Incompatibilidade da execução provisória da sentença penal: uma análise do HC 126.292 de acordo com o modelo constitucional de processo

Resumo: O presente artigo tem como objetivo estudar, sem a missão de esgotamento do tema, a mudança de entendimento do STF sobre a execução provisória da sentença penal condenatória após a condenação do réu em segunda instância, conforme argumentos lançados no julgamento do HC 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal no dia 17 de fevereiro de 2016 e na decisão liminar das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e 44, ainda em curso. Para tanto, faz-se necessário a visita de doutrinas de especialistas no tema, com breve estudo da garantia constitucional da presunção de inocência, verificando se a decisão do STF é constitucional de acordo com a redação dada pelo art. 283 do CPP, devidamente alterado pela Lei nº 12.403/11, bem como se o direito fundamental ao recurso está sendo devidamente conferido às partes. Utiliza-se como referencial teórico o modelo constitucional de processo, através de revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Presunção de inocência. Execução provisória de sentença penal. Habeas Corpus 126.292. Modelo constitucional de processo.

Abstract: The purpose of this article is to study, without the mission of exhaustion of the subject, the STF's change of understanding on the provisional execution of the condemnatory criminal sentence after the conviction of the defendant in second instance, according to arguments made in the judgment of HC 126.292 by the Supreme Court On February 17, 2016, and on the preliminary ruling of the Constitutional Declaratory Actions No. 43 and 44, still in progress. To do so, it will be necessary to visit doctrines of specialists in the subject, with a brief study of the constitutional guarantee of the presumption of innocence, verifying if the decision of the STF is constitutional according to the wording given by art. 283 of the CPP, duly amended by Law number 12.403/11, as well as whether the fundamental right to appeal is duly granted to the parties. The constitutional model of the process is used as theoretical reference, throughout a bibliographical review.

Keywords: Presumption of innocence. Provisional execution of a criminal sentence. Habeas Corpus 126,292. Constitutional process model.

Sumário: Introdução. 1 dos fundamentos utilizados pelo supremo tribunal federal para validar a execução provisória da pena. 1.1 A presunção de inocência. 1.1.1  Da violação ao instituto da coisa julgada. 1.2 O Modelo Constitucional de Processo. 1.2.1 Teoria Constitucionalista do Processo e o recurso como direito fundamental. 1.3 Da (in)execução provisória da sentença penal não transitada em julgado. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

No dia 17 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento histórico que alterou o entendimento sobre a permissão da execução da sentença penal antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.

Isso ocorreu após o julgamento do HC 126.292, onde foi fixada a possibilidade da execução provisoria do acórdão penal, ainda que pendente de recurso especial ou recurso extraordinário, sem que tal medida causasse afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988.

O STF, a partir desse julgamento, alterou o entendimento consolidado desde o ano de 2009 com o julgamento do HC 84.708. Naquela oportunidade entendeu-se que a execução provisória da sentença pendente de julgamento de recursos especial ou extraordinário violaria o princípio da presunção de inocência.

Contudo, pronunciou-se o STF no julgamento do HC 126.296, por maioria de votos, que existe a possibilidade de executar a sentença condenatória confirmada em segundo grau de Jurisdição, sem que houvesse ofensa ao princípio ou garantia constitucional da presunção de inocência.

Foram ajuizadas as Ações Declaratórias de constitucionalidade nº 43 e 44, ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional – PEN e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, respectivamente.

Em ambos os casos, o objeto principal era a verificação da constitucionalidade do art. 283 do CPP, para que fosse dada interpretação conforme a constituição, já que, para que houvesse a mudança de entendimento sobre a possibilidade de execução provisória da sentença penal ainda não transitada em julgado, necessariamente deveria o STF enfrentar tal questão, sob pena de trazer insegurança jurídica e relativização da garantia constitucional da presunção de inocência. As ações estão sendo julgadas em apenso. (BRASIL, 2016, Ações declaratórias de constitucionalidade nº 43 e 44)

Mais uma vez, o STF, julgando a cautelar nas ADC´s, entendeu que a execução provisória da condenação confirmada em segundo grau é compatível com o art. 283 do CPP, não havendo inconstitucionalidade do referido dispositivo legal. As ações ainda estão em curso para o julgamento do mérito pelo plenário.

