Traficários urbanos: tráfico e uso de drogas sob a lei e na cidade

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Resumo: A prática simultânea do uso e tráfico de drogas no espaço urbano apresenta contornos e características próprias. A aplicação da Lei de Drogas de forma direta e irrestrita à margem do conhecimento dos elementos urbanos que permeiam a vida social deixa de atender aos ditames da Constituição e se afasta do bem comum no tratamento da resposta do Estado aos cidadãos. O conhecimento interdisciplinar das características da vida urbana e do desenvolvimento social permite diferenciar os grupos e indivíduos que se relacionam com a questão das drogas. A pesquisa é essencialmente bibliográfica, tendo como fontes secundárias estudos, artigos e publicações periódicas relacionadas ao tema, utilizando-se do método teórico dedutivo, em abordagem qualitativa.

Palavras-chave: Tráfico e uso de drogas. Violência Urbana. Direito Penal. Criminologia.

Sumário: 1. Introdução 2. Traficários sob a Lei 3. Traficários urbanos 3.1. Traficários de galera 3.2. Traficários do crack 4. Metodologia 5. Resultados 6. Conclusões. Referências.

1. INTRODUÇÃO

A questão das drogas ilícitas sempre atraiu o interesse social e, por conseguinte a produção acadêmica e científica a respeito aborda os mais variados aspectos do tema. Desde a evolução dos processos químicos de composição dos elementos resultantes das substâncias consideradas como drogas ilícitas até o direcionamento político dos estados nas guerras às drogas, tem-se que o tema evoca paixão e razão.

O presente esforço acadêmico busca pensar além das obviedades, sem afastar-se dos fundamentos sólidos de construção teórica que já guarnecem o tema.

Para tanto, destaca-se que a produção de conhecimento social a respeito das drogas ilícitas se encontra direcionada ora ao usuário, ora ao traficante.

No primeiro caso, buscando conhecer as circunstâncias biológicas relacionadas ao tratamento dos efeitos gerados pelas drogas no corpo humano ou às maneiras de fazer cessar os processos químicos destinados ao abuso das substâncias. No segundo caso, tratando sobretudo das questões de enfrentamento e repressão às organizações criminosas que tem o tráfico de drogas como elemento central.

A pesquisa que ora se apresenta intenciona romper com a dicotomia apresentada, trazendo à luz novo elemento resultante da prática simultânea de uso e tráfico de drogas no contexto urbano, quem doravante se denomina de traficário.

Ainda, dentro do mesmo elemento de condutas simultâneas, há que se tratar de forma específica as circunstâncias nos quais se envolvem tais indivíduos, e assim, buscar as condições de tratamento que permitem distingui-los entre si.

O estudo e aprofundamento do novo elemento se torna relevante na medida em que a resposta estatal atualmente em vigor no ordenamento jurídico brasileiro é bastante firme na diferenciação clara de tratamento entre o usuário e traficante de drogas, deixando de considerar outras formas de existência na vida urbana que contemplam relações sociais complexas, nas quais o uso e o tráfico de drogas coexistem em vias não contempladas na forma da lei.

2. TRAFICÁRIOS SOB A LEI.

O paradigma moderno de aplicação do ordenamento jurídico brasileiro no tocante à questão das drogas ilícitas se encontra disposto nos termos da Lei 11.343/06, o que indica mais de 10 anos de vigência normativa.

Nos dizeres de MENDES de PAIVA (2017), durante esse período, poucos atos normativos foram tão avaliados, questionados e contestados judicialmente. Assim, o que há ainda por se investigar?

A Lei de Drogas pode ser analisada por sua técnica legislativa, pelas suas inovações processuais ou pelos seus aspectos dogmáticos. Porém, se quisermos efetivamente compreender qual foi o seu papel na sociedade brasileira, temos que olhar para os presídios, para as organizações criminosas, para os autos de resistência, para os índices de consumo. Temos que reconhecer que a lei se propôs a alcançar determinados resultados e que, se eles não chegaram, já é hora de buscar alternativas (MENDES de PAIVA, 2017).

Por certo que os questionamentos à aplicabilidade da norma estão postos aos olhos da sociedade: superencarceramento, fortalecimento das organizações criminosas a partir dos presídios, mazelas sociais causadas pelo abuso de substâncias.

