Revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor: o contrato como instrumento de solidariedade social

Resumo: O estudo pretende examinar os fundamentos do direito à revisão na construção de uma nova teoria contratual, voltada ao âmbito consumerista, pautada no alcance da justiça, equidade e equilíbrio das relações negociais. São analisadas as teorias da imprevisão, da onerosidade excessiva e da quebra da base do negócio jurídico. Além disso, busca compreender a atribuição do juiz em intervir na economia do contrato, para manter as suas bases objetivas, garantindo eficácia e utilidade à avença. Analisam-se, em pormenor, tanto a revisão decorrente de causas contemporâneas à formação do contrato, como de fatores supervenientes e que tornam as prestações excessivamente onerosas ao consumidor. Por fim, apresentam-se conclusões acerca da postura protetiva da legislação consumerista, de modo a subverter a lógica histórica de resolução do pacto, conservando-o, para consagrar o contrato enquanto instrumento de solidariedade social.[1]

Palavras-Chave: Direito do Consumidor. Código de Defesa do Consumidor. Revisão contratual. Equilíbrio contratual. Boa-fé.

Resumen: El estudio tiene como objetivo examinar los fundamentos del derecho a la revisión en la construcción de una nueva teoría del contracto, basado en el alcance de la justicia, la equidad y de equilibrio de las relaciones comerciales. En este orden de ideas, es fijada el análisis de la teoría de la imprevisión, la teoría de la carga excesiva y la teoría del rompimiento de la base del negocio jurídico. Por otra parte, el artículo trata de comprender la asignación de un juez para intervenir en el ahorro de contrato para mantener su base objetiva, garantizar la eficacia y la utilidad de la alianza. La modificación y la revisión contractual son analizados, tanto en lo que se refiere a la revisión resultante de causas contemporáneas de la formación de contrato, como factores sobrevenidas que lo hacen excesivamente costoso para el consumidor. Por fin, los resultados serán presentados destinados a elevar la postura de la legislación protectora de consumo, de manera a subvertir la lógica de la resolución del pacto, manteniéndolo, para consagrar el contrato mientras instrumento de la solidaridad social.

Palabras-clave: Derecho del consumidor. Código de Protección y Defensa del Consumidor. Revisión del contrato. Equilibro contractual. Buena fe.

Sumário: Introdução. 1. Evolução do direito contratual: bases históricas e teóricas sobre equilíbrio e revisão. 1.1. Teoria da imprevisão. 1.2. Teoria da onerosidade excessiva. 1.3. Teoria da quebra da base do negócio jurídico. 2. Intervenção judicial para garantia da revisão contratual e defesa do consumidor. 3. Modificação e revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor. 3.1. Revisão contratual por causa contemporânea à formação do contrato: modificação de cláusulas contratuais por lesão enorme. 3.1.1. Jurisprudência nos Tribunais: paradigmas da revisão contratual em razão de causa contemporânea à formação do contrato. 3.2. Revisão contratual por causa superveniente à formação do contrato: revisão de cláusulas contratuais por quebra da base do negócio jurídico. 3.2.1. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: paradigmas da revisão contratual em razão de quebra da base do negócio jurídico.  Considerações finais. Referências.

Introdução

Na visão contratual clássica, a autonomia da vontade é alçada a elemento fundamental do contrato, responsável por conceber um vínculo entre os contratantes, do qual emanam direitos e deveres, pelo que se passou a considerar o contrato lei entre as partes.

Como consequência da construção filosófica de Estado Liberal, há o reconhecimento da igualdade e da rematada liberdade entre as partes, enquanto reflexo da liberdade de contratar e da separação entre os conceitos de Estado e sociedade.

Entretanto, esta ficção engendrada sob o binômio igualdade-liberdade se manifestou insuficiente em face do desenvolvimento tecnológico, científico e industrial do século XX, posto que enquanto se imaginava o equilíbrio econômico e contratual como corolário da igualdade e da liberdade, o que se verificou foi o contrário. Assim, a liberdade importava em opressão do forte sobre o fraco, por desequilíbrio econômico dos contratantes, que não se apresentavam em patamar de igualdade real.

O advento da sociedade de consumo, da produção e distribuição em massa de bens e serviços conduziu à revisão dos paradigmas da disciplina jurídica dos contratos, assimilando novas ideias para dirimir a opressão do mais forte sobre o mais fraco, a fim de conferir igualdade substancial e efetiva liberdade de contratar.

A partir desta nova concepção, inicia-se a estruturação de uma nova teoria contratual cujos filtros axiológicos estão voltados aos princípios da equidade e da boa-fé. Dessa forma, rompido o equilíbrio econômico da relação de consumo, esta restaria desigual, com vantagem excessiva ao fornecedor e enorme onerosidade ao consumidor, demandando o exercício da jurisdição para atuar na defesa do vulnerável, com vistas a restaurar o equilíbrio contratual e, substancialmente, com sua atuação, dirigir a proteção contratual, quando imprescindível.

Neste contexto de superação da ficção jurídica de “perfeita igualdade e absoluta liberdade” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 89) e de revisão dos valores e princípios regentes da disciplina contratual, é desenvolvido, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei nº 8.078/1990.

Destarte, em homenagem à nova concepção contratual estruturada na proteção ao consumidor contra o ônus não razoável e à vantagem excessiva do fornecedor de produtos e serviços, o presente artigo visa perquirir análise da garantia de revisão das cláusulas contratuais em razão de onerosidade excessiva no âmbito do CDC, por meio do apontamento das particularidades teóricas que viabilizam a consagração da boa-fé e do equilíbrio (art. 4º, III, CDC), da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC), da isonomia (art. 5º, caput, CF), e de sua teleologia, o princípio da preservação do contrato de consumo.

Em específico, assinalar-se-ão os contornos teóricos das garantias instituídas pelo art. 6º, inciso V, do CDC, em especial, ao direito de modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou revisão das cláusulas contratuais em virtude de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, com vistas à compreensão do novo paradigma de revisão judicial dos contratos no âmbito do direito civil-constitucional.

Além disso, conceituar e caracterizar o sentido de revisão contratual em razão de onerosidade excessiva, identificando os traços basilares da teoria, com vistas a apurar sua origem, influências e aplicações; apresentar descritivamente seus aspectos positivos e negativos, em relação à finalidade jurídico-social que pretende alcançar; analisar as contribuições da doutrina e jurisprudência brasileiras, com influência italiana e alemã para a dinamicidade da alteração contratual, bem como delinear o modelo de revisão contratual devido a onerosidade excessiva adotado pelo CDC, diferenciando-o da regra da cláusula rebus sic stantibus, qual seja, a Teoria da Imprevisão, adotada pelo CC de 2002; apurar a extensão e a influência dos mecanismos da teoria de revisão consumerista para o efetivo cumprimento dos negócios jurídicos, por intermédio de levantamento empírico acerca da aplicação objetiva desta modalidade de revisão pelos Tribunais Superiores, com ênfase em acórdãos paradigmáticos do Superior Tribunal de Justiça. Por fim, apurar a consolidação e a importância da Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico no direito brasileiro, com destaque à disciplina do CDC, que conferiu novo alento à teoria contratual e contribuiu para a consagração da boa-fé e da função social do contrato, a fim de instrumentalizar a realização da justiça social mediante a observância do princípio da conservação dos contratos de consumo.

Com propósito de deslindar os objetivos supracitados, adota-se o método dedutivo, com preeminência da pesquisa bibliográfica em doutrina nacional, inclusive aquela de influência italiana e alemã, a fim de obter conclusão a respeito das premissas mencionadas, fazendo-se uso da técnica de análise textual, temática e interpretativa.

Outrossim, privilegia-se a pesquisa jurisprudencial, empregada como diretiva na análise atenta  dos acórdãos dos Tribunais de Justiça e Tribunais Superiores em relação à temática, em especial, do Superior Tribunal de Justiça, apontando os casos paradigmas de incontestável relevância acerca da revisão judicial por onerosidade excessiva nos contratos lastreados pelo CDC.