Portanto, em razão da mudança de entendimento que relativizou a garantia fundamental da presunção de inocência, o presente ensaio tem por objetivo analisar se tal decisão encontra-se em consonância com os ditames de um Estado Democrático de Direito. Utilizaremos o modelo constitucional de processo como marco teórico para o desenvolvimento do tema, visitando, necessariamente, a garantia fundamental da presunção da inocência e suas ramificações com os institutos da coisa julgada e do direito fundamental ao recurso para, então, concluir este ensaio.

1 DOS FUNDAMENTOS UTILIZADOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA VALIDAR A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

O desfecho desse cenário começou a ser escrito no dia 01/09/2016, quando o Ministro Marco Aurélio, relatando as ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, concedeu a liminar pleiteada reconhecendo a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Foi determinada a suspensão de execução provisória da pena de qualquer réu cuja culpa esteja sendo questionada no Superior Tribunal de Justiça, bem assim a libertação daqueles presos com alicerce em fundamentação diversa.(BRASIL, 2016, Supremo Tribunal Federal, Voto do Rel. Min. Marco Aurélio).

Dentro outros, merece destaque o seguinte fundamento por ele utilizado:

“O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender.” (BRASIL, 2016, Supremo Tribunal Federal. Voto do Min. Rel. Marco Aurélio na ADC 44).

Em sentido oposto, o Min. Edson Fachin, inaugurando a divergência, assim votou:

“Ainda que se possa objetar ter o art. 283 do CPP tratado exclusivamente do fenômeno da prisão penal e processual penal, não haveria a propalada incompatibilidade entre a regra do art. 283 do CPP e aquela que atribui efeito meramente devolutivo aos recursos excepcionais. Como dito, houvesse incompatibilidade a ser sanada pelo critério temporal (segundo o qual regra posterior revoga regra anterior com ela incompatível), prevaleceria a regra do efeito meramente devolutivo dos recursos especial e extraordinário, dada a vigência posterior dos arts. 995 e 1.029, § 5º, ambos do CPC. […] A disposição geral que exige o trânsito em julgado da condenação para produção de efeitos não é incompatível com a especial regra que confere efeito imediato aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais, os quais não são ordinariamente dotados de efeito suspensivo. A excepcionalidade do efeito suspensivo a ser conferido  aos recursos extraordinário e especial, como assentado por esta Suprema Corte quando do julgamento do HC 126.292/SP, não é incompatível com a regra do art. 5º, LVII, da Constituição da República.” (BRASIL, 2016, Supremo Tribunal Federal. Voto Min. Edson Fachin na ADC 44.)

O cerne da questão, não obstante outros votos convergentes ou divergentes, seria a verificação da compatibilidade da execução provisória de uma condenação já submetida ao duplo grau de jurisdição com o instituto da coisa julgada, bem como da garantia constitucional da presunção de inocência, pois, nessa senda, os recursos extremos (recurso especial e extraordinário), possuiriam apenas efeito devolutivo e teriam como objeto a uniformização jurisprudencial e interpretação da lei maior, não o revolvimento do contexto fático-probatório, possibilitando a coexistência da execução provisória com a garantia da presunção de inocência.

Tal interpretação tem como premissa o art. 637 do CPP e o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90 (revogadas pelo Novo Código de Processo Civil) eis que os mesmos não foram revogados da ordem constitucional e estão em pleno vigor, podendo, portanto, gerar o cumprimento provisório da decisão pendente de recurso especial e/ou extraordinário.

Para confrontar tais premissas, a fim de verificar se a decisão aqui discutida, de fato, se coaduna com um modelo de processo constitucional inserido em um modelo de Estado Democrático de Direito, deve-se confrontá-la com a garantia fundamental da presunção de inocência, para demonstrar se existe compatibilidade entre elas.

1.1 A presunção de inocência

Para dar seguimento ao escopo desse ensaio, necessário tecer algumas considerações sobre a garantia constitucional da presunção de inocência, principalmente em relação a sua existência em um modelo de processo conforme a constituição, conforme será visto adiante.

Um dos principais pontos da decisão proferida pelo STF é: A execução provisória da sentença penal condenatória, após proferido acórdão condenatório pelos Tribunais de Justiça, flexibilizou o princípio constitucional da presunção de inocência? Em um segundo ponto, é possível mitigar o instituto jurídico da coisa julgada, determinando como legitima a fixação da responsabilidade penal após o acórdão proferido pelos tribunais locais?

Sem dúvidas, é impossível interpretar tais possibilidades sem analisar as causas que motivaram a construção de uma garantia constitucional, proveniente de um modelo de Estado democrático de Direito. Ou seja, não há como dissociar a possibilidade de executar-se uma pena provisoriamente sem antes entender as circunstâncias que podem afastar essa interpretação.

