratização, esclarecendo que a desconsideração da dimensão político-cultural afeta gravemente o suporte democrático da sociedade. Não basta um Estado democrático, é necessário que a sociedade também o seja” (PRADO, 2005, p. 75).

Essa falta de identidade da sociedade com a democracia e o constitucionalismo reflete também na estruturação democrática do processo penal que não se impõe de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição: “[…] pelo menos não sem que se vençam fortes adversários culturais, credores inabaláveis da fé na verdade real, absoluta, conquistável através de um procedimento penal de defesa social, como o inquisitório, que, embora esteja em crise, ainda se manifesta enquanto estrutura procedimental na maior parte da América Latina, conforme salientou Alberto M. Binder” (apud PRADO, 2005, p. 75).

No Brasil, segundo Geraldo Prado (2005, p. 76-77), percebe-se a dificuldade de consolidação de uma cultura democrática, bem como, de direitos fundamentais, relacionada ao modo pelo qual foi promovida a transição para a democracia sem que houvesse, de fato, uma ruptura com o seu passado autoritário. Da mesma forma, para Manoel Jorge e Silva Neto (2016, p. 39) a ausência de uma cultura democrática implica em um constitucionalismo brasileiro tardio.

Assim, sob a influência de meios de comunicação que disseminam as ideias de movimentos como o de Lei e Ordem, na sociedade de risco brasileira a cultura do medo e do terror ganha o terreno da cultura democrática, a despeito daquilo que está previsto no texto constitucional de 1988. Ganha espaço o fenômeno de expansão ou maximização do Direito penal: “[…] os meios de comunicação, que são o instrumento da indignação e da cólera públicas, podem acelerar a invasão da democracia pela emoção, propagar a sensação de medo e de vitimização e introduzir de novo no coração do individualismo moderno o mecanismo do bode expiatório que se acreditava reservado aos tempos revoltos” (GARAPON apud SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 38-39).

Como características dessa expansão são aumentadas e agravadas as penas, criados novos tipos penais, majorado o poder punitivo estatal e maximizado o tempo de permanência nos estabelecimentos prisionais (SESTREM, 2012, p. 10).

3.4. Sistema inquisitorial brasileiro e o sistema democrático adversarial. A experiência chilena e a necessidade de mudança cultural.

Ainda como característica desse movimento expansionista do direito penal, apresenta-se o sistema inquisitivo, não apenas como forma de processo, mas como modelo de organização judicial arraigado por contornos culturais que se ligam por um sentimento de insegurança, ainda que as bases normativas sejam contrárias (BINDER apud PRADO, 2005, p. 77-78).

Segundo pesquisadores latino-americanos do CEJA – Centro de Estudios de Justicia de las Américas, essa é uma característica que ocorre no Brasil, pois a despeito de ter inaugurado seu processo democrático com a Constituição de 1988, ainda permanece com um modelo jurídico-penal de características inquisitoriais. Os demais países da América Latina ao passarem por seus processos de transição democrática realizaram as reformas de seus dispositivos normativos penais para a implementação do Sistema Democrático Adversarial, ao contrário do sistema brasileiro que permanece com seus Códigos penal e processual penal, ambos datados de períodos ditatoriais com resquícios de um sistema ainda inquisitorial (informação verbal) [1].

Nesse sentido, o Brasil apresenta uma posição atrasada em relação aos demais países da América Latina no que diz respeito a um pensamento democrático e a forma como é vista a Constituição. Parte-se da premissa de que o sistema penal é inquisitorial e o juiz busca a verdade real dos fatos, incompatível com a democracia e preso a uma cultura totalitária. E essa cultura centralizadora e paternalista faz com que se rechace qualquer medida alternativa à pena. Dessa forma, para que se tenha um panorama de justiça enquanto garantia de direitos fundamentais é necessário repensar o papel do sistema de justiça criminal brasileiro, bem como, de suas instituições (informação verbal) [2].

Preocupados com esse panorama, os pesquisadores do referido Centro de Estudos juntamente com juristas brasileiros sustentam a necessidade de uma Reforma no sistema penal brasileiro, a fim de implementar, de acordo com a realidade do país, um sistema de características adversariais semelhante ao que foi feito em países como o Chile.