1. Evolução do direito contratual: Bases históricas e teóricas sobre equilíbrio e revisão

A recente teoria contratual desenvolveu uma nova concepção de equilíbrio mínimo das relações contratuais. Com a gênese do CDC, verifica-se maior preocupação com o sinalagma, isto é, o liame final que advém da vontade das partes e nos moldes da lei, e, por conseguinte, com o domínio do equilíbrio, do conteúdo e da equidade. Desse modo, houve significativo avanço no campo do direito obrigacional no âmbito do desequilíbrio das prestações em decorrência de onerosidade excessiva, no sentido de proporcionar um giro valorativo no ordenamento jurídico, abarcando a preocupação com a justiça comutativa e o princípio da equidade, que passaram a revigorar a concepção de lesão (MARQUES, 2011, p. 288).

Nesse diapasão, a proteção dos interesses econômicos do consumidor, parte hipossuficiente do negócio jurídico diante do novo arquétipo adotado no CDC, é, a rigor, a influência dos princípios da confiança e da boa-fé fixados no enleio deste código, e não da lesão, visto que a pretensão deve ser o reequilíbrio absoluto da relação, a fim de assegurar as legítimas expectativas das partes e proteger o tratamento leal e digno.

Nesta esteira, de consagração dos novos paradigmas trazidos pelo CDC, aponta-se que:

“a proteção contratual no CDC está baseada nos princípios da transparência, da boa-fé e da equidade. As partes devem atuar na relação de consumo com sinceridade, lealdade, seriedade e veracidade. Mas também deve haver equilíbrio na prestação incumbida a cada parte” (ALMEIDA, 2005, p. 238).

No domínio do direito alemão, a noção de equilíbrio contratual adveio de desenvolvimento jurisprudencial, que passou a incluí-la no princípio da boa-fé, nos deveres de segurança, confiança e lealdade do tráfico jurídico, tendo em vista que o §9º da ABGB da Alemanha, hoje contido no §307 do BGB, nada afirma sobre o equilíbrio contratual. No direito brasileiro, por sua vez, é corrente o entrelaçamento entre a concepção de boa-fé e os efeitos externos da relação contratual e a de lesão com a perspectiva interna do equilíbrio contratual.

Combate-se esta visão, de modo que: “a boa-fé autoriza e mesmo obriga a este olhar interno do contrato, do relacionamento contratual como um todo, impondo novos deveres e novos limites aos que ocupam as posições contratuais, de forma a permitir a realização das expectativas legítimas” (MARQUES, 2011, p. 289).

Assim, ao vislumbrar, sob a égide do princípio da boa-fé objetiva, a obrigação como um conglobado de direitos e deveres no decurso temporal e ao tratar o desequilíbrio como abuso, engrandece-se o equilíbrio contratual. Deste modo, quaisquer indicativos de abuso, em prejuízo do consumidor, exigem imediata ação enérgica de readaptação do novo direito contratual em sua visão social, que na seara consumerista acompanha a noção de “desvantagem irrazoável”, como é ratificado a seguir:

“Protegem-se no Código o objetivo e o equilíbrio contratual, assim como se sanciona a onerosidade excessiva (art. 51, §1º, do CDC), revitalizando a importância da comutatividade das prestações, reprimindo excessos do individualismo e procurando a justa proporcionalidade de direitos e deveres, de conduta e de prestação, nos contratos sinalagmáticos” (MARQUES, 2011, p. 290).

Afastadas as circunstâncias que se configuram como riscos típicos contratuais, isto é, as expectativas legítimas, e que formam a base do negócio jurídico, restará caracterizada a quebra da base do negócio jurídico, fundamentada na boa-fé objetiva, ensejando a revisão substancial do acordo de vontades, com a finalidade de manter o vínculo, preservando-se o contrato e adaptando-se o vínculo contratual ao razoável e tolerável às partes em elementos centrais, quais sejam: “(…) se foi atingida a base do negócio, se ocorreu situação anormal, se a economia contratual foi afetada, se a situação adversa não é imputável ao contratante e, finalmente, se a contratação não imputou a uma das partes o ônus do evento futuro (…)” (ALMEIDA, 2005, p. 244).

Em vista disso, a melhor doutrina assevera que houve uma modificação ética na visão do direito civil brasileiro para consagrar a importância do controle judicial e administrativo, sobre os métodos e fundamentos do equilíbrio econômico do contrato, e promover a primazia da justiça contratual e da eficácia decorrente da lei, e não do poder da vontade de uns em detrimento do de outros.

A doutrina europeia tem se manifestado pela tendência jurídica alemã baseada no dever de cooperação da boa-fé e em um dever geral de renegociação nos contratos de longa duração. Parte de uma ideia de um dever de modificação de boa-fé desses contratos, sempre que aferida a quebra da base objetiva do negócio jurídico e a excessiva onerosidade que dela resulta. Com supedâneo na doutrina alemã, afirma-se que “haveria uma espécie de dever ipso iure de adaptação” ou “dever de renegociar o contrato” (MARQUES, 2011, p. 293).

Esta tendência é constatada no direito brasileiro e está positivada no CC e no CDC, cada qual guardando suas particularidades. Deve-se analisar a existência do dever de renegociação a favor do consumidor, subscrito no art. 6º, V, do CDC, que consigna o direito deste em requerer a revisão contratual em razão de onerosidade excessiva, antecipando-se a modificação e a cooperação para readaptação do contrato com base no princípio da boa-fé e do equilíbrio (art. 4º, III, do CDC), da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º I, do CDC) e do princípio constitucional máximo da isonomia (art. 5º, caput, da CF) (NUNES, 2008, p. 141).

O conceito de revisão aparece no sistema jurídico contratual como um “efeito de uma série de causas” (MIRAGEM, 2008, p. 127), de maneira que representa a reforma do conteúdo contratual tomada como medida excepcional ao princípio da obrigatoriedade, consubstanciado na pacta sunt servanda ou vinculatividade contratual.

A evolução do direito privado e o reconhecimento de uma gama de causas que admitissem a alteração do conteúdo contratual para restauração do equilíbrio entre as partes puderam resolver o grave impasse da inevitável existência de fatores que subvertiam a base original de formação do negócio e acarretavam graves ônus aos contratantes. De modo que a manutenção do contrato, nos termos originais, resultaria em efeitos perversos e antieconômicos, pelos quais não faria sentido mantê-lo nos termos avençados, tendo em vista que não se prestava mais às suas finalidades originárias.

1. 1. Teoria da imprevisão

Esta teoria tem advento marcado na Idade Média, quando surgiu pela denominação de cláusula rebus sic stantibus, cuja semântica é “estando assim as coisas” (BARLETTA, 2010, p. 210). A referida cláusula de influência italiana foi designada pela doutrina moderna como Teoria da Imprevisão, visto que se baseia na revisão contratual fundada na imprevisibilidade dos fatores supervenientes que suscitavam excessiva onerosidade para uma das partes do negócio jurídico, de maneira que é pressuposto da Teoria da Imprevisão o fato de que, na ocasião do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever os acontecimentos ocorridos (NUNES, 2008, p. 141).

No início do século XX, por esforço da doutrina e da jurisprudência francesas, prosperou a primeira teoria de revisão, a da imprevisão.

Como dito, a base teórica está fundada na exigência de um fato superveniente imprevisível, responsável por ocasionar a desproporção das prestações contratadas no momento da celebração da avença, por isto, rebus sic stantibus.

O paradigma do surgimento da teoria da imprevisão foi o notável caso da Companhia de Gás de Bordeaux, de 1916. Em apertada síntese, consiste em companhia que celebrara contrato com a cidade de Bordeaux, na França, para fornecimento de gás aos cidadãos locais, a preço previamente ajustado. No entanto, com o estopim da Primeira Guerra Mundial, as zonas de fornecimento de carvão foram ocupadas pelos Estados beligerantes, o que dificultou o acesso à principal matéria-prima utilizada pela referida companhia, resultando em aumento substancial dos preços do minério. Assim, o preço inicialmente ajustado não mais tornava viável o empreendimento econômico, de modo que a companhia requereu ao Conselho de Estado da França a revisão contratual, para adequá-lo aos novos parâmetros, ante a imprevisibilidade dos acontecimentos e aos benefícios a serem auferidos com a conservação contratual (MIRAGEM, 2008, p. 127).