De todo modo, o fenômeno de recrudescimento de penas ao uso de drogas ilícitas não é próprio da realidade nacional. No contexto político de guerra às drogas, no ano de 1988, tem-se que a Convenção da ONU contra o tráfico ilícito de drogas [1]representou uma autorização tácita para o aumento de penas relacionadas ao tema.

De todo modo, o evidente esforço legislativo proposto pela Lei 11.343/06 se deu na tentativa de diferenciar as abordagens destinadas ao usuário de drogas, a ele destinando o tratamento ambulatorial, do traficante de drogas, tratado sem reservas como verdadeiro inimigo público, a quem se nega os benefícios legais (indulto, graça e anistia).

Ocorre que, passados mais de dez anos de vigência da norma em comento, o estado social e o desenvolvimento urbano tornaram o contexto de aplicação da lei cada vez mais distante da realidade.

Com maior desafio se revela o quadro de amálgama entre a conduta de uso e tráfico de drogas, verificado no comportamento de diversos grupos sociais e de indivíduos que se inserem no contexto das cidades, cujas características inclinam a análise jurídica para elementos quase sempre encontrados fora do contexto dos autos processuais.

Da análise da Lei de Drogas, todavia, pode-se perceber singelos pontos de intersecção entre as condutas de tráfico e uso, na medida em que se propõe e tipificação no art. 33, §3º: Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem. Tendo ainda o célebre dispositivo do art. 35 inscrito o crime de associação ao tráfico, na forma que segue: Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta Lei.

Contudo, diante da realidade urbana que passa a se demonstrar, há que se questionar a aplicação da norma e o tratamento das políticas públicas generalistas, os quais deixam de incidir sobre a vida na cidade de forma específica.

Ainda que se considere a conduta de traficante pura e simples aquele simultaneamente faz uso da droga que comercializa, estar-se-ia negando a complexidade de relações sociais que permeiam o ambiente urbano, utilizando-se da ultima ratio do Direito Penal para a resolução de problemas sociais relacionados ao desenvolvimento das políticas públicas.

Assim, dentro da concepção moderna do Direito Penal mínimo, cumpre também afirmar que a sanção estatal, sobretudo no campo penal, também demanda a verificação de suas motivações e a certeza de sua legitimidade democrática (FERRAJOLI, 2010).

De igual forma, em se tratando de consumo, embora compartilhado (conjunto), caracterizado pelo oferecimento eventual para pessoa que possui laços de afinidade, a condute é espécie de porte, inexistindo qualquer possibilidade de integrar modalidade de tráfico. Não parece correto, portanto, a qualificação desta conduta como tráfico privilegiado, conforme entendido por alguns segmentos da doutrina. Outrossim, a estrutura do tipo incriminador, em seus preceitos primários (conduta) e secundários (pena), descaracteriza qualquer possibilidade de qualificação do delito como hediondo.

A previsão do especial fim de agir (sem objetivo de lucro) reforça a tese exposta acerca da necessidade de interpretar as condutas previstas no caput do art. 33 da Lei de Drogas como direcionadas à mercancia, de forma a eliminar os espaços de ambiguidade e minimizar os efeitos perversos da lei (CARVALHO, 2016).

Tal medida, além de realizar a subsunção do fato à norma de modo legítimo, garante também a oferta de tratamento ambulatorial aos indivíduos vulneráveis, a despeito da inserção no contexto da violência urbana.

3. TRAFICÁRIOS URBANOS

Em outro prisma, a presença do tráfico e uso de drogas nas cidades também está relacionada aos conflitos maiores de divisão de classes e da luta pelo reconhecimento. Os atores protagonistas da relação de consumo e da cadeia de vendas das substâncias ilícitas também polarizam as condições de resposta estatal.

Assim, dentro do contexto urbano, a resposta do Estado à questão das drogas é adaptável ao cardápio das circunstâncias econômicas e sociais de cada indivíduo. Com maior gravidade, a análise de conduta é efetivada em primeiro plano pela autoridade policial, sem participação jurisdicional, apreciando-se de forma incipiente questão complexa.

Não se quer aqui inventar a roda. A realidade desigual que envolve a questão das drogas já se encontra descrita em inúmeros trabalhos científicos. Todavia, o elemento que ora se aponta está inserido dentro do contexto das cidades e indica conduta naturalística de resultado ainda questionável dentro do ordenamento jurídico.

