Diálogo processual, direito democrático e o princípio da cooperação na inquirição adversarial de testemunhas

Resumo: O estudo aqui proposto analisa o novo sistema de inquirição de testemunhas adotado no Brasil, na seara processual cível, em razão da entrada em vigor da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, o novo Código de Processo Civil. Buscou-se identificar novas perspectivas na condução processual da atividade probatória, a partir de um levantamento jurídico-doutrinário do tema, em face da evolução histórica dos tradicionais sistemas de organização do processo, e pela análise de jurisprudência emprestada da esfera processual penal. Destacou-se o processo cooperativo na vanguarda dos sistemas organizacionais do processo, sobretudo, como instrumento procedimental de suporte para o Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Direito brasileiro. Processo Civil. Inquirição de testemunhas. Princípio da cooperação.

Abstract: The proposed study analyzes the new witness examination system adopted in Brazil in civil procedural law with the entry into force of the Federal Law n. 13.105, march 16, 2015, the new code of civil procedure. It sought to identify new perspectives in the procedural conduction of evidential activity from a legal and doctrinal survey of the subject in the face of historical developments of the traditional systems of process organization, as well as the case law analysis borrowed from the criminal procedure sphere. It highlights the cooperative process at the forefront of organizational process systems, especially as a support tool in the democratic rule of law.

Keywords: Brazilian law. Civil procedure. Examination of witnesses. Principle of cooperation.

Sumário: 1. Introdução; 2. Modelos tradicionais de organização do processo; 2.1. A influência do direito comum e do direito positivado no direito brasileiro: peculiaridades; 2.2 os sistemas adversarial e inquisitorial de organização tradicional do processo; 3 a inquirição de testemunhas pelos advogados e juiz; 3..1 a direct e cross examination no novo sistema inquirição adversarial; 3.2. Controle e atuação supletiva do juiz na inquirição de testemunhas; 4. O sistema cooperativo no estado democrático de direito. 5. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A busca pelo convencimento ao largo de uma instrução probatória é atividade de intensa e fundamental ordem, qual seja o modelo proposto para a sua orientação e efetivação. Seja na tradição do Direito pátrio ou nas bases do commom law, cada vez mais influente, as estratégias de provar as diversas versões da verdade são inúmeras e contêm inúmeras nuances.

Nesse ponto, a prova testemunhal, por sua vez, em diversos casos transcende a técnica, envolve o homem em todas as suas faces, internaliza impressões, faz externar emoções e traz à baila uma infinidade de interpretações. Daquelas que possuem sentido jurídico, a prova testemunhal talvez seja a mais humana delas, razão pela qual tem, em si mesma, uma imensa capacidade de aproximar ou distanciar o homem de sua própria justiça.

Assim, o presente estudo teve por escopo analisar a nova sistemática de inquirição de testemunhas adotada pelo direito processual cível no Brasil, no teor de sua nova codificação pela Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015.

Para tanto, buscou-se identificar as características básicas dos sistemas de inquirição de testemunhas, pontuando as inovações trazidas pela nova codificação processualística em detrimento do sistema inquisitorial presidencialista. Nessa nova modalidade, adversarial system – doravante denominada sistema adversarial – as perguntas, até então concentradas e intermediadas pelo juiz, passam a ser feitas pelas partes e dirigidas diretamente às testemunhas, sem a formulação da arguição verbal pelo magistrado.

Esse novo modelo, cujos fundamentos se originam do sistema jurídico anglo-saxão, common law, já vem sendo aplicado na praxe processual brasileira em esfera penal desde 2008 e indica, agora, uma nova perspectiva nas estratégias de composição probatória então utilizadas em nosso sistema jurídico civil.

Assim, através de jurisprudência emprestada do campo processual penal, e tendo por objeto de análise as bases fundamentais de funcionamento dos sistemas tradicionais de organização do processo, um segundo eixo deste estudo tratou de comparar a já ocorrida aplicação do sistema adversarial no Direito Penal brasileiro com os possíveis resultados e perspectivas que poderão ser obtidos com a sua adoção pelo Direito Processual Cível.

Enfim, diante da mudança processual, com a possível expansão da gama de estratégias probatórias gerada pelo novo modelo de inquirição de testemunhas, seguida da ampliação dos respectivos desafios, o estudo se prestou a investigar se tal contexto de inovação atingiria de fato o cerne da composição da prova testemunhal, redistribuindo o foco de ação da instrução probatória entre magistrado e partes, a ponto de possibilitar uma nova ou diferente forma de extração de respostas e versões factuais para a verdade processual.