Este caso paradigmático deu azo ao reconhecimento da possibilidade de revisão contratual a diversos outros pactos havidos em prestações contínuas durante o período da Primeira Guerra Mundial, abrindo caminho à edição da Lei Faillot, de 1918, em função da imprevisibilidade dos eventos decorrentes de um conflito armado de grandes proporções.

Por conseguinte, à teoria da imprevisão, não basta a existência de um fato superveniente que imponha a desproporção das prestações, mas que este fato seja imprevisível às partes no momento da celebração contratual.

O cariz da imprevisibilidade, como se afigurou para efeitos da descrita teoria, é o atributo daquilo que não é possível aferir segundo padrões ordinários e nem mesmo pela adoção de comportamento dedicado, atento e leal. O imprevisível distingue-se do previsível, pois enquanto o imprevisível não permite identificar o acontecimento por antecipação, o previsível se caracteriza como “inerente ao risco normal do adimplemento ou não do contrato” (MIRAGEM, 2008, p. 128).

Esta é a teoria albergada pelo art. 317 do CC, como se verifica a seguir: “Quando por motivos imprevisíveis sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento da execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

Insta salientar que o dispositivo legal supracitado confere posição de destaque à imprevisibilidade (“momentos imprevisíveis”), demonstrando a importância da apreciação sobre a oportunidade de tomada de conhecimento ou não pelas partes das circunstâncias capazes de tornar a prestação onerosa para uma das partes.

1. 2. Teoria da onerosidade excessiva

De pronto, a teoria da imprevisão advém de uma inspiração canônica da cláusula rebus sic stantibus, utilizada amplamente pelo Conselho de Estado da França após a Primeira Guerra Mundial, para amparar diversas instituições e empresas que passaram por dificuldades econômicas, em virtude da desproporcionalidade entre as condições previamente definidas em contrato e as que se verificaram impraticáveis após o contexto da beligerância.

Todavia, a Teoria da Imprevisão foi alvo de críticas, pois, em diversas ocasiões, o arruinamento do equilíbrio contratual não se originava de fatos imprevisíveis, porém de situações que, embora pudessem ser previstas, não estavam ao alcance da avaliação das partes, que por algum motivo técnico e de aptidão não conseguiam prever eventos que pudessem alterar o curso do negócio jurídico.

Desponta, para mitigar as falhas da teoria precedente, a Teoria da Onerosidade Excessiva, de origem itálica, fixada expressamente no art. 1.476 do CC Italiano, em decorrência dos efeitos nefastos da Segunda Guerra Mundial à economia daquele país.

Esta teoria apóia-se na onerosidade, que ganha posição frente à apregoada insuficiente imprevisibilidade, nos termos em que era compreendida, como parâmetro suficiente de revisão judicial dos contratos. As críticas foram percebidas para deslocar a imprevisibilidade do fato do contrato para a consequência da avença, pois apenas as sequelas podem se revelar excessivamente onerosas e motivar a resolução ou revisão das cláusulas contratuais. Nessa linha, soma-se que:

“A imprevisibilidade não deve ser do fato no contrato, porque às vezes o fato imprevisível não é bem aquilatado, mas produz um impacto no contrato que rompe o seu equilíbrio. A revisão será possível sempre que ocorrer fato de conseqüência imprevisível” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 108).

Apesar disso, imperioso afirmar que os arts. 317 e 478, ambos do CC, possuem origem nas teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, atribuindo suporte legal à resolução contratual, mas por entender que quem pode o mais pode o menos, também à revisão de contratos cuja execução é de trato sucessivo.

1. 3. Teoria da quebra da base do negócio jurídico

No direito alemão, desponta a teoria da base do negócio jurídico, que preconiza a base objetiva do negócio como sendo as circunstâncias objetivamente necessárias à permanência existencial do contrato, sustentando a relativização da vontade para o qual fora concebido em sua forma original, adaptando-o às novas circunstâncias, de maneira a assegurar a sua validade e utilidade (LARENZ, 1997, p. 93-94).

No direito brasileiro, este parece ser o fundamento da revisão contratual por onerosidade excessiva no âmbito do CDC, posto que à distinção da solução apontada pelo direito civil, o direito do consumidor, sob a ótica de revisão enquanto direito subjetivo do vulnerável, confere previsão de revisão por fato superveniente que torna as prestações excessivamente onerosas, no entanto, de forma objetiva e diferenciada das exigências da lei civil (MIRAGEM, 2008, p. 128-129).

No CDC, a previsão normativa, alicerçada na teoria da base do negócio jurídico, posiciona-se no art. 6º, inciso V. O Código consumerista prescinde ao requisito da imprevisibilidade do fato superveniente, de modo que, construído para ser um Código entre desiguais, é congruente ao impedir cessão de riscos do negócio do fornecedor ao consumidor.

Deste modo, ínsito que o art. 6º, inciso V, do CDC, promove forte objetivação na avaliação do conhecimento da imprevisibilidade de acontecimentos do contrato de consumo pelas partes. O intuito é evitar o repasse dos riscos do negócio ao consumidor e também protegê-lo de quaisquer fatos supervenientes que venham a decompor a existência e a permanência objetivamente necessárias para que o negócio continue válido e útil aos contratantes.

Pelo exposto, a revisão contratual, em face da quebra da base do negócio jurídico, afeiçoa-se como decorrência da indispensabilidade da preservação da finalidade útil do contrato, da proteção do consumidor, com deferência ao princípio da conservação do contrato, impedindo-se a simples resolução do negócio, com intuito de fazer cumprir sua função social, lastreada na boa-fé e na confiança.

2. Intervenção judicial para garantia da revisão contratual e defesa do consumidor

A atuação do Poder Judiciário é fundamental para que seja possível conferir máxima efetividade ao sistema de proteção ao consumidor, em especial, com a aplicação do CDC em toda sua extensão.

Para tanto, mister que a função jurisdicional seja realizada por um Poder Judiciário equipado e dinâmico, preocupado com o equilíbrio, controle e efeitos dos contratos, a fim de transmitir com fidelidade o sentido da norma jurídica emanada pelo legislador e das decisões administrativas com reflexos na esfera consumerista.

Têm sido assertiva a jurisprudência ao evoluir no sentido de implementar a efetiva justiça social pela regulação dos pactos, assim que provocada para dizer sobre o controle e o equilíbrio contratuais, aplicando-se mecanismos de revisão judicial das cláusulas que entrem em conflito com a legislação em vigor, de modo que:

“O regime jurídico dos contratos mercantis que embasam relação de consumo mitiga o princípio da autonomia da vontade em favor de um prevalecente dirigismo contratual; admite-se, em consequência, a revisão judicial das cláusulas contratuais que colidam com as normas jurídicas em vigor” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 104).

O direito do consumidor reclama maior cautela, na medida em que se apercebe a sua utilidade para regulação de relações entre desiguais. Desta feita, nota-se a existência de dois pólos absolutamente distintos.

De uma perspectiva, há o consumidor, parte hipossuficiente e vulnerável que, na maioria das vezes, não possui conhecimento técnico, meios financeiros suficientes e nem mesmo a experiência adquirida nas barras dos tribunais, constituindo o que se denomina de “litigante habitual”. Lado outro, encontra-se o fornecedor, parte mais forte econômica e tecnicamente, dotado, em regra, de maior experiência no manejo do sistema jurídico contratual, caracterizado como “litigante profissional”.

Tratar o consumidor e o fornecedor como entes iguais, sob a ótica do sistema jurídico tradicional, seria, portanto, olvidar a equidade como componente essencial para a mantença da função social dos contratos.

A Constituição brasileira exige o dirigismo judicial na relação jurídica posta aos olhos da jurisdição, a fim de que se restabeleça a base do negócio jurídico à luz dos princípios e regras inscritos nos arts. 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, da CF (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 104-105), como se observa:

“Art. 5º, XXXII. O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Art. 170, V. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V – defesa do consumidor;”

A defesa do consumidor é consagrada na Constituição como princípio geral da ordem econômica, uma vez que se exige do contrato o cumprimento de uma dupla função. Isto é, a nova teoria contratual demanda que o contrato satisfaça a função econômica, baseada na liberdade e na autonomia da vontade como fontes obrigacionais precípuas, entretanto esposada à função social, cuja razão é racionalizar as riquezas em um patamar suficientemente necessário para suprir as expectativas legítimas de cada um dos contratantes.