No campo sociológico, tem-se que para se compreender porque existem classes positivamente privilegiadas, por um lado, e classes negativamente privilegiadas, por outro, é necessário se perceber, portanto, como os “capitais impessoais” que constituem toda hierarquia social e permitem a reprodução da sociedade moderna, o capital cultural e o capital econômico, são também diferencialmente apropriados. O capital cultural, sob a forma de conhecimento técnico e escolar, é fundamental para a reprodução tanto do mercado quanto do Estado modernos. É essa circunstância que torna as “classes médias”, que se constituem histórica e precisamente pela apropriação diferencial do capital cultural, em uma das classes dominantes desse tipo de sociedade. A classe alta se caracteriza pela apropriação, em grande parte pela herança de sangue, de capital econômico, ainda que alguma porção de capital cultural esteja sempre presente (SOUZA, 2009).

Neste âmbito, quando a abordagem policial é direcionada aos jovens de classe média, portanto grandes quantidades de drogas dentro de veículo de luxo ou em boates da moda, a interpretação da Lei é quase sempre a favor da configuração do uso de drogas, a despeito dos elementos passíveis de tipificação do crime de tráfico de drogas.

Ao contrário, quando o objeto da abordagem é o grupamento de jovens pobres, em região da periferia da cidade, o crime de tráfico é quase que automaticamente configurado ao menor indício legal, seja pela quantidade de droga ou pela presença de pequena quantidade de dinheiro com os envolvidos.

Assim, o capital imaterial é possível de ser identificado na medida em que o uso permitido pela Lei, segundo a abordagem dada pelo Estado, é aquele recreativo destinado aos jovens portadores não somente do poder econômico, mas do modus vivendi necessário à diferenciação dos demais indivíduos, onde o local e o modo de usar a droga importam até mais do que o poder econômico de ocasião.

Em outro prisma, é marcante a influência do crime organizado no condicionamento das políticas públicas, onde o tráfico concorre com o Estado na assistência e organização do espaço urbano, criando as condições necessárias para que o crime se apresente como uma escolha possível de conduta (TANGERINO, 2009).

Com destaque, a desorganização do espaço urbano contribui para o fomento da fragmentação de condutas e enfrentamento da ordem. Os traficários, neste sentido, se compreendem por sujeitos amorais, participantes da desorganização social e frequentemente objeto do controle social.

A amoralidade entendida como a incapacidade de compor o grupo social e o desconhecimento das regras sociais impostas em caráter geral na família. A desorganização social, por seu turno, observada a partir da ausência de identidade e na impossibilidade de transmitir os valores e impor condutas. (TANGERINO, 2009).

Portanto, dentro desta realidade, inscrevem-se várias existências de traficários urbanos, os quais demandam o aprofundamento da análise criminológica e a consequente repercussão no tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico, sob pena de esvaziamento dos conceitos democráticos.

3.1. TRAFICÁRIOS DE GALERA

Com relevo pode-se observar a formação das condutas de consumo compartilhado e figuras típicas de tráfico de drogas nas formações dos grupos de jovens popularmente denominados de galeras.

Dentro destes grupos, o uso de drogas também busca legitimar o comportamento desviante, bem assim como integra a esfera da busca pelo pertencimento dos jovens das classes vulneráveis, na medida em que estabelece o território coletivo de atuação e o espaço de expansão da atividade cultural (DIÓGENES, 1998).

Nas galeras, ausente a autoridade do líder, o comportamento é de enxame, onde ao sair do território vale a consciência do coletivo, da tribo. A individualidade, por seu turno, é exercida dentro do grupamento.

Assim, tais formações sociais produzem de igual forma o elemento traficário, talvez até com maior destaque, na medida em que o consumo de drogas ilícitas compartilhado, associado ao enfrentamento do poder policial, figuram como o rito de passagem dos jovens integrantes das galeras.

O consumo de drogas ilícitas não pode deixar de ser observado sob o papel de conduta desviante, assim compreendida sob a ótica de Becker, 2009, quem pioneiramente rompe com a estrutura da teoria sociológica clássica e aponta diretamente as falhas do sistema de justiça criminal, descrevendo sucintamente o elemento outsider, o qual também guarda relação com o tipo de conduta objeto deste artigo.