Nessa senda, imperioso demonstrar a importância histórica do princípio constitucional da presunção de inocência e como o mesmo foi implantado no nosso  modelo de Estado.

Tourinho Filho expõe com maestria a evolução histórica do princípio da presunção de inocência:

“O princípio remonta o art. 9º. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em Paris em 26-8-1789 e que, por sua vez, deita raízes no movimento filosófico- humanitário chamado “Iluminismo”, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marques de Beccaria, Voltaire e Montesquieu, Rousseau. Foi um movimento de ruptura com a mentalidade da época, em que, além das acusações secretas e torturas, o acusado era tido com objeto do processo e não tinha nenhuma garantia.

Há mais de duzentos anos, ou, precisamente, no dia 26-8-1979, os franceses, inspirados naquele movimento, dispuseram da referida Declaração que: “Tout homme étant présumé innocent jusqu’à cequ’il ait été déclaré coupable; s’ il est jugé indispensable de I’ arrêter, toute rigueur qui ne serait nécessaire pour’s assurer de sá persone, doit être sévèrement reprimée par la loi” (Todo homem sendo presumidamente inocente até que seja declarado culpado, se for indispensável prendê-lo, todo rigor que não seja necessário para assegurar sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei). Mais tarde, em 10-12-1948, a Assembléia das Nações Unidas, reunida em Paris, repetia essa mesma proclamação. Aí está o princípio: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente” (TOURINHO FILHO, 1987a, p. 29-30).”

Foi, portanto, no período pós-guerra que as Constituições ganharam maior importância, tendo em vista a necessidade de reafirmação do valor da vida humana em razão do genocídio e as atrocidades cometidas contra o Homem.

Não basta agora a mera declaração de direitos em favor do indivíduo, mas a sua efetiva fixação como condicionante da legitimidade da atividade jurídica do Estado, situação consagrada desde a Constituição de 1824 aqui no Brasil. (GOMES FILHO, 1991).

Em 1988, a Constituição Republicana insere em seu art. 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (BRASIL, 2016).

Tal preceito institui a favor do cidadão verdadeira garantia, um direito fundamental que demanda o respeito da dignidade da pessoa humana no âmbito do processo penal, que seria uma das condições para o exercício do poder repressivo estatal em um Estado de Direito. (GOMES FILHO, 1991).

Aliás, sobre direitos fundamentais, assevera Canotilho:

“a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano  jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)” (CANOTILHO, 1994, p. 541)

O conteúdo semântico da expressão inocência propicia duas acepções distintas: A expressão inocente pode adotar carga política-ideológica e também acepção de índole processual. (GOMES FILHO, 1991)

Em razão da época em que fora utilizada a expressão presunção de inocência, a interpretação não era a de não culpabilidade propriamente dita, mas de uma presunção de bondade inerente à condição humana, nos termos do pensamento rousseauniano. Contudo, mais do que a carga ideológica do direito de defesa da condição humana no processo, o mesmo também apresenta valor instrumental, traduzindo em regra jurídica processual de inversão do ônus da prova, no caso de incerteza sobre a culpabilidade, presume-se inocente o réu. (GOMES FILHO, 1991).

Assim, a garantia fundamental da presunção de inocência constitui mais do que uma presunção política ou ideológica, mas estabelece um princípio de formação e constituição válida do processo penal, no qual sejam respeitados os valores da dignidade humana que serve como parâmetro para a repressão criminal. (GOMES FILHO, 1991).

Daí se extrai um duplo conceito: Uma regra de processamento, relativa ao ônus probatório do órgão acusador e outra como uma pré-condição, o estado de Inocência de todo cidadão, que só poderia ser revertido com uma condenação final do Poder Público.

Portanto:

“presunção de inocência e devido processo legal, na verdade são conceitos que se complementam, traduzindo a concepção básica de que o reconhecimento da culpabilidade não exige apenas a existência de um processo, mas sobretudo de um processo justo, no qual o confronto entre o poder punitivo estatal e o direito à liberdade do imputado seja feito em termos de equilíbrio”. (GOMES FILHO, 1991. P. 49).

Considerando o modelo de Estado Democrático de Direito em que vivemos, não há como interpretar a responsabilização penal do acusado, determinando o cumprimento provisório de uma condenação daquele que é constitucionalmente presumido como inocente, até que se encerre a apuração da verdade através do encerramento do processo.