Assim, se não houver a observância de seus fins, o contrato não haverá de cumprir os novos paradigmas do direito, em ofensa ao sistema de proteção e defesa do consumidor, não restando outra alternativa ao contratante habitual, hipossuficiente, senão a provocação da jurisdição estatal para dirimir os conflitos na órbita consumerista, nos seguintes moldes:

“A aplicação dessas normas pelo magistrado poderá ter lugar quer em concessão de tutela liminar satisfativa de direito, quer em sentença final, cabendo-lhe, determinar através de decisão determinativa, de conteúdo constitutivo-integrativo e mandamental as modificações contratuais que julgar necessárias para o estabelecimento, ou a reconstituição, da igualdade da contratação, primitivamente inexistente ou de ocorrência ulterior, colimando a obtenção de avença isonômica” (ALVIM, 1995, p. 67).

O magistrado, pois, terá o encargo sui generis de modificar ou revisar as cláusulas contratuais, cuja aplicação das normas poderá ocorrer antecipadamente, pela via da tutela provisória, ou em sentença final definitiva, de modo que em ambas poderá tomar todas as medidas de cautela para assegurar a obtenção do resultado prático perseguido pelos contratantes (ALVIM, 1995, p. 66-67).

3. Modificação e revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor

No plano do CDC, por previsão do art. 6º, inciso V, são previstas duas formas distintas de intervenção judicial nos contratos entre consumidor e fornecedor, quais sejam: (i) a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais; ou (ii) a revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

Insta salientar que tanto a modificação como a revisão apresentam cariz diferenciado, visto que se constituem não somente como garantia individual contratual, mas como direito básico do consumidor, que irradia o axioma da boa-fé, da função social do contrato e da possibilidade de reequilibrar o contrato, em detrimento de sua resolução.

Em relação à primeira situação, constituída na modificação das cláusulas contratuais, a jurisdição atua em virtude da existência de lesão ao tempo da formação do pacto obrigacional, ou seja, é caracterizada pela existência de cláusulas abusivas contemporâneas à formação do contrato.

No que concerne à segunda previsão legislativa, o exercício da jurisdição decorre de onerosidade excessiva e superveniente à formação do contrato. Estreme de dúvidas a validade das cláusulas contratuais, que são perfeitas quando da formação do vínculo contratual, todavia, em decorrência de fato posterior, o negócio jurídico perde o equilíbrio econômico e financeiro, exigindo-se a ação do Poder Judiciário para corrigir esta conjuntura anômala.

Em síntese, a revisão contratual tem proeminentemente o objetivo de restaurar o equilíbrio contratual, podendo ocorrer por dois motivos, quais sejam: quando as prestações excessivamente onerosas são inseridas no contrato no momento de sua formação; e quando fatores supervenientes à contratação tornarem as prestações excessivamente onerosas para uma das partes (BARLETTA, 2010, p. 209).

A nova disciplina contratual demanda a compreensão da negociação como um processo dinâmico, diferentemente do tratamento estático típico do tradicional regime obrigacional, posto que a velocidade dos fenômenos decorrentes das relações sociais jurídicas hodiernas não permite mais ao direito assumir a vetusta postura, visto que incompatível com as necessidades da pós-modernidade, que carece de “mobilidade e maleabilidade ao sistema protetivo” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 209).

Assim, a nova matriz principiológica busca ascender a pessoa humana como o centro do negócio jurídico, de modo a promovê-lo cumprindo sua função social. Para tanto, basilar que o Poder Judiciário intervenha em situações excepcionais para restabelecer o equilíbrio contratual, como é ilustrado:

“No âmbito do regramento geral dos contratos, o sistema protetivo do consumidor está estruturado sobre os princípios da equidade, da boa-fé e da função social do contrato, dos quais decorrem os que vedam a lesão e o enriquecimento indevido, tudo como corolário do resgate da dignidade da pessoa humana. Na relação contratual, portanto, deve imperar a harmonia de interesses, o equilíbrio entre as prestações, nem que, para isso, deva intervir o Estado” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 90).

O direito brasileiro coíbe o abuso de direito, a lesão e o enriquecimento sem causa, de modo que a intenção da norma jurídica é de estabelecer limites translúcidos ao vínculo contratual, e não a de malfadar o lucro e a busca por uma posição econômica privilegiada, desde que obtida por meios lícitos e sob o filtro dos princípios boa-fé e da função social do contrato.

3.1. Revisão contratual por causa contemporânea à formação do contrato: modificação de cláusulas contratuais por lesão enorme

Reiteradamente, cumpre asseverar que a justiça, a equidade e o equilíbrio do contrato visam assegurar a efetividade e a utilidade do vínculo obrigacional, de maneira que toda avença é passível de rompimento se verificada evidente desproporção entre a prestação e a contraprestação pactuadas.

A concepção de equilíbrio contratual não é severa, mas baseada em uma carga dinâmica, que prescinde de uma exata divisão entre prestação e contraprestação, visto que todo acordo de vontades pode prever uma oscilação entre os direitos e deveres de cada uma das partes, ao longo de toda a vigência do contrato, porém este pode ser acometido se a qualquer dos contratantes sobrevier excessiva vantagem, enquanto ao outro apenas restar ônus excessivo.

Trata-se de uma prognose relativamente simples, isto é, basta que se indague se o referido negócio jurídico, ora acometido de grave desequilíbrio, surgira para proporcionar enriquecimento a uma das partes, enquanto o outro contratante apenas sofre com os ônus extraordinariamente elevados da avença. Constatada esta equação, deverá ser rompido o contrato, no entanto, privilegiando-se a conservação da relação jurídica pautada no princípio da boa-fé, cláusula ínsita ao negócio.

Nessa acepção, a partir deste momento, para reequilibrar o contrato e evitar sua resolução, deverá atuar o Poder Judiciário, no que denomina “dirigismo judicial”, cujo principal objetivo é o “reequilíbrio econômico do contrato, a busca da igualdade substancial entre os contratantes, mediante redistribuição de vantagens e encargos a cada uma das partes” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 105).

O epíteto “dirigismo judicial” é exequível, com fundamento no art. 6º, inciso V, do CDC, de suas formas, como elucidado acima, isto é, a intervenção da jurisdição dar-se-á pela modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou pela sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

O presente tópico visa estabelecer os traços fundamentais e especificidades da primeira modalidade de dirigismo judicial sobre os contratos consumeristas, qual seja, a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.

A atuação da jurisdição no sentido de modificar cláusulas contratuais nos moldes acima descritos está embasado na presença de um vício pregresso, que se afigura desde o momento da celebração do vínculo contratual. Deste modo, constata-se a existência de uma lesão enorme, contemporânea à formação do negócio, que vicia as cláusulas do contrato de consumo, portanto, desde o princípio, abusivas, posto que erige circunstância excessivamente desproporcional à parte vulnerável, o consumidor.

Afirma-se que o contrato nasce desequilibrado, razão pela qual o juiz poderá, de ofício ou mediante provocação das partes interessadas, atuar para elidir o vício pela modificação, substituição ou expurgo das cláusulas abusivas, para prevalecer a base princípiológica em que se constrói a dinâmica do negócio, conforme assevera:

“A existência de cláusula que estabeleça prestação desproporcional para o consumidor faz com que o contrato já nasça desequilibrado e, uma vez afastando-a ou substituindo-a por outra, em respeito aos princípios da equidade e da boa-fé. Poderá ainda o juiz declarar nulas as obrigações consideradas abusivas (não o contrato), de modo a restabelecer o equilíbrio contratual” (CAVALIERI, FILHO, 2009, p. 106).

O vício congênere ao momento da celebração do contrato é o ponto de contato entre a previsão do instituto da lesão albergado pelo CDC (art. 6º, inciso V, do CDC) e o previsto no art. 157 do CC de 2002, conforme se expõe:

“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (…)

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.”