 Resta possível conjecturar, apenas, que esse novo fluxograma de atos derivado do noviço sistema conferirá maior objetividade, celeridade e clareza no seio das audiências de instrução, exigindo-se a participação ativa de todos os sujeitos do processo. Tem-se, sem dúvida um avanço. Afinal, compreender a dinâmica por trás de uma composição probatória tão incisiva como a inquirição de testemunhas pode significar para todos os operadores jurídicos envolvidos não apenas o êxito sobre a sucumbência, mas também o peso estável da verdade bem demonstrada, o alcance da desejada justiça.

2 MODELOS TRADICIONAIS DE ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO

2.1 A influência do Direito Comum e do Direito Positivado no Direito Brasileiro: peculiaridades

Antes de se adentrar especificamente no tema dos sistemas de organização do processo no Brasil, cabe estabelecer um marco teórico e metodológico acerca do modo pelo qual se opera o pensamento jurídico brasileiro. Conforme observa Didier Júnior (2015, p. 60), para se compreender o Direito processual civil contemporâneo no Brasil é preciso romper com a afirmação dogmática – e um tanto peremptória – de que o Direito brasileiro se filia e se limita exclusiva e geneticamente à tradição jurídica romano-germânica do Civil Law, no paradigma do Direito Positivado.

Destaca o citado jurista que o sistema jurídico brasileiro é, no mínimo, peculiar (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 58). Afinal, a tradição jurídica no Brasil preconiza uma série de garantias processuais em âmbito constitucional com clara inspiração do Direito Comum estadunidense, como, por exemplo, o devido processo legal, enquanto nela também se estruturam inúmeras codificações legislativas pelo Direito Positivado. Não bastando, Didier explica que o papel dos operadores do Direito no Brasil e o modo como o ensino das ciências jurídicas é difundido revelam clara importância da formação de opinião doutrinária, característica marcante do Civil Law, ao passo em que se constrói no Direito pátrio um complexo eixo de valoração dos precedentes judiciais, a partir de súmulas e modelos de julgamento para demandas repetitivas, com destaque claramente atribuído à jurisprudência, marca notável do Common law.

Nesse sentido, resta perceptível que o sistema de organização do processo no Direito Civil brasileiro também se estrutura de forma única, miscigenada, enriquecida por mais de uma fonte de influência, razão pela qual se faz metodologicamente adequada uma análise expansiva e comparativa das inovações no sistema de inquirição de testemunhas, a fim de se identificar novas perspectivas na condução processual da atividade probatória, suas características próprias e suas distinções essenciais.

2.2 Os sistemas adversarial e inquisitorial de organização tradicional do processo

Doutrinariamente, destacam-se dois modelos de estruturação organizacional do processo na concepção jurídica ocidental, o modelo adversarial e o modelo inquisitorial. Todavia, são identificados na doutrina ao menos três, os destacados sistemas adversarial anglo-americano e o inquisitorial romano, bem como o sistema misto, alemão, em que as partes chegam a um acordo para fazerem as perguntas mediante autorização do juiz (SOUZA; SEABRA, 2009, p. 2).

O primeiro modelo, conforme observa Barbosa Moreira (2014), é originário dos ordenamentos anglo-saxônicos e caracteriza-se pela primazia do protagonismo processual assumido pelas partes, não apenas na iniciativa de instaurar o processo e de fixar-lhe o objeto, mas também na determinação da marcha do feito e seu respectivo ritmo em suas etapas fundantes e na colheita das provas na qual se perfaz o julgamento da causa. Nesse sentido, o modelo adversarial se caracteriza como uma contenda em que partes adversárias se posicionam de forma competitiva diante de um órgão jurisdicional relativamente passivo (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 121), preponderando nesse caso o princípio dispositivo.

No modelo inquisitorial, por outro lado, assume relevância o papel do magistrado como protagonista da atividade instrutória e esta se organiza, na visão de Didier Júnior (2015, p. 121), tal como uma pesquisa oficial. Assim, na persecução probatória inquisitiva as perguntas às testemunhas são feitas e elaboradas pelo juiz, devendo as partes e seus advogados, por conseguinte, a ele dirigirem suas questões, que as formulará se entender cabível e como bem lhe couber. Tem-se, portanto, o princípio dito inquisitivo como balizador da atuação jurisdicional nesse modelo de estruturação processual.

