A obsolescência planejada e Código de Proteção e Defesa do Consumidor

Resumo: A obsolescência planejada é uma estratégia comercial surgida há quase um século e extremamente utilizada no sistema capitalista, o qual necessita do constante estímulo da atividade de consumo. Entretanto, será que esta prática comercial sempre ocorre em desconformidade com o ordenamento jurídico? A legislação brasileira, assim como a jurisprudência dos tribunais pátrios, ainda que implicitamente, vêm enfrentando a questão e estipulando nortes interpretativos para a sociedade. Nesta linha, o presente artigo enfrenta as hipóteses de obsolescência programada e seu enquadramento jurídico-social no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Obsolescência Programada. Vício. Oculto. Decadência.

Sumário: Introdução. I – O Código de Proteção e Defesa do Consumidor. I.I – Vício ou Defeito do Produto. II – Obsolescência Planejada e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. III – Decadência, Vício Oculto e Obsolescência Planejada. Conclusão. Referências.

Introdução.

A obsolescência planejada, como o próprio nome faz pressupor, é o planejamento para tornar um produto antigo e ultrapassado. A referida técnica é uma estratégia de mercado muito utilizada no sistema capitalista que objetiva garantir o consumo constante através da inutilização ou insatisfação de um produto, o que ocorre pelo encurtamento da sua vida útil (período de durabilidade), pela redução no fornecimento de componentes de reposição ou pelo simples lançamento de produtos mais modernos.

O fenômeno industrial e mercadológico da obsolescência programada tem sua origem na década de 1920, quando o presidente da General Motors buscou atrair os consumidores à constante troca de automóveis, tendo como expediente a alteração anual dos respectivos modelos e acessórios. Surgiu, então, o processo da "descartalização", utilizado pelos países capitalistas nas décadas de 1930 e 1940 que, para a retomada do crescimento econômico, produziam bens de consumo com durabilidade reduzida, levando o consumidor a adquirir novos produtos em intervalos menores de tempo.

No entanto, apesar da aparente ilegitimidade da obsolescência programada, é inquestionável que tal estratégia se disseminou até os dias atuais e tem sido, com certas balizas, admitida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A título de exemplo, verificam-se os sucessivos lançamentos de aparelhos telefônicos, notebooks e os lançamentos anuais de veículos automotores.

O objetivo do presente artigo é analisar em até que ponto a obsolescência planejada é uma prática comercial válida perante o ordenamento jurídico brasileiro, mas, antes de adentramos neste ponto, devemos estabelecer algumas premissas.

I – O Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

A lei federal de âmbito nacional n.º 8.078/90 positivou o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) que dispõe sobre os direitos e deveres impostos aos consumidores e aos fornecedores. Dentre tais disposições destacam-se o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, a exigência da boa-fé nas relações jurídicas entre as partes e a consequente vedação das práticas comerciais abusivas por parte dos fornecedores.

Especificamente sobre o tema da obsolescência, o CDC impôs expressamente aos fornecedores (fabricantes e importadores) o dever de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou a importação do produto e, caso cessadas, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo (artigo 32, caput e parágrafo único do CDC). Inclusive, o Decreto n.º 2.181/97, ao estabelecer as normas gerais para a aplicação das sanções administrativas previstas no CDC, positivou, em seu artigo 13, inciso XXI, que:

“Art. 13. Serão consideradas, ainda, práticas infrativas, na forma dos dispositivos da Lei nº 8.078, de 1990:

XXI – deixar de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição, enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto, e, caso cessadas, de manter a oferta de componentes e peças de reposição por período razoável de tempo, nunca inferior à vida útil do produto ou serviço”.

Assim, é possível concluir que qualquer atuação que reduza o acesso dos consumidores aos componentes e peças de reposição, dentro do período de sua vida útil do produto, tem o objetivo de impor o ato de consumo de mercadorias novas, sendo considerada infração às normas do direito do consumidor. Portanto, um mecanismo de obsolescência programada ilegal.