Embora o CDC guarde semelhança com o mesmo instituto no CC, a configuração da lesão difere, pois, enquanto neste além da prestação manifestamente desproporcional exige-se também que o desequilíbrio decorra do estado de premente necessidade, ou por inexperiência de um dos contratantes, a lesão no CDC, por sua vez, dispensa o estado de necessidade ou inexperiência, sendo suficiente a configuração de desproporção originária da obrigação.

A configuração da lesão, independentemente de estar em estado de iminente necessidade ou inexperiência, revela que o sistema de proteção ao consumidor prescreve uma lesão objetiva, que, diversamente do CC, não vincula o grau de inaptidão do consumidor frente ao vínculo contratual, porquanto o CDC fora engendrado na objetivação da própria vulnerabilidade do consumidor e no padrão objetivo de desproporcionalidade de prestações e contraprestações, em homenagem à igualdade real entre fornecedor e consumidor.

Ao tempo da edição do CC de 2002 foram elaboradas críticas ao tratamento conferido pelo diploma legal, que embora posterior ao CDC, não adota um conceito objetivado de lesão, mas sim prevê maior número de requisitos para caracterização da lesão.

Não obstante as indagações lançadas, os parâmetros sob os quais foram erigidos ambos os Códigos são diversos. O CC é um Código editado para partes iguais, de modo que, desde o nascedouro, a relação jurídica afigura-se pariforme, enquanto o CDC possui aplicação restrita às relações de consumo, nas quais o desequilíbrio é ínsito entre fornecedor, parte mais forte, e consumidor, parte mais fraca e vulnerável, independentemente, portanto, de análise de requisitos subjetivos, como estado de necessidade ou inexperiência de um dos contratantes.

O CDC tem esfera restrita, portanto confere tratamento especial aos contratantes diante de relações de consumo. Tratar igualmente consumidores e fornecedores seria reconhecer que a relação de consumo não detém especificidades capazes de merecer edição de direito especial e amparo maior do sistema jurídico.

Por conseguinte, desmantelar a vulnerabilidade do consumidor é considerar que as relações de consumo devem ser regidas pelo direito comum, cujo corolário é alheio à premissa de tratar desigualmente os desiguais a fim de que busquem a igualdade material, e, pois, alheio à função social do contrato e ao sistema de proteção e defesa do consumidor.

3.1.1. Jurisprudência nos Tribunais: paradigmas da revisão contratual em razão de causa contemporânea à formação do contrato

A jurisprudência dos Tribunais de Justiça de todo o país é pacífica ao afirmar, sem vacilo, o direito básico do consumidor à revisão contratual de causa emanada desde a celebração do contrato, portanto, lesionado desde sua formação.

Mister salientar que esta hipótese encontra maior incidência na jurisprudência que aquela que prevê a revisão contratual por causa superveniente e que ocasiona a quebra da base do negócio jurídico. Isso, pois, em razão da clareza e expressão, muitas vezes, literal da lesão, evidente em cláusulas contratuais, enquanto que a afetação da base do negócio exige uma prognose que identifique o fato novo, seus efeitos devastadores e que estes se emoldurem de tal maneira ao ônus, que torne o contrato demasiadamente oneroso ao consumidor.

Diante disso, é uníssona a jurisprudência ao dar provimento ao requerimento de revisão do contrato consumerista, uma vez identificada a existência de lesão enorme, como ilustrado nos acórdãos seguintes:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO PARA FINANCIAMENTO DE BENS (VEÍCULO). APELO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INCIDÊNCIA NAS RELAÇÕES ENVOLVENDO INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SÚMULA 297 DO STJ. REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS V, E 51, E SEUS §§, DOCDC 421 422, DO CÓDIGO CIVIL. "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras" (Súmula 297, do STJ), pelo que, afetado ao consumidor o direito público subjetivo de obter da jurisdição "a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas", bem como a declaração de nulidade das que se apresentem nulas de pleno direito, por abusividade, ou não assegurem o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes, possível é a revisão dos contratos, visto a legislação consumerista ter relativizado o princípio pacta sunt servanda. Essa possibilidade de revisão se insere nos princípios também consagrados pelo Código Civil vigente, de condicionar a liberdade de contratar "em razão e nos limites da função social do contrato", obrigando que os contratantes guardem, "assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" (arts. 421 e 422). (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Acórdão Apelação Cível nº 212761 SC 2010.021276-1. Banco Finasa BNC S/A. Sérgio de Arruda. Relator: Des. Paulo Roberto Camargo Costa. Florianópolis, SC, 24 de janeiro de 2011. Diário da Justiça. Florianópolis, SC).”

“APELAÇÃO CÍVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.  REVISÃO DE CONTRATO. DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. COMPENSAÇÃO DE VALORES E REPETIÇÃO DO INDÉBITO. DA TUTELA ANTECIPADA. DA POSSIBILIDADE DE REVISÃO DO CONTRATO.

Atendendo ao preconizado no art. 6º, inciso V do CDC (…) é permitindo ao consumidor a revisão contratual das cláusulas que entende abusivas.

COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. Estando contratualmente prevista, a comissão de permanência deve ser aplicada de forma exclusiva para o período de inadimplência, ou seja, não cumulada com juros moratórios, multa ou correção monetária, em conformidade com as Súmulas 30, 294 e 296 do STJ.

COMPENSAÇÃO DE VALORES E REPETIÇÃO DO INDÉBITO.  A fim de evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes, a compensação de valores e a repetição do indébito são devidas, respeitando o disposto nos artigos 369 e 876, ambos do CPC. A restituição deve ocorrer de forma simples, e como consequência lógica do julgado. […]

APELO CONHECIDO EM PARTE, E NESTA, PARCIALMENTE PROVIDO (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Acórdão Apelação Cível nº 70048474621. BV Financeira S/A Crédito, Financiamento e Investimento. Marcio Antonio Barbosa Terra. Relator: Des. Roberto Sbravati. Porto Alegre, RS, 21 de janeiro de 2012. Diário da Justiça. Porto Alegre, RS)”.

“AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. COMPROMENTIMENTO FINANCEIRO DA ADQUIRENTE EM VIRTUDE DE INCÊNDIO NO VEÍCULO. GASTOS COM REPAROS. INTERRUPÇÃO TEMPORÁRIA NO PAGAMENTO. RECUSA DA RÉ EM RECEBER AS PARCELAS. VIOLAÇÃO A BOA-FÉ OBJETIVA E A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS. É direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão, em razão de fatos supervenientes, que as tornem excessivamente onerosas, conforme artigo 6º, inciso V, do CDC. Restou incontroverso que o veículo, objeto do contrato, necessitou de reparos após a ocorrência de um incêndio. Da mesma forma, deve ser ressaltada a boa-fé da Autora que, agindo com correção, buscou uma solução para regularizar a inadimplência. Logo, a revisão do contrato na forma determinada na sentença é medida que se impõe, lastreada nas cláusulas gerais da função social do contrato e da boa-fé objetiva. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGA SEGUIMENTO AO RECURSO NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC” (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Acórdão Apelação Cível nº 0294529-10.2009.8.19.0001. Santander Leasing S/A Arrendamento Mercantil. Vanessa de Abreu Pereira. Relator: Des. Valéria Dacheux. Rio de Janeiro, RJ, 05 de janeiro de 2013. Diário da Justiça. Rio de Janeiro).

Em arremate, cumpre destacar interessante acórdão publicado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que manteve irretocável sentença recorrida, que declarou abusiva a incidência de comissão de permanência cumulada com outros encargos moratórios, de maneira a permitir sua revisão, para afirmar lícita sua cobrança, não cumulada com juros ou multa moratórios, reequilibrando o contrato, sem expurgar a referida cláusula.

Este entendimento está presente na Súmula nº 472, STJ, in verbis: “A cobrança de comissão de permanência – cujo valor não pode ultrapassar a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos no contrato – exclui a exigibilidade dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual”.

Segundo o enunciado, a comissão de permanência representa o conglobamento dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual. Portanto, a admissão de cobrança tanto dos juros como da comissão de permanência, supõe o pagamento bis in idem. Assim, inadmissível, pois há “necessariamente superposição de parcelas idênticas, em desfavor do consumidor nos contratos bancários” (FERREIRA FILHO, VIEIRA, 2015, p. 887-888).