Acerca dos princípios informadores dos modelos tradicionais de organização processual, fala-se também em uma preponderância do princípio dispositivo no modelo adversarial (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 123). Para Cândido Rangel Dinamarco, “O princípio dispositivo é a matriz das regras e sistemas pelos quais ao juiz não competem iniciativas probatórias” (DINAMARCO, 2004, p. 52). Isto é, no modelo adversarial, afastar-se-ia da autoridade jurisdicional a função de fazer-se ativa na persecução por elementos de prova e convicção.

Todavia, observa Fredie Didier Jr. (2015, p. 122) que esta dicotomia principiológica entre os planos dispositivo e inquisitivo se relaciona à atribuição de poderes ao juiz em contraposição ao arbítrio das partes litigantes e que tal “dispositividade” e “inquisitividade” se verificam diversamente sob vários temas da organização processual, tais como instauração do processo, produção de provas e delimitação do objeto do litígio, dentre outros. O que ocorre modernamente é uma preponderância principiológica para cada tema em que deseje o legislador encampar um ou outro princípio informador. Assim sendo, não haveria razão para se delimitar restritivamente a noção de organização processual em sistemas jurídicos totalmente dispositivos ou totalmente inquisitivos.

Para Michele Taruffo (2008, p. 289), não seria cabível a tese de que a atribuição e o exercício de poderes instrutórios pelo juiz corresponderiam a uma proporcional diminuição da posição processual das partes ou de suas garantias fundamentais. Segundo o renomado processualista (TARUFFO, 2008, p. 290), a experiência dos ordenamentos civilísticos europeus se orienta no sentido de maximizar, ao mesmo tempo, o direito de prova das partes, a garantia do debate e a atribuição ao juízo de poderes amplos de instrução. Destaca também, que no direito estadunidense a figura do juiz como um árbitro passivo (passive umpire) veio, ao longo de um complexo processo de transformação nas últimas décadas, a dar destaque para o juiz gerencial (managerial judge) (BORGES, 2014, p. 27).

3 A INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS PELOS ADVOGADOS E JUIZ

3.1 A direct e cross examination no novo sistema inquirição adversarial

Diferentemente do que então se aplicava no antigo código de processo civil brasileiro, com um sistema preponderantemente inquisitorial, o sistema de inquirição das testemunhas de base adversarial, agora adotado pela nova codificação processual, revela por sua essência uma dinâmica mais direta e objetiva quanto à articulação das perguntas pelas partes diante das testemunhas e suas respectivas respostas.

É que o artigo 459, da Lei 13.105, de 16 de março de 2015, o novo Código de Processo Civil, preconiza que as partes, mais apropriadamente seus advogados, formularão as perguntas diretamente à testemunha, sem estágios ou etapas de recepção e retransmissão dessas perguntas pela autoridade jurisdicional. Para Souza e Seabra, (2009, p. 3), baseando-se na semelhante alteração legislativa ocorrida na esfera processual penal em 2008, trata-se de profunda mudança na atividade forense cotidiana, tendo em vista que a concepção cênica e a atuação funcional das partes e de seus advogados na sala de audiência para oitiva de testemunhas experimentam profundas alterações em seus eixos de coordenação e ambientação.

Nesse sentido, a modificação eleva importante garantia às partes pelo primado da iniciativa individual, em poderem atuar e influenciar ativamente no processo, pois, adotando-se por grande medida o sistema adversarial, através do exame direto e cruzado de testemunhas, enfatiza-se o chamado “processo das partes”, típico da common law (SOUZA; SEABRA, 2009, p. 2).

Explicam Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira (2015, p. 252), que no direito anglo-americano, pela ideologia liberal do common law de caráter marcadamente adversarial, a arguição das testemunhas é feita diretamente pelas partes à testemunha, em que se define por direct-examination – exame direto – a inquirição feita pela parte que arrolou a testemunha, enquanto que pela cross-examination, ou exame cruzado, tem-se a definição da inquirição feita pela parte contrária, também diretamente à testemunha.