Ocorre que, o próprio CDC determina a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Desta forma, há o reconhecimento do diploma consumerista sobre a necessidade do desenvolvimento econômico e tecnológico, sendo natural que, em certos lapsos temporais, produtos novos e mais avançados surjam no mercado de consumo de maneira legítima.

I.I – Vício ou Defeito do Produto.

O vício do produto pode ser definido como sua inadequação ou impropriedade ao fim a que se destina. O vício é intrínseco ao próprio produto, não sendo apto, em princípio, a causar danos externos ao consumidor (qualidade-adequação). Consequentemente, o Código de Defesa do Consumidor dispõe sobre a responsabilidade por vício do produto (artigos 18 a 25 do CDC), caso em que há uma ofensa à incolumidade econômica do consumidor em decorrência do vício de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo, seja lhe reduzindo o valor, seja estando em dissonância entre o que é oferecido e o que é divulgado. Assim, um televisor dito como de alta definição, mas que só emite imagens em preto e branco, é um produto com vício, pois inadequado ao consumo nos termos da oferta.

Já o defeito do produto pode ser conceituado como falha de segurança que acarreta uma potencialidade de dano não esperado de sua apresentação, usos e riscos que razoavelmente se espera quando da colocação em circulação. O defeito está relacionado ao acidente de consumo, como no caso de colisão de um automóvel decorrente de defeito de fabricação do sistema de freios ou a explosão de um televisor decorrente de curto-circuito, causando danos ao consumidor ou a terceiros (qualidade-segurança). Portanto, a responsabilidade pelo fato do produto, conhecido também como acidente de consumo (artigos 12 a 14 do CDC), decorre de danos causados à incolumidade física, psíquica ou econômica do consumidor em razão de um defeito.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já encampou o referido entendimento, in verbis:

“(…) – No sistema do CDC, a responsabilidade pela qualidade biparte-se na exigência de adequação e segurança, segundo o que razoavelmente se pode esperar dos produtos e serviços. Nesse contexto, fixa, de um lado, a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, que compreende os defeitos de segurança; e de outro, a responsabilidade por vício do produto ou do serviço, que abrange os vícios por inadequação (…)[1]”.

Entretanto, o §2º do art. 12 do CDC dispõe que o produto não será considerado viciado ou defeituoso pelo simples fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado, exatamente porque há a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal).

Consolidado os conceitos de vício, defeito dos produtos e a imperatividade do crescimento e desenvolvimento, passaremos a analisar as questões acerca da legitimidade da obsolescência planejada.

II – Obsolescência Planejada e o Ordenamento Jurídico Brasileiro.

A obsolescência planejada, como estratégia de mercado garantidora do consumo, em princípio, não deve ser taxada como uma prática em desacordo com a legislação brasileira, ao contrário, é uma exigência do sistema capitalista. No entanto, há modalidades de obsolescência programada ilegais previstas, expressa e implicitamente, no Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Assim, é ilegal a redução intencional do ciclo de vida de um produto (redução da durabilidade), a cessação de disponibilização de componentes e peças de reposição em período inferior ao da vida útil do produto ou, ainda, lançamentos de novos produtos em determinados espaços de tempo que acarretem a inutilização das versões anteriores. Isso porque tais condutas visam unicamente a imposição do ato de consumo, violando os deveres de boa-fé e da vulnerabilidade do consumidor, sendo verdadeiros vícios de qualidade-adequação e uma transgressão normas sobre ofertas de reposição de peças (art. 4º, incisos I e III; art. 32, caput e parágrafo único, do CDC e arts. 13, inciso XXI, do Decreto n.º 2.181/97).

Por outro lado, é inquestionável que a sua prática está enraizada em nossa cultura sendo uma das forças motrizes da economia mundial. A título ilustrativo, não há maiores contestações acerca da validade dos lançamentos de novos modelos do sistema operacional Windows[2] realizado pela Microsoft, dos lançamentos de smartphones Iphone[3] realizado pela Apple ou dos lançamentos anuais de automóveis.