Nesse sentido, questiona-se: é possível realizar um juízo formal e definitivo sobre a culpa do acusado antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória sem violar a garantia constitucional da presunção de inocência?

Para responder tal assertiva não há outro caminho a não ser analisar a garantia da presunção de inocência conjuntamente com o instituto jurídico da coisa julgada, já que esse representa uma das condições de validade daquela.

1.1.1 Da violação ao instituto da coisa julgada

Para tal compreensão, o Estado, detentor do ius puniendi, somente pode determinar a culpabilidade de um acusado após uma resposta final, precedida de um processo onde tenham sido respeitadas todas as garantias constitucionais concedidas ao cidadão, mormente, a presunção de inocência.

Aliás, “o instituto da coisa julgada é obrigatório em qualquer sistema jurídico. Submeter matérias à apreciação do judiciário pressupõe que haja uma resposta final.” (LIMA, 1997, p. 13)

O juízo formal e definitivo da responsabilidade penal só ocorre após a entrega da prestação jurisdicional pelo Estado, ou seja, após ter sido operada a coisa julgada, quando exaurido todos os meios passíveis de recurso.

Aliás, forçoso é relembrar a determinação constitucional prevista no supracitado art. 5º, inciso LVII da carta magna, eis que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” (BRASIL, 1988).

Invariavelmente, eis a previsão da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, senão vejamos: “Art. 6º […] § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.” (BRASIL, 1942).

Nesse sentido também é previsão na norma processual penal:

“Art. 283: Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. (BRASIL.1941. Redação dada pela Lei. 12.403/11)

As três disposições normativas trazem o mesmo traço em comum: o trânsito em julgado da decisão para constituição de um título executivo.

Didaticamente, em que pese a diferença de classificações entre elas, temos que o trânsito em julgado seria a qualidade da decisão que a tornará imutável, indiscutível, gerando sua estabilidade quanto à produção de efeitos. A partir daí, ocorrerá sua transformação em coisa julgada, que acontecerá em razão do esgotamento das vias recursais ou pela falta de manifestação em tempo e modo oportuno pelo interessado, gerando o efeito da preclusão processual. (HEUSLER, LEITE, 2017).

Fato é, a entrega da prestação jurisdicional ocorrerá somente após o esgotamento dos meios necessários para o exercício do contraditório e ampla defesa, seja por meio da ação, através da interposição de recursos, ou por meio da omissão, quando a parte quedar inerte. A partir daí, haverá a consubstanciação da expectativa da pretensão em um direito exequível.

Avançando nesse sentido, seguem as lições da doutrina:

“O juiz, ao proferir a sentença, apenas está apresentando a questionada prestação. A sua entrega só ocorre quando não cabe ou não mais cabe recurso, ou quando já não cabe, ou a lei não o dá, de decisão que a confirmou ou a reformou. A entrega, portanto, da prestação jurisdicional ocorre na última decisão”, naquela que virá revestir-se da indiscutibilidade da coisa julgada. Por outro lado, enquanto passível de recurso, a sentença, na lição de Chiovenda, “não encerra nenhum valor atual” e, “simplesmente, apresenta o valor de um ato que pode converter-se em sentença, se o recurso for renunciado ou perempto. A sentença de primeiro grau, portanto, constitui mera possibilidade de sentença, mera situação jurídica”. Em outras palavras, a entrega da prestação jurisdicional “só se efetua quando a sentença passa em julgado”. (THEODORO JÚNIOR, 2015, P. 1.073)

Assim, pois, a fim de possibilitar a regra do devido processamento do acusado, não há como permitir a execução provisória da pena sem exaurir as hipóteses recursais, seja por via da ação ou omissão, necessárias para a formação do título executivo judicial que promove um juízo formal e definitivo sobre a culpabilidade do acusado.

E o juízo definitivo sobre a culpa não pode ocorrer, pendendo a garantia fundamental de presunção de inocência, bem como os meios de discussão necessários para conferir a estabilidade do título executivo, no caso, a coisa julgada.

Outrossim e conforme será exposto posteriormente, permitir, como quer o STF, uma interpretação do art. 637 do CPP em dissonância com o art. 283 do CPP não seria um caminho legítimo, pois esse artigo reproduz em sua inteireza o mandamento constitucional da presunção de inocência, se sobrepondo material e temporalmente sobre aquele, eis que sua redação é espelhada no mandamento constitucional. O direito processual, nesse sentido, deveria reproduzir as balizas da lei maior.