Para tanto, a partir da compreensão de desvio, sob o ponto de vista de outsider, o paralelo de aceitação e confrontação é perfeitamente aplicável aos traficários urbanos, os quais adotam o comportamento desviante também em manifestação de enfrentamento da ordem estabelecida, na qual se encontram inseridos apenas dentro do sistema de repressivo estatal.

Notadamente, resta presente na análise do comportamento das galeras o maniqueísmo ideológico que visualiza a oposição entre o cidadão e o bandido, o qual objetiva a normalização social pela repressão direta aos movimentos de galera, inclusive pela supressão de suas manifestações culturais, sendo o hip hop uma das mais evidentes (DIÓGENES, 1998).

Aliás, no tocante à expressão da musicalidade dos integrantes das galeras e gangues, geralmente de conteúdo contestador e marginal como os ditos “proibidões”, denota-se que o enfrentamento não pode ser um pretexto para a criminalização dos pobres, só porque seus personagens são infratores da fracassada guerra contra as drogas. Pelo contrário, entender e conhecer as múltiplas visões que envolvem esta cultura poderia ser uma tarefa apta a contribuir para a formação de políticas públicas mais eficazes e menos repressivas (BATISTA, 2013).

Portanto, dentro das formações das galeras também é possível de se visualizar as condutas simultâneas de tráfico e uso de drogas em situação extraordinária, os quais desafiam a estrutura do ordenamento jurídico vigente e se diferenciam das características genéricas associadas ao consumo de drogas.

3.2. TRAFICÁRIOS DO CRACK

Dentro do destaque da vulnerabilidade, assim entendida como a capacidade de se autodeterminar, tem-se o fenômeno dos indivíduos que buscam a manutenção da sua identidade nos centros popularmente conhecidos como cracolândias.

Ali, utilizam-se da ampla oferta de drogas, sobretudo o crack, para consumir livremente e, ocasionalmente, comercializar o produto e os meios necessários ao consumo.

Com seriedade e profundidade, as ciências sociais vêm investigando o caminho de vida de tais indivíduos, valendo-se por hora da preciosa lição do Professor Marcelo Mayora, em publicação organizada pelo Professor Jessé Souza.

Sobre a vida dos traficários do crack, diz-se que na trajetória de vida na rua existem períodos de institucionalização, em serviços de assistência social (abrigos e clínicas) e no cárcere. Os moradores de rua também contratam aluguéis precários, em quartos de hotel e em peças, locadas, geralmente, em espaços próximos aos depósitos de lixo reciclável no qual guardam seus “carrinhos” (para os quais servem de tração), muitas vezes também alugados. Além disso, os sujeitos que ainda possuem algum contato familiar por vezes voltam para casa, para curtas temporadas regenerativas, que não raro terminam com algum tipo de desavença. Essas temporadas são encaradas pela ideia de “dar um tempo” e não deslocam a centralidade da rua na organização da existência. É possível perceber que há uma relação de continuidade entre a rua, o abrigo, a prisão, os aluguéis precários e a casa na qual habita algum familiar ou conhecido. Grande parte dos sujeitos entrevistados caminha de um lugar para o outro, conforme os problemas imediatos que precisam enfrentar (MAYORA, 2016).

Neste diapasão, a tipificação jurídica do art. 33 da Lei de Drogas é de fácil acepção, uma vez que se incorre frequentemente nas condutas típicas de portar, ter consigo, ter em depósito, todas passíveis de punição como tráfico de drogas.

Ocorre que tais modalidades estão umbilicalmente relacionadas ao abuso no uso das substâncias ilícitas, tendo como característica o consumo próprio.

Se em A ralé brasileira foi possível verificar que os subcidadãos só podem ser explorados enquanto corpo em atividades desqualificadas, aqui essa questão chega a limites extremos. Os usuários de crack moradores de rua não podem mais sequer submeter-se à exploração nos trabalhos desqualificados tradicionalmente exercidos pela “ralé”, por motivos que passam pela dificuldade em manter uma rotina de trabalho e descanso, pela impossibilidade de manter a higiene pessoal, por não ter nenhum documento e por estarem marcados por antecedentes criminais (MAYORA, 2016).