A legitimidade da obsolescência planejada está diretamente relacionada a não imposição do ato de consumo pelo fornecedor, a manutenção da legítima expectativa do consumidor e a manutenção da funcionalidade do sistema operacional do produto em versão anterior, além da disponibilização de peças de reposição e de suporte técnico durante o período da vida útil do bem. Nestes casos, a aquisição do lançamento seria uma mera faculdade.

Caso haja o lançamento de um novo produto eletrônico com atualização do software de edição e leitura de textos, deverá a atualização de software ser compatível com o sistema operacional na versão anterior, sob pena de impor a necessidade de aquisição do novo sistema, em evidente redução proposital da utilidade do produto, caracterizando a obsolescência programada ilegítima. Cite-se o caso da Microsoft que, ao lançar as versões atuais do software Word, sempre o mantém compatível com as versões antigas para a leitura e criação de documentos.

Agora, é normal que algumas funcionalidades, em razão da própria evolução da tecnologia, só sejam compatíveis com o novo sistema operacional e o §2º do art. 12 do CDC dispõe que o produto não será considerado viciado ou defeituoso pelo simples fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

No mesmo sentido dispõe o inciso III, art. 4º do CDC sobre a harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.

Portanto, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor reconhece a necessidade do desenvolvimento, sendo natural que, em certos lapsos temporais, produtos novos e mais avançados surjam no mercado. O que o ordenamento jurídico brasileiro não permite é a utilização destes novos bens de consumo como um mecanismo de imposição unilateral ao consumidor à respectiva aquisição, violando a sua legitima expectativa em relação à durabilidade física, econômica ou operacional dos produtos em suas versões anteriores.

Quanto ao tema, o Superior Tribunal de Justiça tem dois precedentes que já balizaram os termos em que os lançamentos de automóveis serão atos legítimos, sempre respeitando a legitima expectativa do consumidor e sem impor uma desvalorização prematura do produto, in verbis:

“DIREITO DO CONSUMIDOR. ‘REESTILIZAÇÃO’ LÍCITA DE PRODUTO. VEÍCULO 2007 COMERCIALIZADO COMO MODELO 2008. LANÇAMENTO NO ANO DE 2008 DE PRODUTO REFORMULADO, COMO SENDO MODELO 2009. PRÁTICA COMERCIAL ABUSIVA E PROPAGANDA ENGANOSA NÃO VERIFICADAS. 1 – Lícito ao fabricante de veículos antecipar o lançamento de um modelo meses antes da virada do ano, prática usual no mercado de veículos. 2 – Não há falar em prática comercial abusiva ou propaganda enganosa quando o consumidor, no ano de 2007, adquire veículo modelo 2008 e a reestilização do produto atinge apenas os de modelo 2009, ou seja, não realizada no mesmo ano. Situação diversa da ocorrida no julgamento do REsp 1.342.899 – RS (Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 09/09/2013[4]”.

“(…) 3 – Embora lícito ao fabricante de veículos antecipar o lançamento de um modelo meses antes da virada do ano, prática usual no país, constitui prática comercial abusiva e propaganda enganosa e não de "reestilização" lícita, lançar e comercializar veículo no ano como sendo modelo do ano seguinte e, depois, adquiridos esses modelos pelos consumidores, paralisar a fabricação desse modelo e lançar outro, com novos detalhes, no mesmo ano, como modelo do ano seguinte, nem mesmo comercializando mais o anterior. No caso o fabricante, após divulgar e passar a comercializar o automóvel "Ano 2006 Modelo 2007", vendido apenas em 2006, simplesmente lançou outro automóvel "Modelo 2007", com alteração de vários itens, o que leva a concluir haver ela oferecido em 2006 um modelo 2007 que não viria a ser produzido em 2007, ferindo a fundada expectativa de consumo de seus adquirentes em terem, no ano de 2007, um veículo do ano. 4 – Ao adquirir um automóvel, o consumidor, em regra, opta pela compra do modelo do ano, isto é, aquele cujo modelo deverá permanecer por mais tempo no mercado, circunstância que minimiza o efeito da desvalorização decorrente da depreciação natural (…)[5]”.