A única consequência gerada foi a restituição do valor pago a maior pelo autor da ação, sob pena de enriquecimento sem causa do apelante.

Disserta o acórdão do E. TJMG, com préstimo da abalizada doutrina em direito do consumidor:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. RELAÇÃO DE CONSUMO. DEMONSTRAÇÃO DE SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. DESNECESSIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 6º, V, CDC. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. COBRANÇA PERMITIDA, DESDE QUE NÃO CUMULADA COM OUTROS ENCARGOS MORATÓRIOS. HONORÁRIOS. MANUTENÇÃO. APELO NÃO PROVIDO.

1 – O Código de Defesa do Consumidor autoriza a revisão de cláusulas contratuais em duas hipóteses: quando estabeleçam prestações desproporcionais ou em razão de onerosidade excessiva decorrente de fatos supervenientes.

2 – Para a procedência do pedido de revisão de cláusula contratual, basta serem desproporcionais as prestações pactuadas, em prejuízo ao consumidor, dispensável a demonstração de situação excepcional.

3 – A cobrança de comissão de permanência não é ilegal, mas é abusiva a sua cumulação com outros encargos decorrentes da mora, devendo ser observado o limite previsto na Súmula 472 do STJ. […]

A C Ó R D Ã O

Vistos etc., acorda, em Turma, a 16ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos em NEGAR PROVIMENTO AO APELO. […]

O Código de Defesa do Consumidor autoriza a revisão de cláusulas contratuais em duas hipóteses, nos termos de seu artigo 6º, inciso V.

O pedido formulado nos presentes autos, portanto, é juridicamente possível e expressamente previsto em lei como direito básico do consumidor, dispensável, ao contrário do que alega o Apelante, a demonstração de situação excepcional a justificar a revisão da avença. Basta serem desproporcionais as prestações pactuadas, em prejuízo ao consumidor.

Sobre o tema, a lição de Cláudia Lima Marques:

A abusividade da cláusula contratual é o descompasso de direitos e obrigações entre os contratantes, direitos e obrigações típicos daquele tipo de contrato, é a unilateralidade excessiva, é o desequilíbrio contrário à essência, ao objetivo contratual, aos interesses básicos presentes naquele tipo de relação, é a autorização da atuação desleal, de má-fé subjetiva, que esta cláusula, se cumprida, irá ocasionar. […]

O inciso V do art. 6º do CDC traz este direito de revisão, de forma mais ampla do que o CC/2002, seja porque não exige a vantagem excessiva do fornecedor (como o art. 478 do CC/2002), seja porque prevê que os contratos bilaterais e não só os unilaterais (e reais) podem ser revisados. As cláusulas abusivas estão desde o início no contrato, mas muitas vezes sua "descoberta" se dá a posteriori, quando o consumidor deseja dar eficácia a seu direito, assegurado pelo CDC ou pelo standart de conduta objetiva de boa-fé, e o fornecedor tenta fazer valer a cláusula prevista naquele contrato. A solução do sistema geral é geralmente de rescisão, ou melhor, resilição do contrato, quando o CDC (art. 51, § 1º) privilegia a continuidade do vínculo, daí ter assegurado ao consumidor este direito de revisão. (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 256).

Plenamente possível, portanto, presente a relação consumerista, a revisão de cláusulas contratuais sob a alegação de abusividade, notadamente para que seja possibilitada a preservação da avença” (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Acórdão Apelação Cível nº 1.0701.12.021785-9/001. Banco Bradesco S/A. Wagner Gonçalves Nunes. Relator: Des. José Marcos Rodrigues Vieira. Belo Horizonte, MG, 24 de janeiro de 2014. Diário da Justiça. Belo Horizonte, 09 maio 2014).

Desta maneira, privilegia-se a continuidade do vínculo, pelo que a decisão denomina manutenção do contrato pelo “standart de conduta objetiva de boa-fé”, pois existente o vício, que, no caso, recai sobre a comissão de permanência, desde o início do contrato, mas percebido apenas quando de sua execução, assegura-se, como direito básico do consumidor, o direito de revisão à cláusula, a priori, abusiva.

3.2. Revisão contratual por causa superveniente à formação do contrato: revisão de cláusulas contratuais por quebra da base do negócio jurídico

Neste segundo caso, consubstancia-se a revisão de cláusulas contratuais em momento posterior à formação do vínculo obrigacional, mas que com o advento de fato superveniente à celebração do contrato, afiguram-se excessivamente onerosas ao consumidor.

Esta premissa permite concluir que o contrato segue ritmo regular, composto de cláusulas perfeitamente válidas e hígidas, quando da celebração do pacto, no entanto, a ocorrência de evento novo provoca o desequilíbrio contratual, que, por seu turno, clama pela intervenção judicial, com vistas ao harmonizar a relação jurídica, gravemente afetada, na medida em que uma das partes, o consumidor, assume um ônus extremamente excessivo no decorrer do cumprimento da avença.

À vista disso, o pressuposto inicial é a igualdade material das circunstâncias presentes na formação do contrato, de modo que se qualquer prestação se tornar excessivamente onerosa, poder-se-á provocar a jurisdição para rever suas cláusulas ou, em casos extremos, extinguir o contrato.

Assim, trata-se de analisar a denominada “revisão pura” (NUNES, 2008, p. 141), originária de fatos ocorridos posteriormente à assinatura do contrato, independentemente da possibilidade de previsão ou não dos acontecimentos que tornam as cláusulas excessivamente onerosas ao consumidor. A onerosidade excessiva, por suas circunstâncias propicia o enriquecimento sem causa de uma das partes, ofendendo o princípio da equivalência contratual (GRINOVER, 2008, p. 521-522).

Pertinente sublinhar que a revisão de cláusula contratual, no CDC, detém respaldo apenas para contratos de execução continuada ou prestação diferida, posto que apenas é palatável revisar um contrato se verificada prestação excessivamente onerosa após o momento de sua celebração. Assim, não se aplica, aos contratos com pagamento total ou prévio, pois os riscos são suportados pelas partes, em virtude de sua natureza, e nem aos contratos já vencidos ou cumpridos, pois a condição de onerosidade excessiva apenas se verifica durante a sua vigência (ALMEIDA, 2005, p. 233).

Assim, se o contrato se exauriu, não há lugar para se falar em mutabilidade de suas cláusulas. Por esta razão, apenas na relação jurídica em que uma das partes é obrigada a pagar prestações no futuro, será possível deferir a revisão pela via judicial, por exemplo, cite-se o contrato de compra e venda de imóvel, o aluguel e o contrato de leasing vinculado à variação cambial, enquanto casos de notável relevância quanto à matéria.

Este instituto é tratado por diversas teorias da revisão de acordo com as características sobrejacentes aos fatos supervenientes. Aponta as diferenças substanciais entre as teorias que assentam a revisão, justificando a implantação de cada qual em um diploma normativo e a tendência da nova disciplina jurídica dos contratos (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 108-109).

A par da digressão operada em tópicos anteriores quanto à evolução da teoria contratual acerca da revisão e às características já apontadas, cumpre destacar que o enfoque, neste momento, é sintetizar as concepções que, de fato, as qualificam, de maneira a viabilizar a imediata identificação de cada qual nos diversos diplomas editados pelo legislador.

De um lado, há a Teoria da Imprevisão, de origem francesa, que agrega a variante moderna da teoria canônica de revisão contratual, denominada rebus sic stantibus.  Nessa noção, a revisão das cláusulas somente é exequível se os fatos supervenientes consistirem em circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis. A exigência da imprevisibilidade traz obstáculos à vetusta teoria, visto que a doutrina tem reconhecido e a práxis permite comprovar tal constatação, que o desequilíbrio contratual, a rigor, não é provocado por circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, porém por eventos de ocorrência absolutamente previsível, mas que as partes, por incorreto julgamento das conjecturas, dão azo à possibilidade de ocorrência do fenômeno e, por consequência, ao desequilíbrio contratual, irremediável por esta teoria.