Esse exame de inquirição direta e cruzada, segundo Sherry e Tidmarsh (2007, p. 46), externaliza um caráter dialético ao processo, oportunizando a formulação de pergunta e resposta, ponto e contraponto, de modo que as partes tenham maior envolvimento e raciocínio dialógico na construção do convencimento, para se alcançar um nível mais alto de aceitação das decisões judiciais ali embasadas.

3.2 Controle e atuação supletiva do juiz na inquirição de testemunhas

Com a atuação direta das partes, protagonizando ativamente a instrução probatória, tem-se uma valorização do citado princípio dispositivo, em um plano inercial, no qual não caberia primordialmente ao juiz tomar as iniciativas probatórias nesse exato momento (DIDIER JÚNIOR, 2015, p. 121).

Contudo, honrando por outro lado o princípio inquisitivo, tem-se que a inteligência do artigo 459, do novo Código de Processo Civil, deixa clara a possibilidade de interferência do juízo perante perguntas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com o objeto de prova ou importarem repetição, e por mais, confere ao juízo a prerrogativa de inquirir a testemunha antes ou depois da inquirição feita pelas partes.

Em igual teor, a Lei n. 11.690/2008, estabelecendo nova redação ao artigo 212 do Código de Processo Penal, alterou o modelo de inquirição de testemunhas no direito processual penal brasileiro, do antigo sistema inquisitivo para o modelo adversarial, tal como agora alcança o processo civil com sua nova codificação.

Assim sendo, cabe analisar o entendimento jurisprudencial já formado em torno do tema na esfera processual penal, a fim de se traçar um horizonte perante o qual a nova sistemática do processo cível será percebida pelos tribunais.

“Recurso ordinário em habeas corpus. Inquirição das testemunhas iniciada por perguntas formuladas pelo magistrado e, somente após, pelas partes. Alegação de ofensa ao art. 212 do CPP, na redação dada pela Lei n.   11.690/2008. Nulidade meramente relativa. Precedentes do supremo tribunal federal. Não demonstração de qualquer prejuízo. Pas de nullité sans grief. Inexistência de constrangimento ilegal. Recurso de agravo improvido”. (BRASIL, STF, 2014, grifo nosso).

A despeito das inovações trazidas na nova redação do artigo 212 do Código Penal, nota-se na jurisprudência uma fixada preservação das prerrogativas de atuação do magistrado, que lhe permite aclarar questões, evidentemente inadmitir perguntas e propriamente inquirir as testemunhas diretamente, em caráter suplementar.

“Processo penal. Habeas corpus. Homicídio qualificado. Testemunhas. Inquirição direta pelo magistrado. Nulidade. Ordem parcialmente concedida. I. O art. 212 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei n. 11.690/08, determina que as perguntas sejam formuladas diretamente pelas partes às testemunhas, possibilitando ao magistrado, supletivamente, caso queira complementar as declarações em pontos ainda não esclarecidos, proceder à sua inquirição. Precedentes. II. A Reforma de Processo Penal de 2008 suprimiu o sistema presidencialista na oitiva das testemunhas em juízo, adotando-se o sistema acusatório, configurando constrangimento ilegal a violação dessa forma instrutória. III. Eventual nulidade na instrução criminal dos crimes dolosos contra a vida não impede o magistrado de atuar no feito. No rito escalonado do Tribunal do Júri, o acusado será julgado pelo Conselho de Sentença, segundo a íntima convicção dos jurados. IV. Ordem concedida em parte.” (BRASIL, STJ, 2010, grifo nosso).

No que tange à atuação da autoridade jurisdicional, explica Cambi (2009, p. 5), que o sistema processual brasileiro, aproximando-se do modelo anglo-saxão do sistema adversarial, entrega às partes o papel de protagonistas na produção probatória. Porém, destaca que isso absolutamente não diminui a importância do papel a ser desempenhado pelo juiz, uma que vez que continua sendo efetivamente o destinatário da instrução probatória.

Em que pese o extrato do caput, do artigo 156 do código de processo penal, de que incumbe às partes o ônus de provar suas alegações, exerce o juiz função complementar na atividade de produção da prova, cujos poderes instrutórios se justificam para dirimir dúvidas sobre pontos relevantes e para assegurar elementos de prova considerados necessários, adequados e proporcionais, nos termos dos incisos I e II do citado dispositivo.