Apesar do precedente, o tema não é pacífico.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) já teve duas oportunidades de se manifestar sobre legitimidade do lançamento de aparelho telefônico, com um novo sistema operacional, que inutilizava as versões anteriores por meio da incompatibilidade da atualização com diversos aplicativos.

Em 2016, o TJRS entendeu que o fornecedor não pode ser penalizado por colocar no mercado aparelhos com versões mais avançadas nem pelos eventuais transtornos ocasionados ao consumidor que tem dificuldade para utilização dos aplicativos no aparelho telefônico na versão antiga.

“(…) A autora recorreu da decisão que julgou improcedentes os pedidos indenizatórios formulados na inicial. Sustenta a autora que possui um aparelho celular IPHONE 3GS, versão 4.2.1, que se tornou obsoleto para rodar os aplicativos que utiliza, em razão da incompatibilidade com a versão. (…) O caso em exame não diz com vício do produto, mas com desatualização e incompatibilidade do sistema operacional para determinados aplicativos. O produto não é considerado defeituoso quando outro de melhor qualidade é colocado no mercado, consoante disposto no art.12, §2º, do CDC. Os pleitos da autora não se sustentam, pois seu aparelho não apresenta qualquer defeito, apenas está desatualizado para a utilização da gama de aplicativos disponibilizados. A tecnologia vem avançando rapidamente, de modo que anualmente novos modelos de aparelhos são lançados no mercado, com versões mais avançadas, mais potentes e com mais funcionalidades. Obviamente que os aplicativos também sofrem evolução. Não há respaldo legal para os pleitos da autora. A ré não pode ser punida por colocar no mercado aparelhos com versões mais avançadas e nem pelos alegados transtornos da autora por estar encontrando dificuldade para baixar aplicativos em seu celular. A decisão de improcedência da demanda deve ser mantida, ainda que por fundamentos diversos dos acima. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO[6]”.

Todavia, em 2014, o TJRS havia se manifestado no sentido de que só é lícito ao fornecedor lançar novos produtos no mercado, se o lançamento não acarretar a inutilização dos modelos anteriores com pouco tempo de uso.

“(…) 1. Trata a presente demanda de ação de obrigação de fazer, cumulada com reparação por danos morais, na qual alegou a autora possuir um telefone modelo Iphone 3G, cuja versão do sistema operacional é a 4.2.1. 2. Aduziu que o viajar ao Uruguai, no final de 2012, percebeu que o aplicativo que mais utilizava, chamado ‘Whatsapp’, não estava mais funcionando. Sustentou que ao retornar ao Brasil resolveu deletar o aplicativo e adquiri-lo novamente junto à loja virtual da empresa-ré, e que, para sua surpresa, não obteve sucesso na compra pois para que este aplicativo voltasse a funcionar em seu aparelho, deveria possuir instalado o software IOS 4.3. 3. Salientou que com o passar dos dias, também percebeu que uma série de outros aplicativos como Mobo, Facebook, Facebook Messenger, Mercado Livre, Linkedin, Localização, Instagram, Windows Live, etc., não mais funcionaram, visto que necessitavam da versão IOS 4.3. ou superior para operarem. (…) 6. Assim, em face de novo software lançado pela ré, o seu aparelho iPhone 3G se tornou inutilizável, o que configura inegável dano ao consumidor. 7. É lícito à ré lançar novos aparelhos e novos programas no mercado; mas não é lícito tornar inutilizáveis seus smartphones anteriores e com pouco tempo de uso, razão pela qual tem o dever de fornecer um produto à autora que essa possa utilizar. 8. Dano moral fixado na sentença (R$ 1.500,00), mantido, a fim de evitar a Reformatio in Pejus, já que somente a parte autora recorreu, observando que se trata de mero desacerto contratual o que, em regra, é insuscetível de caracterizar o dano extrapatrimonial. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO[7]”.