Lado outro, a doutrina italiana procurou sanar parte das insuficiências da Teoria da Imprevisão, engendrando uma nova versão desta que se designou Teoria da Onerosidade Excessiva. Consiste em um caminho rumo ao que mais adiante seria a objetivização da revisão contratual. Ganha destaque a onerosidade excessiva, de modo que o foco desvia-se da circunstância imprevisível ao tempo de formação do negócio jurídico para a consequência imprevisível do evento, tendo em vista que da má avaliação dos contratantes pode decorrer a conseqüência imprevisível, muito embora o fato, por si só, seja provável.

E, por fim, a doutrina alemã concebe a Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico, de enfoque progressista, a qual prevê que basta a onerosidade da prestação, nada importando se imprevisível as circunstâncias que culminaram no desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação que se esperam do negócio jurídico.

Neste diapasão, sumariza-se que o ponto de contato entre as teorias que se consagram ao longo da história do fenômeno da revisão de cláusulas contratuais se resume à indagação sobre a causa da revisão, quando relata:

“Essa teoria [da quebra da base objetiva do negócio jurídico] muda o enfoque da pergunta sobre a causa da revisão. Na imprevisão, pergunta-se se o fato que sobreveio era imprevisível. Na onerosidade excessiva, pergunta-se se as circunstâncias do fato que sobreveio eram imprevisíveis. Na quebra da base do negócio a pergunta volta-se para o passado. Pergunta-se se o fato ocorrido rompeu a base do negócio, ou seja, rompeu um dos pressupostos sobre os quais se construiu o contrato. Se houve rompimento de um dos pilares sobre os quais se construiu o contrato, justifica-se a revisão” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 108).

A despeito da causa da revisão do contrato, registra-se que a revisão somente poderá ser considerada para corrigir anomalias decorrentes da “álea extraordinária” do negócio jurídico, caso contrário a obrigação será excessivamente onerosa, no entanto, o risco estará previsto no enleio da relação contratual, como no caso dos contratos aleatórios, em que a parte assume um risco superior àquele normalmente suportado nos contratos de execução continuada. Somente o extraordinário, portanto, legitima a revisão contratual, a fim de restabelecer a equidade da relação jurídica.

Para tanto, podem ser motivadoras da revisão por fatores supervenientes: (i) as circunstâncias extraordinárias, aquelas para além do risco da álea normal do contrato e inerente ao mundo dos negócios (LOUREIRO, 2010, p. 456), sejam estas motivadas por situações de caráter natural (terremotos, grandes tempestades etc), ou ainda de fatores excepcionais do ponto de vista econômico (variações monetárias em razão de movimentos inflacionários; variações cambiais, que já ensejaram pronunciamento pelos tribunais superiores para substituição do índice de reajuste das prestações devidas em contratos de leasing até então indexadas ao câmbio etc.), sejam eles previsíveis ou não pelo consumidor (TEPEDINO, BARBOZA, MORAES, 2009, p. 133); e (ii) a quebra da base do negócio por onerosidade excessiva, ainda que não imprevisíveis os fatos que a determinaram, este previsto com a vanguarda do cunho objetivo no CDC. A exigência do CDC, portanto, é de que os fatos sejam supervenientes apenas, prescindindo da imprevisibilidade de evento futuro, e não se referindo apenas a fatos, mas a prestações excessivamente onerosas (ALMEIDA, 2005, p. 243-244).

Este direito assiste apenas ao consumidor, tendo em vista que o fornecedor assume os riscos da eventual contratação, diferentemente do consumidor, que tem a faculdade de mitigar o princípio do pacta sunt servanda para apagar a desproporcionalidade da avença. Ao fornecedor restaria a disciplina do art. 51, §2º, do CDC, que retira o caráter absoluto do risco contratual assumido, para mitigar os prejuízos do ônus excessivo (ALVIM, 1995, p. 65; BENJAMIN, MARQUES, BESSA, 2009, p. 60).

Fabiana Barletta (2010, p. 211) reitera a concepção dos citados autores de que os dispositivos sobre a temática no CDC constam positivados para proteger o consumidor, e não o fornecedor, assumindo feições distintas da revisão contratual por excessiva onerosidade presentes no CC brasileiro de 2002 e no CC italiano de 1942. Em vista disso, o CDC é diploma legal construído para regular vínculo entre desiguais, uma vez que o consumidor sempre será visto, na relação de consumo, sob o filtro objetivo e prévio da vulnerabilidade em face do fornecedor.

Muito embora as peculiaridades desse instituto jurídico, defende-se que há similitude entre os CC e o CDC em considerar, em qualquer que seja o modelo, o condão geral de “dar efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana nas relações privadas de cunho negocial, bem como os objetivos previstos no art. 3º da Constituição Federal de 1988” (BARLETTA, 2010, p. 212). Nesse ponto de vista, a livre iniciativa deve ser praticada para o alcance dos valores sociais, ensejando a devida renegociação dos termos contratuais para o decote da onerosidade excessiva da prestação em benefício de qualquer das partes.

Por isso, nenhuma teoria se alocaria melhor ao CDC que a Teoria da Quebra da Base do Negócio Jurídico, confirmada em seu art. 6º, inciso V. O diploma consumerista, portanto, não discute a imprevisibilidade do fator superveniente que torna a prestação excessivamente onerosa, de modo que o fato pode ser previsível, mas não era provável ao tempo da celebração do contrato. Vale ressaltar que toda onerosidade excessiva deverá, necessariamente, ainda que aplicável o CDC, ser afilada no caso concreto, inadmitindo-se avaliações desta natureza em abstrato.

O intuito do CDC é preservar a base do negócio, reconhecê-la como conjunto de circunstâncias que garantem, no momento da formação do vínculo obrigacional, avaliar a viabilidade do empreendimento, e que uma vez ausentes impediriam a formação do contrato ab initio.

Salienta-se que o negócio jurídico apenas existe para que, com supedâneo na liberdade de contratar, seja possível, a cada um das partes, exercer sua vontade, porém limitada à boa-fé e à função social do contrato. Este deve ser favorável, ainda que aleatório e dotado de alto risco, a ambas as partes, posto que estas têm o direito básico de fazer cumprir suas intenções mediante a avaliação dos fatores de oportunidade, que formam a base fundamental do negócio, e que, em última instância, formulam um elo de solidariedade social.

Com esta referida objetividade na aferição da quebra da base do negócio jurídico, o CDC veio a se destacar mesmo em face do CC de 2002, lei posterior destinada à relação entre iguais, posto que o CC previu, nos arts. 317 e 478, a revisão e a resolução judicial de prestações cuja desproporção seja superveniente à celebração contratual, no entanto, pela adoção da Teoria da Imprevisão, em que há a exigência da imprevisibilidade.

Assim, a imprevisibilidade, com seu viés subjetivo, ganha protagonismo na moldura da revisão judicial do Código Civil, diferentemente do modelo empregado pelo CDC, pois “a imprevisibilidade, como do conhecimento geral, é requisito subjetivo e de difícil configuração posto que a capacidade de previsão varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar” (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 109).

Em arremate, a revisão por onerosidade excessiva no CDC reveste o magistrado de poder suficiente para promover o dirigismo judicial, expurgando os efeitos nocivos da prestação dispendiosa, de modo a levar a efeito o reajuste das cláusulas contratuais que retiram o equilíbrio contratual, por intermédio de sentença judicial dotada de efeitos ex nunc em contratos de execução continuada.

O centro da temática é a superioridade argumentativa do CDC, que homenageia a premissa de que quem pode mais pode o menos, visto que não há porque aplicar a resolução do contrato, tal como preconiza a literalidade do CC em seu art. 478, mas antes a revisão judicial, mantendo-se o contrato, em empenho da preservação do fim comum, do equilíbrio substancial e, sobretudo, da vertente do contrato como instrumento de solidariedade entre contratantes.

3.2.1. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: paradigmas da revisão contratual em razão de quebra da base do negócio jurídico

O direito de revisão em razão de fatos supervenientes que tornem as cláusulas contratuais excessivamente onerosas possui pragmática menos frequente no mundo jurídico. A jurisprudência brasileira, no entanto, apresenta situações emblemáticas, célebres por propugnar soluções à quebra da base do negócio jurídico.