Sobre a experiência chilena, a própria concepção arquitetônica dos edifícios que abrigam as instituições do sistema de justiça criminal é um reflexo da sua reforma. Assim, o presídio localiza-se ao lado da praça onde estão dispostos os órgãos judiciais, estando o Tribunal no meio, o Ministério Público ao lado esquerdo e a Defensoria Pública ao lado direito. Devido à localização próxima do presídio, não há prisão em flagrante com lavratura de auto de prisão, pois o preso é ali mesmo apresentado ao juiz. As gestões administrativas dos órgãos dos tribunais, Ministério Público e Defensoria Pública são feitas por profissionais com qualificação para esse devido fim, o que permite, por exemplo, aos magistrados exercerem apenas a função para a qual estudaram e foram selecionados: a atividade judicante. Diante de um sistema inquisitivo, próprio de regimes autoritários, para a transição de um sistema acusatório foi necessário promover uma transição democrática no Judiciário chileno. Foi preciso, assim, humanizar os juízes para que, como juízes de garantias, tivessem a consciência de que são os guardiões dos direitos fundamentais. Nesse aspecto, foi importante a participação da Escola de Magistratura através da administração de cursos para os magistrados que não apresentassem resistência à mudança. Quanto aos que se mostraram resistentes, foram incentivados à aposentadoria ou ao seu deslocamento para outros ramos do Direito (informação verbal) [3].

Dentre os princípios elencados para que seja possível essa mudança para um sistema adversarial, destaca-se o posicionamento daqueles que serão os responsáveis pela aplicação quotidiana do modelo penal democrático: os operadores do direito. Isso porque não é suficiente a modificação normativa de novos códigos se o comportamento de seus aplicadores reflete aspectos conformes a um sistema inquisitorial (informação verbal) [4].

“Não há como, operando através de reformas, transformar algo solidificado sob argumentos e princípios totalitaristas numa carta de direitos constitucionais. Não há como partirmos de um modelo de sistema processual fascista-totalitário, reformando-o, e chegarmos num modelo de sistema processual garantista constitucional” (SESTREM, 2012, p. 19).

Mais do que no plano normativo, a mudança de modelo deve ser promovida na cultura jurídica desses operadores do direito habituados a um modelo de Lei e Ordem antigarantista. Nesse sentido, a mudança perpassa também pelo fomento de uma cultura constitucional que se mostra ausente em um constitucionalismo tardio, adotando um modelo de Direito Penal mínimo que busque, de fato, a constitucionalização do sistema jurídico-penal.

“Mas não basta isso, o mais difícil é a interiorização de processo de constitucionalização. A baixa constitucionalidade é, acima de tudo, psíquica […] O interessante é que a baixa eficácia da Constituição é um fenômeno localizado, setorial, fruto das diversas dimensões do dirigismo constitucional brasileiro. Não existe uma dinâmica única no que se refere à efetivação das normas constitucionais” (LOPES JR., 2006, p. 44-45).

Conclusão

Diante das reflexões feitas durante a realização do presente trabalho, passa-se a expor as seguintes conclusões:

O Constitucionalismo brasileiro tardio está relacionado a uma ausência de Cultura Constitucional, a qual é definida por comportamentos tendentes a preservar a vontade da constituição, efetivação máxima de seus princípios e normas e disseminação do conhecimento de seu texto.

Cada texto Constitucional está refletido por sua realidade e contexto característico do tipo de sistema jurídico adotado pelo país.

Através da identificação de suas causas históricas, políticas e jurídicas que resultaram no fenômeno do Constitucionalismo brasileiro tardio torna-se possível a busca por soluções.

Verificando-se a interpenetrabilidade dos fatos, as concausas histórico-político-jurídicas mostram-se indissociáveis por estarem envolvidas por um processo dialético.

A Teoria do Garantismo surge com a finalidade de resgatar a dimensão do Estado Constitucional de Direito e seu caráter democrático, combatendo práticas antigarantistas baseadas em normatividade de emergência e de exceção.

O garantismo constitui-se a partir de três significados, distintos, mas conexos: como modelo normativo de direito, como teoria jurídica e como filosofia política.

O constitucionalismo é o modelo jurídico indispensável para o desenvolvimento de uma dogmática garantista.

O garantismo é expressão de uma cultura constitucional, na medida em que representa um horizonte ideal que se verá mais ou menos satisfeito em fundão de quais sejam as garantias normativamente estabelecidas e qual o grau de sua efetiva realização.

A dimensão substancial do Estado de direito, trazida pela teoria do garantismo, se traduz em uma dimensão substancial da própria democracia. A partir dessa dimensão são garantidos os direitos fundamentais dos cidadãos e não simplesmente da onipotência da maioria, através da admissão da possibilidade de existência de antinomias e lacunas geradas pela introdução de limites e vínculos substanciais. Pois eles funcionam como condicionantes de validade das decisões da maioria. Dessa forma, é a possibilidade de que o direito seja inválido ou lacunoso que consiste na condição prévia tanto do Estado constitucional de direito quanto da dimensão substancial da democracia.