Não parece que o entendimento mais recente do TJRS (2016) seja o mais adequado às ponderações já realizadas. Ainda que haja cessação da venda de produtos em versões anteriores, não se pode admitir que a fornecedora lance um novo sistema operacional que torne inutilizável as respectivas versões anteriores, pois estaríamos diante de uma verdadeira imposição do ato de consumo.

O dever das fornecedoras em assegurar os componentes e peças de reposição deve ser interpretado extensivamente para exigir também a manutenção dos sistemas operacionais de produtos em versões antigas e por períodos nunca inferiores ao da sua vida útil, ainda que não haja toda a potencialidade de fruição das novas e mais modernas versões.

III – Decadência, Vício Oculto e Obsolescência Planejada.

A segurança jurídica é um dos alicerces do Estado brasileiro, tendo dois vieses, um objetivo, relacionado com a estabilidade e coerência do direito; e outro subjetivo, relacionado à observância do princípio da confiança e atuação em conformidade com as legítimas expectativas dos indivíduos.

Nesta linha, impedindo a eternização dos litígios e visando a pacificação social, o ordenamento jurídico prevê prazos prescricionais e decadenciais para o exercício dos direitos e, portanto, o fornecedor não será eternamente responsável por produtos colocados em circulação.

A obrigação do fornecedor em reparar vícios no produto termina, quanto aos não duráveis com vícios aparentes ou de fácil constatação, em 30 dias; e, sendo o produto durável, em 90 dias (art. 26, incisos I e II do CDC). Entretanto, tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que o vício restar evidenciado (art. 26, §3º do CDC).

Como se observa, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor não fixou claramente um prazo decadencial para o dever de reparação no caso de vícios ocultos.

O Superior Tribunal de Justiça vem adotando como critério para a definição do prazo decadencial o período de vida útil do bem e não o critério da garantia legal ou contratual. Assim, o fornecedor pode ser responsabilizado pelo vício oculto e ser obrigado ao conserto e/ou substituição do produto em espaço de tempo maior do que o fixado para a garantia, evitando a obsolescência planejada com o encurtamento do ciclo útil do produto e a imposição do ato de consumo.

Desta forma, o STJ rechaça as condutas empresariais que reduzem intencionalmente a vida útil do produto durável até os limites da garantia contratual ou legal, evitando-se a frustração da legítima expectativa do consumidor por meio da obsolescência programada.

Entretanto, é relevante ressaltar que esta responsabilização do fornecedor não se estende à necessidade de reparos, revisões e substituições das peças decorrentes dos usos e dos desgastes naturais, mas sim dos vícios ocultos decorrentes do processo produtivo e que reduzem a durabilidade aquém do legitimamente esperado, como nos casos de vícios de fabricação, os relativos ao projeto, cálculo estrutural, resistência dos materiais, entre outros.

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou neste sentido:

“(…) 5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia. 6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto (…). 7. (…) conforme assevera a doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. 8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem. 9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum[8]”.

Conclusão.

O tema da obsolescência planejada tem sido enfrentado sob o ponto de vista unidirecional de sua ilegitimidade sem se discutir as suas especificidades socioeconômicas e jurídicas, pois tal estratégia decorre do próprio sistema econômico e mercadológico em que o Brasil se insere.

À luz do ordenamento brasileiro, a obsolescência pode ser realizada de maneira legítima ou ilegítima, devendo ser verificado, casuisticamente, se há a imposição do ato de consumo, a frustração da legítima expectativa e da boa-fé do consumidor vulnerável diante das práticas comerciais do fornecedor.