O caso mais notório desta modalidade de revisão, com fundamento no CDC, foi o do Recurso Especial 268.661-RJ, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, julgado pela 3ª Turma, em 02 de agosto de 2001, cuja ementa se extrai:

“LEASING. REAJUSTE. VARIAÇÃO CAMBIAL. ONEROSIDADE EXCESSIVA.

O contrato de leasing de veículo nacional em questão foi realizado em fevereiro de 1998 e estabelecia o reajuste das parcelas pela variação do dólar. Com a posterior desvalorização do real, o valor das prestações aumentou e o arrendatário, ora recorrido, ajuizou ação ordinária buscando a substituição do índice de correção. Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria, não conheceu do REsp, ao fundamento de que, considerando o momento em que a obrigação foi contraída, in casu, houve fato superveniente que tornou a cláusula da paridade cambial excessivamente onerosa ao arrendatário consumidor, a justificar sua revisão (art. 6° do CDC), devendo-se trocar tal reajuste por outro índice, como fez o Tribunal a quo ao aplicar o INPC. Ressaltou-se que não se pode examinar a aplicação do aludido dispositivo fora do caso concreto, bem como que esta proteção diz respeito tão-somente ao consumidor, considerado parte vulnerável pelo CDC. A divergência do voto vencido restringia-se ao fundamento de que a onerosidade superveniente não poderia ser afastada sem grave lesão à arrendadora, impondo-se solução de eqüidade pela qual as diferenças resultantes da desvalorização seriam suportadas concorrentemente pelas partes, à razão da metade. Precedentes citados: REsp 164.765-RJ, DJ 2/10/2000, e REsp 119.773-RS, DJ 15/3/1999” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão Recurso Especial nº 268.661-RJ, Terceira Turma. Relator: Min. Nancy Andrighi. Brasília, DF, 16 de janeiro de 2001. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 24 set. 2001).

Trata-se de caso que atingiu milhares de consumidores no país, sendo capaz de demonstrar as qualidades e a eficácia da teoria da quebra do negócio para resolução de diversas demandas no mesmo sentido, ajuizadas ulteriormente.

Com a entrada da circulação do Real, criou-se um clima de relativa estabilidade econômica, de maneira que o valor da nova moeda brasileira corria paralelamente àquele empregado ao dólar, devido a opção governamental pelo câmbio controlado. Esse cenário propiciou uma escalada de consumidores destinados a adquirir veículos a partir de financiamentos indexados à variação cambial do dólar.

Devido à crise financeira argentina e asiática desde 1997 e as dificuldades na economia da Rússia desde 1998, o Banco Central brasileiro, em janeiro de 1999, decidiu pelo abandono do modelo de câmbio semifixado, de modo a permitir a livre flutuação cambial.

Esta mudança de padrão surpreendeu os consumidores, cujos olhares voltavam-se aos contratos celebrados anteriormente, frente a uma desvalorização do real que chegava a quase 400% no final de 2002, passando de R$ 1,00 por US$ 1,00 para R$ 3,90 por US$ 1,00. Com a liberação do câmbio e a forte desvalorização da nova moeda nacional, os contratos indexados ao dólar suportaram acréscimos exorbitantes, extremamente superiores às forças econômicas dos consumidores.

Por intermédio deste acórdão, cujo entendimento fora utilizado como precedente em casos posteriores, percebe-se a exigência de se revisar a cláusula contratual consubstanciada na variação cambial pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou pelo IGP (Índice Geral de Preços, calculado pela Fundação Getúlio Vargas), em homenagem à conservação do contrato, afastando-se o entendimento de simples nulidade contratual. Isto, pois, não faria sentido desfazer milhares de negócios jurídicos firmados na boa-fé e na função social em virtude de um desequilíbrio substancial provocado pela entidade governamental e que não favorecia nenhuma das partes, tão somente impôs ônus da política macroeconômica aos contratantes envolvidos.

No entanto, a jurisprudência do STJ estabeleceu uma decisão que, embora favorável ao consumidor, não enfrentava a questão do fornecedor, que suportaria todos os excessivos riscos do negócio, ocasionando grave efeito econômico ao país, uma vez que houve queda abrupta das participação do leasing nas operações de crédito para pessoas físicas, que caiu de 14,8% do saldo de recursos livres em junho de 2000 para menos de 2,0% em setembro de 2008 (SANTOS, 2009).

Esse cenário exigiu alteração do entendimento do STJ para entender a onerosidade excessiva para uma divisão de perdas e riscos, na qual não se mantém a cláusula de reajuste como estava, porquanto excessivamente onerosa ao arrendatário, e nem se substitui por outro índice nacional de correção, pois oneraria o arrendador, que suportaria sozinho o ônus de obter recursos externos para a operação.

Com lucidez, tal raciocínio resta demonstrado em ocasião do julgamento do Recurso Especial 401.021-ES, pela 4ª Turma, de relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em 17 de dezembro de 2012, senão vejamos:

“LEASING. VARIAÇÃO CAMBIAL. Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria, entendeu que, no reajuste das prestações do contrato de leasing atrelado à variação cambial, o custo em razão da mudança da política governamental, que alterou de surpresa a taxa cambial, deve ser repartido meio a meio entre os contratantes. Essa mudança na taxa de câmbio representa fato novo que atinge a todos, a influir na ponderação do contrato. Note-se que não discutida a questão da comprovação da obtenção dos recursos no exterior ou mesmo aquela referente à realização de contrato de hedge” (BRASIL. Superior Tribunal Justiça. Acórdão Recurso Especial nº 401.021-ES 2001/0137027-6, Quarta Turma. Relator: Min. Cesar Asfor Rocha. Brasília, DF, 17 de janeiro de 2002. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 22 set. 2003). 

Deste modo, inaugura-se uma situação excepcionalíssima e híbrida, visto que reparte pela metade os ônus decorrentes do contrato, motivando o retorno da participação dos negócios de leasing para pessoas físicas ao mesmo patamar de junho de 2000 em dezembro de 2008.

No entanto, não deve o magistrado se descolar à previsão do CDC, que institui como direito básico do consumidor a revisão contratual por onerosidade excessiva, devendo intervir na economia do contrato para reajustar o que entender razoável ao consumidor, inexigindo-se a imprevisibilidade do fato novo, restabelecendo o equilíbrio e mantendo-se o contrato.

Considerações finais

Em sede das discussões do mundo jurídico contemporâneo, é cediça a importância de se apurar a solução apontada pelo CDC para o caso de lesão enorme, primeira parte do art. 6º, inciso V, do CDC, e o de excessiva onerosidade posterior à contratação sem base na Teoria da Imprevisão, isto é, a segunda parte da disposição do art. 6º, V, do CDC, cuja revisão dispensa o requisito da imprevisibilidade dos fatos que ocasionaram a onerosidade excessiva (BARLETTA, 2010, p. 2015).

O efeito acarretado pela modificação e revisão contratuais é propiciar à parte hipossuficiente, o consumidor, o direito de requerer a revisão do negócio jurídico devido a vícios originários à celebração do contrato, bem como permitir a revisão a posteriori da avença em função de fatos supervenientes que tornem a prestação contratada excessivamente onerosa, por afetarem gravemente o princípio da boa-fé, em razão de não estarem acobertados pelos riscos inerentes ao contrato.

Diante dessas considerações, o CDC foi o marco de uma completa revisão de valores e princípios, de uma nova mentalidade, de uma positiva abertura intelectual, fruto de uma paulatina transformação da sociedade de consumo e produção em massa.

Essa evolução histórica proporcionou a alavancagem da nova teoria contratual, constituída sob os pilares da equidade e da boa-fé, que, acaso não observados, provocam ruptura do equilíbrio econômico e, por conseguinte, faz aparecer uma vantagem excessiva ao fornecedor e um enorme ônus ao consumidor. Por consequência, torna-se imperiosa a atuação estatal, por meio do Poder Judiciário, na tutela do vulnerável, com o intuito de equilibrar e harmonizar as relações jurídicas contratuais consumeristas.

 

Referências
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Nota
[1] Artigo orientado pelo Prof. Dr. Carlos José Cordeiro, Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Professor efetivo da Universidade Federal de Uberlândia


Informações Sobre o Autor

Felipe Pereira Maroubo

Mestrando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) com intercâmbio na Universidade do Porto, Portugal. Advogado


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