Não é preciso muito para que sejam abordados pela polícia. Estigmatizados, estão sempre em “atitude suspeita”. Além de o próprio consumo de droga habilitar a abordagem policial, outras atividades que exercem (lavar ou cuidar de carros na rua, por exemplo) situam-se na fronteira daquilo que é considerado lícito ou ilícito, e, não raro, a classe média protesta contra o abuso dos miseráveis que lhes demandam algumas moedas. Raul foi preso enquanto vendia maconha no Parque Harmonia. Em junho do ano passado teve mais sorte. Enquanto os estudantes marchavam pela Avenida Borges de Medeiros, reivindicando o passe livre, ele e seu irmão estavam no viaduto em que costumavam dormir desde pequenos e tinham outros interesses, travavam outra luta. O passe livre não lhes importava tanto, não tinham mesmo para onde ir. “Quando o cara tá aqui a nada, de bobeira, o que vai restar pro cara? Tem um monte de gente, de bobeira, olha, que que dá pra ti fazer?” Então roubaram dois celulares Galaxy. Na sequência venderam os celulares, trezentos reais cada um. E depois? “Daí, fomos numa boate, onde passa o viaduto, torrar o dinheiro, fumar um crack, pegamos duas gurias, cada uma cem pila e o resto na pedra. O tráfico também é sempre uma atividade possível. São, na verdade, “meros serviçais do narcotráfico”, a ponta mais fraca da economia clandestina das drogas. Seu lucro é baixo e os riscos grandes. A boca ficava ao lado da casa da infância de Claiton, que traficava por dois ou três meses, parava, voltava, e assim por diante: “O foco é o tráfico, não adianta. O cara pensa que ganha dinheiro fácil, mas tem prejuízo, grande” (MAYORA, 2016).

Assim, firme na profundidade dos estudos sociológicos citados, há que se diferenciar a conduta de uso e tráfico de drogas simultâneos dentro do contexto da vulnerabilidade extrema presente nos espaços urbanos conhecidos como cracolândias.

Notadamente, a aplicação de sanção alternativa e a disponibilidade de tratamentos ambulatoriais ofertadas aos usuários de drogas lícitas deve estar igualmente associada à resposta Estatal relacionada aos traficários do crack, sob pena de manutenção da invisibilidade e do agravamento das condições de vida e saúde nas cidades.

4. METODOLOGIA

A pesquisa é essencialmente bibliográfica. Para análise do contexto legislativo foram elencados os textos legais atualmente em vigência, sobretudo a Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), a qual disciplina em grande monta as situações abordadas no artigo. No tocante ao espaço urbano e suas características, o trabalho do Professor Jessé Souza no livro A Ralé Brasileira e a tese da Professora Glória Diógenes em Cartografia da Violência, foram essenciais para a delimitação do tema.

Como fontes secundárias, buscou-se as recentes publicações relacionadas ao estudo da Criminologia no Brasil, como os periódicos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.

Durante o esforço investigatório, buscou-se a conciliação interdisciplinar entre os institutos da sociologia, filosofia e antropologia, para além das concepções diretas do sistema jurídico positivo.

Neste sentido o trabalho se orienta pelo método teórico dedutivo, de abordagem qualitativa, eis que objetiva compreender a realidade social em confronto com as normas jurídicas aplicadas.

5. RESULTADOS

A resultante do esforço de pesquisa leva ao raciocínio de que o concurso de ações individuais de uso e tráfico de drogas no contexto urbano é ainda tratado de forma incipiente pelo ordenamento jurídico, somando-se tais grupos de indivíduos vulneráveis à massa de invisíveis sociais esquecidos pelo Poder público.

A tipificação penal estabelecida na forma do art. 33 da Lei de Drogas é passível de aplicação genérica e desproporcional nos meios sociais diversos, o que demanda a análise interdisciplinar da questão, exigindo o resgate da motivação clara e da legitimidade democrático do caráter sancionatório penal.

De igual forma, a simultaneidade das condutas aferidas acima também encontra especificidades dentro dos grupamentos sociais que habitam as cidades, seja por classe social ou por motivação individual.