Isso porque o CDC determina a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, reconhecendo a possibilidade de que, em certos lapsos temporais, produtos novos e mais avançados surjam no mercado de consumo.

Assim, é válida a obsolescência planejada quando os fornecedores assegurarem as legítimas expectativas do consumidor em relação a durabilidade física, econômica e operacional do bem de consumo durante sua vida útil, sem qualquer prática abusiva direcionada à imposição do ato de consumo. Nestes termos, o simples lançamento de um produto de melhor qualidade no mercado não caracteriza a versão anterior do produto como viciada ou defeituosa (art. 12, §2º do CDC).

Será ilegítima quando os lançamentos de novos produtos acarretarem a inutilização das versões anteriores ou reduzirem o respectivo ciclo de vida útil. Há, aqui, um vício intrínseco ao próprio produto (qualidade-adequação) que acarreta sua imprestabilidade com notória ofensa à legítima expectativa e à incolumidade econômica do consumidor, imponto o descarte do bem adquirido e a imposição do ato de consumo.

A obsolescência programada é um tema complexo e com diversas particularidades, demandando uma melhor regulamentação por parte do Poder Público.

Por fim, é de extrema relevância o entendimento do tema para que os fornecedores possam adequar suas condutas empresariais aos ditames legais, os consumidores tenham o conhecimento de seus direitos e os órgãos de defesa e tutela do consumidor possam fiscalizar a legitimidade de tais atos; além da análise obrigatória sobre a necessidade do consumo consciente e atuação normativa do Poder Público simultaneamente com os fornecedores na realização de projetos de conscientização ambiental para a redução do impacto do consumo no meio ambiente.

 

Referências.
BULOS, Uadi Lammêngo. Constituição Federal anotada. 8ª ed. Rev. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei N° 8.078, de 11 de setembro de 1990. Institui o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Brasília, DF: Senado, 1990.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 984106/SC. Julg. 4/10/2012. Acesso em: 10 mar. 2017.
ENCICLOPÉDIA, Wikipédia. Obsolescência Programada. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Obsolesc%C3%AAncia_programada>. Acesso: 13 mar. 2017.
MASSON, Cleber e Outros. Interesse difusos e coletivos esquematizado. 2ª ed. rev., atual e ampli. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.
RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. Curso de direito do consumidor. 4º ed. São Paulo, 2009.
 
Notas
[1] STJ. REsp 967623 / RJ. Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI. 3ª TURMA. Publicação em 29/06/2009.

[2] Entre agosto de 1995 e setembro de 2014, foram lançados os sistemas operacionais do Windows 95, Windows 98, Windows XP, Windows Vista, Windows 7, Windows 8, Windows 10.

[3] Entre junho de 2007 e 2016, foram lançados o iPhone, iPhone 3G, 3GS, 4, 4S, 5, 5C, 5S, 6, 6 Plus, 6s, 6s Plus, 7, 7 Plus.

[4] STJ. REsp 1330174 / MG. Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI. 3ª TURMA. Data da Publicação: DJe 04/11/2013

[5] STJ. REsp 1342899 / RS. Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI. 3ª TURMA. Data da Publicação: DJe 09/09/2013 e REsp 871172 / SE. Relator(a): Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI. 4ª TURMA. Data da Publicação: DJe 24/08/2016, RSTJ vol. 243 p. 602.

[6] Recurso Cível Nº 71005809348, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Mara Lúcia Coccaro Martins Facchini, Julgado em 31/03/2016.

[7] Recurso Cível Nº 71004479119, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Lucas Maltez Kachny, Julgado em 22/04/2014.

[8] STJ. REsp 984106 / SC. Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. 4º TURMA. Data da Publicação: DJe 20/11/2012 – RSTJ vol. 229 p. 462


Informações Sobre o Autor

Felipe Caputti Teixeira

Consultor Jurídico. Especialista em Direito Público e Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes Centro/RJ


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