Para o garantismo, o Direito penal não deve, então, representar a lei do mais forte, mas a lei do mais fraco, o qual está representado, no momento do processo e da condenação, pelo acusado ou réu ameaçado por uma pena excessiva ou arbitrária.

A defesa dos direitos humanos à qual se presta a teoria garantista, é também contra majoritária, pois está ligada à proteção de parcelas minoritárias da população. Nesse caso, a proteção e garantia da efetividade dos direitos fundamentais da minoria desviada.

A incorporação dos direitos fundamentais no nível constitucional muda a relação entre o juiz e a lei e atribui à jurisdição uma função de garantia do cidadão diante das violações de qualquer nível da legalidade por parte dos poderes públicos.

O garantismo busca, através de suas técnicas, a efetividade dos direitos fundamentais, percebem-se, então, as práticas antigarantistas que divergem dos princípios fundamentais como efeitos do fenômeno Constitucionalismo brasileiro tardio.

É possível perceber no modelo penal brasileiro então vigente práticas antigarantistas exemplificadas por elementos que demonstram a presença de movimentos como o de Lei e Ordem e o Direito Penal do Inimigo.

No contexto de individualismo, diferencia-se o indivíduo do cidadão, sendo esse uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade, enquanto aquele tende a ser morno, cético ou prudente em relação à causa comum, ao bem comum, à boa sociedade ou à sociedade justa. Neste aspecto, relaciona-se, dessa forma, o sistema penal antigarantista a uma das causas para a ausência de cultura constitucional no Brasil, qual seja, o individualismo jurídico que impede que os preceitos de solidariedade e coletividade presentes no texto constitucional sejam efetivos.

Em uma Sociedade de Risco semeia-se a produção de ameaças e colhe-se a necessidade de um Estado interventor que ofereça respostas coercitivas interferindo em direitos fundamentais, recorrendo ao que deveria ser a ultima ratio.

Feitas as considerações sobre o que, de fato, representa a Teoria do Garantismo, bem como, sobre as características que permeiam e fundamentam as práticas antigarantistas, é possível perceber que se trata de uma visão parcial e equivocada sobre esse juiz garantista.

A referência histórica, da Constituição brasileira de 1824 da visão do réu como excluído da sociedade e do Estado demonstra a presença da ideia do delinquente como inimigo ao longo da história até os dias atuais.

A falta de identidade da sociedade com a democracia e o constitucionalismo reflete também na estruturação democrática do processo penal que não se impõe de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição.

Sob a influência de meios de comunicação que disseminam as ideias de movimentos como o de Lei e Ordem, na sociedade de risco brasileira a cultura do medo e do terror ganha o terreno da cultura democrática, a despeito daquilo que está previsto no texto constitucional de 1988. Ganha espaço o fenômeno de expansão ou maximização do Direito penal.

O Brasil, a despeito de ter inaugurado seu processo democrático com a Constituição de 1988, ainda permanece com um modelo jurídico-penal de características inquisitoriais. Apresenta-se, assim, em uma posição atrasada em relação aos demais países da América Latina que já realizaram as reformas de seus dispositivos normativos penais para a implementação do Sistema Democrático Adversarial.

Não é suficiente a modificação normativa de novos códigos se o comportamento de seus aplicadores reflete aspectos conformes a um sistema inquisitorial.

Mais do que no plano normativo, a mudança de modelo deve ser promovida na cultura jurídica desses operadores do direito habituados a um modelo de Lei e Ordem antigarantista. Nesse sentido, a mudança perpassa também pelo fomento de uma cultura constitucional que se mostra ausente em um constitucionalismo tardio, adotando um modelo de Direito Penal mínimo que busque, de fato, a constitucionalização do sistema jurídico-penal.

 

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Notas
[1] Informação fornecida por Leonel González, no Seminário A Reforma do Processo Penal na América Latina: A Experiência Chilena, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBADPP, em Salvador, ago. 2016.

[2] Informação fornecida por Lucas Carapiá, no Seminário A Reforma do Processo Penal na América Latina: A Experiência Chilena, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBADPP, em Salvador, ago. 2016.

[3] Informação fornecida por Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, no Seminário A Reforma do Processo Penal na América Latina: A Experiência Chilena, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBADPP, em Salvador, ago. 2016.

[4] Informação fornecida por Leonel González, no Seminário A Reforma do Processo Penal na América Latina: A Experiência Chilena, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBADPP, em Salvador, ago. 2016.


Informações Sobre o Autor

Vanessa Miceli de Oliveira Pimentel

Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia


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