Considerando que o Estado Democrático de Direito é a matriz principiológica regente do ordenamento jurídico, todo o direito processual deve desenvolver-se conforme a constituição, assegurando a supremacia do texto constitucional e a proteção dos direitos e garantias fundamentais. (ARAÚJO, 2003).

Temos que o princípio da presunção da inocência está diretamente ligado ao instituto jurídico da coisa julgada, pois, falar em responsabilidade penal do acusado com base em título judicial instável (execução provisória), destoa do mandamento constitucional e infraconstitucional. Isso porque, pendendo discussão sobre o título pela via recursal, qualquer prisão deveria ser revestida de cautelaridade, no caso, prisão preventiva, quando presentes os fundamentos que a legitimam. Essa, aliás, era orientação do STF antes do julgamento em debate.

Se o processo é o modo pelo qual se exercem garantias fundamentais, entre elas o de ser condenado após um juízo definitivo de culpabilidade, é lícito afirmar que o recurso é um direito fundamental das partes, sendo-lhes assegurado o direito de participação e debate para a construção democrática de um provimento final. Isso, porque, a prisão não pode significar juízo antecipado de culpa, subsistindo apenas em caráter instrumental, ou seja, cautelarmente, quando previstos o fundamentos que autorizam a prisão preventiva.

Nesse sentido, a fim de contornar a discussão deste ensaio, imprescindível trazer à baila a importância do modelo constitucional de processo e suas implicações na sistemática recursal, que deveria, ao menos, ser tutelada como garantia essencial aos litigantes na marcha processual como direito a um provimento final.

1.2 O Modelo Constitucional de Processo

Vivemos em uma quadra da história onde não é mais possível dissociar a constituição dos outros ramos do direito, sobretudo o processual.

Luis Roberto Barroso (2013), um dos adeptos do movimento neoconstitucionalista, leciona que esse movimento, fruto do constitucionalismo pós-guerra, desenvolvido em uma cultura pós positivista, é marcado pela força normativa da Constituição e pela expansão da jurisdição constitucional e da hermenêutica jurídica.

Nesse contexto, a Constituição deixou de ser um sistema, um fim em si mesma, passando também a ser um modo ou uma forma de interpretar todos os outros ramos do Direito. A esse, fenômeno, denominado de Filtragem constitucional, todo o ordenamento jurídico deve ser lido e apreendido sob os valores consagrados na carta política. (BARROSO, 2013).

Diante dessa revolução sofrida pelo Direito Contemporâneo, o intérprete da norma não pode se olvidar para a supremacia e higidez do texto constitucional, aproximando a norma infraconstitucional da carta magna através de uma interpretação conforme os valores dessa. (MASSON, 2016, p. 62).

Inegavelmente, a constitucionalização do Direito, no Brasil, é fruto da jurisdição constitucional, que fornece ao intérprete da norma a possibilidade de realização concreta da supremacia formal e axiológica da constituição. Dentre tais medidas, estão a possibilidade, dentre outras, a de declaração da inconstitucionalidade de norma infraconstitucional anterior ou posterior ao texto constitucional, bem como a possibilidade de realizar interpretação conforme a constituição. (BARROSO, 2013).

Nesse sentido, sobre o tema jurisdição constitucional, alertava o Prof. Ronaldo Brêtas:

“Jurisdição constitucional é aquela entendida, em noção alargada, como atividade jurisdicional exercida pelo Estado objetivando tutelar o princípio da supremacia da Constituição e o de proteger os direitos fundamentais da pessoa humana nela estabelecidos. Assim, a classificada jurisdição constitucional visa a preservar o ordenamento jurídico-constitucional no julgamento dos casos concretos submetidos à apreciação do Estado por meio do processo, com isto obtendo a preeminência das normas constitucionais sobre as disposições das leis ordinárias”. (DIAS. 2010a, P. 44)

A bem da verdade, a jurisdição constitucional significa a criação de instrumentos para tornar efetiva a supremacia constitucional, também chamada tutela constitucional do processo. Para tanto, foi imprescindível a criação de garantias como contraditório, ampla defesa, necessidade de fundamentação das decisões, controle de constitucionalidade por meio das ações específicas (ação declaratória de constitucionalidade, de inconstitucionalidade, arguição de descumprimento de preceito fundamental), remédios constitucionais (mandado de segurança, de injunção, ação popular, habeas data, habeas corpus). (DIAS, 2010).

Conforme posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do HC 126.292, bem como quando do indeferimento da cautelar nas ADC´s 43 e 44, o que se observou foi a não realização de uma jurisdição constitucionalizada, com respeito às garantias fundamentais, no caso, a presunção de inocência e o respeito ao instituto jurídico da coisa julgada.