Neste sentido, o aprofundamento e categorização do elemento abordado resultam em novo paradigma a ser considerado pelos pesquisadores que abordam o tema, bem assim como pelos legisladores e agentes políticos responsáveis pela abordagem estatal do problema das drogas ilícitas.

A diferenciação requerida representa desafio complementar à tarefa já complexa de distinção entre usuário e traficante de drogas.

6. DISCUSSÃO

Assim, a aplicabilidade da norma jurídica introduzida pela Lei de Drogas em 2006 encontra severos questionamentos quando confrontada com a realidade social encontrada nos aglomerados urbanos.

Inicialmente, pondera-se que o uso de drogas ilícitas assume contornos característicos cada vez mais distintos, afastando-se das circunstâncias elencadas na forma do art. 28 da referida Lei.

Ainda, os agrupamentos sociais urbanos por vezes se imiscuem em atividade análoga às ações de organizações reconhecidamente criminosas, como reunião, compra e venda de drogas ilícitas e enfrentamento da força policial.

Desta forma, a aplicação genérica de norma jurídica vigente diante de casos e situações tão diversos entre si contraria os fundamentos constitucionais que devem orientar o ordenamento jurídico brasileiro e valida critérios não-escritos de exclusão social.

Neste contexto, a incursão da norma frente ao fato social apenas legitima a violência dos grupos urbanos ora destacados, os quais se valem, como dito outrora, do enfrentamento com o Poder Público para a conquista do lugar social no imaginário da população.

CONCLUSÃO

Daquilo que se propôs a investigação, tem-se que a questão das drogas permanece ativa na introdução de novos conceitos e questionamentos sociais, sobretudo diante do enfraquecimento dos fundamentos legislativos que norteiam o ordenamento jurídico nacional.

O tratamento desigual dispensado aos indivíduos de diferentes classes sociais também é observável dentro do contexto urbano, o qual acresce outras circunstâncias e elementos à complexa tarefa de distinguir usuários de traficantes de drogas ilícitas.

Portanto, a resposta estatal há que realizar uma nova sintonia com os elementos interdisciplinares que já se encontram a disposição para garantir sua legitimidade democrática e aumentar a eficiência no tratamento da questão das drogas.

O afastamento do Direito Penal e o aprofundamento do tratamento sanitária aos elementos envolvidos com drogas ilícitas se demonstra o meio racional e responsável capaz de efetuar com diligência a intervenção do Estado.

Assim, a conduta simultânea de uso e tráfico de drogas, na categoria que aqui se denomina de traficário, representa um desafio a mais para a investigação acadêmica e há que ser observada por vários aspectos científicos, uma vez que a generalização legal obsta a visualização de diversas realidades e existências do contexto urbano que se buscou evidenciar.

 

Referências
BATISTA, Nilo. Sobre a criminalização do funk carioca. In: Batista, Carlos Bruce. Tamborzão, olhares sobre a criminalização do funk: criminologia de cordel 2. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p.202.
BECKER, Howard. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. São Paulo. Editora Jorge Zahar, 2009.
BRASIL.Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União,Brasília, DF, n. 191-A, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Acesso em: 06 maio 2017.
BRASIL. Lei 11.343. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 06 maio 2017.
BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (InfoPen), junho de 2014. Ministério da Justiça: Brasília, 2015. Disponívelem:<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/11/080f04f01dbcf06d050d
c4.pdf . Acesso em: 20 mar. 2017.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06 – 8ª Edição – São Paulo: Saraiva, 2016.
DIÓGENES, Glória Maria dos Santos. Cartografia da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/. Acesso em 05.05.2017.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
MAYORA, Marcelo in: Crack e Exclusão Social. Ministério da Justiça: Brasília, 2016.
MENDES de PAIVA, Luiz Guilhere. Lei de Drogas: uma proposta de avaliação. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Ano 25 – nº 294. São Paulo, maio 2017.
SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira. Quem é e como vive. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2009.
TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e Cidade. Violência Urbana e Escola de Chicago. São Paulo. Lúmen Juris, 2009.
 
Notas
[1] UNITED NATIONS, 1988 UN Convention against Illict Traffic in Narcotic drugas and Psychotropic Substances, art. 3. 4 (a).


Informações Sobre o Autor

Messi Elmer Vasconcelos Castro

Mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos pela Universidade Estadual do Amazonas e Defensor Público do Estado


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