Ainda segundo Cambi, a reforma processual penal ocorrida em 2008, ao afirmar a legitimação democrática da jurisdição, buscou apenas aclarar que “o órgão judicial pode muito, mas não tudo” (2009, p. 5) e, ainda assim, não haveria o que se falar em perda de poderes ou em um deslocamento do eixo de atuação da autoridade jurisdicional para o campo passivo, essencialmente dispositivo.

Nessa mesma razão parece seguir o novo sistema processual cível, conferindo ao juízo o condão – poder/dever – de controlar e presidir a composição da inquirição, não admitindo a formulação de perguntas indutivas, repetitivas, desconectadas dos fatos, vexatórias, impertinentes ou capciosas. Além de, também, atuar de forma ativa na instrução ao definir elementos de prova que considere necessários ou protelatórios e, sobretudo, ao inquirir diretamente a testemunha acerca dos pontos que bem relevar. Enfim, mantém-se o juízo como destinatário e, ao mesmo tempo, como operador-gestor do procedimento instrutório de inquirição.

4 O SISTEMA COOPERATIVO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Tratando-se o processo de um fenômeno cultural, resta por existir uma relação de mútua implicação entre processo e cultura. Isto é, ao fazer parte da cultura jurídica, o processo é, também, um reflexo da cultura geral e tem, nessa mesma relação, aptidão para influenciá-lo (TARUFFO, 2008, p. 252). Baseando-se no fato de que é o próprio Estado um dos elementos culturais que mais dialoga com o processo civil, especialmente no sentido de que o processo civil espelha as concepções culturais dominantes acerca do papel do Estado (RAATZ, 2011, p. 23), torna-se preponderante buscar uma compreensão dos sistemas aqui apresentados à luz dos princípios trazidos pelo novo código de processo que, nesse desiderato, se realizam na ideia do Estado Democrático de Direito, constitucionalmente amparado no Brasil.

Conforme Habermas (1997b, p. 190), o estado democrático de Direito, sob o prisma de sua Teoria Procedimental do Direito e no sentido de uma “comunidade jurídica que organiza a si mesma”, distingue-se dos paradigmas tradicionais do Estado Liberal e do Bem-estar Social ao formular as condições necessárias para que os cidadãos, sujeitos de direito, possam se entender entre si, a fim de determinarem seus problemas e suas respectivas soluções. Assim, ao invés de apenas informar um determinado ideal de sociedade, o paradigma do Direito Democrático submete-se aos resultados de uma discussão social contínua, capaz de influenciar discursivamente a autocompreensão dos seus operadores e de todos os seus demais tutelados.

Em suma, o paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito visa suprir as distorções e insuficiências que se verificam nas concepções democráticas dos Estados Liberal e Social, mas aproveitando os aspectos positivos de ambas para proporcionar “aos cidadãos de uma sociedade multiculturalizada o exercício dos direitos de participação e de fiscalização na produção do Direito” (THIBAU, 2011, p. 23).

Estreitando-se a análise para o universo da instrução probatória, nota-se que o paradigma jurídico do Direito Democrático atual requer um procedimento que se legitime através da “clarificação discursiva das respectivas questões de direito e de fato; deste modo os atingidos podem ter a segurança de que, no processo, serão decisivos para a sentença judicial argumentos relevantes e não arbitrários” (HABERMAS, 1997a, p. 274).

Nessa senda, da combinação entre a participação e o diálogo que deve pautar os vínculos entre as partes e o juiz na trama processual, surge o modelo cooperativo de processo (MITIDIERO, 2007, p. 55).

Consoante Fredie Didier Jr. (2015, p. 125), este modelo de cooperação unifica-se através de um redimensionamento dos princípios do contraditório, da boa-fé processual e do devido processo legal, de modo a incluir também o julgador no plano dos sujeitos do diálogo processual. Segundo o citado autor, o princípio jurídico decorrente deste novo modelo de organização do processo, o princípio cooperativo, enfatiza uma “comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft, comunione del lavoro)” (DIDIER et al, 2015, p. 130) e “define o modo como o processo civil deve estrutura-se no direito brasileiro” (DIDIER JÚNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2015, p. 125).

Precisamente nesse sentido, busca o artigo 6º do novo Código de Processo Civil de 2015 cunhar uma práxis para tal modelo cooperativo ao preconizar que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.

Contudo, tal almejada cooperação entre partes, advogados e juízes se depararia com desafiadoras animosidades e armadilhas se posicionada apenas ideologicamente no seio do debate processual real, ambiente eminentemente pouco cooperativo, consoante as observações de Humberto Theodoro Júnior et al. (2015, p. 65). Esteando a noção funcional do sistema cooperativo como instrumento efetivo do processo democrático, os citados autores oferecem uma visão deontológica do processo como comparticipação que, de fato, encontra guarida normativa no novo Código de Processo Civil. A teoria em questão propõe que a ética normativa do processo democrático deva ser conduzida pela noção do contraditório como garantia de influência e não surpresa, bem como pelos princípios do devido processo legal, da cooperação e da boa-fé processual no sentido de não haver o estabelecimento de privilégios ou “focos de centralidade”, nem nas partes, nem no juiz, de modo que a fundamentação das decisões jurisdicionais dispense as “propensões cognitivas” do julgador e se estruture exclusivamente no poder interdependente e discursivo que haja sido efetivamente exercido entre todos os envolvidos (THEODORO JÚNIOR et al., 2015, p. 67-68).

Assim, no que tange ao papel do órgão jurisdicional e das partes na inquirição de testemunhas ou demais atos instrutórios, tem-se, como característica oriunda do Estado Democrático de Direito, a preponderância do princípio da cooperação encampando pontos positivos do antigo jogo dicotômico entre os princípios dispositivo e inquisitivo, respectivos informadores dos tradicionais modelos de organização do processo no Estado Liberal – juiz passivo e no Estado Social – juiz ativo. (RAATZ, 2011, p. 30). A democracia deixa de ser uma mera concepção representativa de poder e passa a ser participativa em sua própria determinação.

5 CONCLUSÃO

O noviço código trouxe profunda alteração na dinâmica das audiências de instrução e julgamento no tocante a inquirição das testemunhas. O que antes se perfazia sob a égide inquisitiva do juízo, em um sistema de condução presidencialista em que o juiz concentrava em si toda a atividade inquiritória, passa, com o novo Código de Processo Civil, a ser determinado por um modelo direto de formulação de perguntas entre partes e testemunhas. Importava, portanto, analisar como tal inovação poderia alterar o foco de atuação das partes e magistrados na atividade probatória tangente à inquirição de testemunhas.

Para proceder-se à abordagem esperada do tema, o estudo lançou mão de pesquisa bibliográfica jurisprudencial e doutrinária como fonte central de observação, com o escopo de se obter os pontos práticos e teóricos acerca dos sistemas de inquirição de testemunhas a ser analisados.

No fichamento do conteúdo levantado foram definidos três pontos-chave, quais sejam: legislação pátria, contexto jurídico-doutrinário dos tipos de sistemas de inquirição e, por fim, julgados contemporâneos emprestados da seara processual penal que revelassem a aplicação prática do arcabouço teórico no tocante às inovações trazidas na norma processual.

Dessa forma, verificou-se que esse novo modelo de inquirição das testemunhas possui cunho adversarial, dispositivo, apenas aparentemente. Não chega, na prática, a se redefinir como uma dinâmica capaz de deslocar o eixo de poder dos magistrados e redistribuí-lo às partes e seus advogados, a ponto de se falar em uma nova ordem de extração da verdade processual. Porém, sob o prisma do Estado de Direito Democrático, revela sobremaneira um processo civil de maior diálogo, mais cooperativo, influente e autodeterminante.

O magistrado, embora passe a assumir papel mais inercial diante da atividade instrutória protagonizada pelas partes, permanece sendo o efetivo eixo de domínio da instrução probatória e não apenas seu espectador, mantém seu controle em mãos e a prerrogativa de diretamente atuar na sua construção. Ainda assim, resta possível ponderar que o novo modelo resulta em uma rotina de inquirição mais objetiva, mais célere, clara e direta das testemunhas, avanço, por certo, não menos importante.

Notou-se que o novo modelo de inquirição pressupõe uma participação mais atuante e direta dos operadores jurídicos para a formação da prova testemunhal. Portanto, compreender os limites, os modos e o adequado equilíbrio no papel de cada operador neste novo modelo de inquirição é o desafio a ser cumprido para uma instrução processual eficaz, célere e, sobretudo, justa.

 

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Informações Sobre o Autor

Levy Christiano Dias Ramos

Procurador Municipal. Pós Graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Advocacia Cível pela Pós-Graduação Lato Sensu da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil ESA OAB/MG. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e Bacharel em Ciências Econômicas pelo IBMEC/MG


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