Na verdade, o STF interpretou o comando da Lei ordinária em detrimento da própria Constituição, quando alegou ser constitucional o comando normativo que possibilita a execução provisória do acórdão proferido pelo Tribunal a quo. Com isso, houve veemente colisão da execução provisória (status de norma infraconstitucional) com a presunção de inocência (norma constitucional).

Confrontando tais premissas com o fundamento utilizado na decisão que ora se examina, vemos que as razões lançadas pelo Supremo Tribunal Federal não são compatíveis com um modelo constitucional de processo.

Não há como proteger direitos fundamentais do cidadão criando mecanismos antagônicos de violação desses mesmos direitos. Por isso, mister que o operador do Direito se aprofunde nas teorias constitucionalistas para que não permitir a defasagem do texto constitucional, mormente quando o guardião da carta magna emite interpretações que fogem dos motivos determinantes do ordenamento jurídico.

Nesse viés, entendemos que uma breve análise dessa teoria urge como necessária para a inarredável conclusão deste ensaio.

1.2.1 Teoria constitucionalista do processo e o recurso como direito fundamental

O modelo constitucional sucede outras teorias processuais que o condicionavam ao procedimentalismo concatenado a uma série atos (procedimentos) destinados a um fim. Aqui vale apenas relembrar da valiosa contribuição de Élio Fazzalari, citado por Ronaldo Brêtas, que definiu o processo como procedimento realizado em contraditório, ou seja, mediante a participação entre seus sujeitos. (DIAS, 2010)

Rosemiro Pereira Leal (2014) citando Ítalo Andolina, explica que o Processo pós-moderno deve se portar como instituição constitucionalizada com base principiológica no devido processo, compreendendo, ainda, a reserva legal, a ampla defesa, isonomia e contraditório, convertendo-se em verdadeiro direito-garantia impostergável, aptos a conter a tirania.

Nesse mesmo sentido é a exposição do Prof. Dierle José Coelho Nunes, citado por Rosemiro Leal, eis que:

“O processo lastreado em um modelo constitucional (Andolina, Vignera) constitui a base e o mecanismo de aplicação e controle de um direito democrático. Processo democrático não é aquele instrumento forma que aplica o direito com rapidez máxima, mas, sim, aquela estrutura normativa constitucionalizada que é dimensionada por todos os princípios constitucionais dinâmicos, como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo constitucional, a celeridade, o direito ao recurso, a fundamentação racional as decisões, o juízo natural e a inafastabilidade do controle jurisdicional. Todos esses princípios serão aplicados em perspectiva democrática se garantirem uma adequada fruição de direitos fundamentais em visão normativa, além de uma ampla comparticipação e problematização na ótica policêntrica do sistema, de todos os argumentos relevantes para os interessados.” (LEAL, 2014, p. 83).

É preciso perceber, conforme valiosa lição da Prof.ª Flaviane de Magalhães Barros (2016), que, por mais que o processo tenha como base os princípios constitucionais – do contraditório, ampla argumentação, fundamentação das decisões e existência de um terceiro imparcial, nele ainda se encerram diferenças em função do provimento final e dos direitos e garantias em discussão.

É nesse sentido que a decisão jurisdicional não pode ser considerado ato isolado da atividade jurisdicional. Ela deve ser obtida através de disciplinamento constitucional, por meio de uma estrutura metodológica, de modo que a decisão seja construída por meio da comparticipação em contraditório por aqueles sujeitos que suportarão seus efeitos. (DIAS, 2010).

Logo, o recurso é um direito fundamental, sendo o corolário do modelo constitucional de processo, conforme previsto no art. 5º, inciso LV da CF/88. Por meio dele, as partes têm o direito fundamental de dar continuidade ao debate, como meio de exercer o contraditório e a ampla defesa. (COSTA, 2016).

Aliás, o contraditório e ampla defesa tem como fragmento a “continuidade da relação processual pré estabelecida voluntariamente na interposição do recurso e nova cognição perante instância superior (DINIZ, 2011, P. 20)

O direito ao recurso, além de permitir a legitimidade do debate como exercício da democracia, permite ao cidadão fiscalizar a atividade jurisdicional, dando validade ao provimento final exarado pelo Estado.

O que não se pode perder de vistas é que o Julgador não tem o poder de dizer isoladamente o direito, sem que, para tanto, tenha sido dada ampla participação das partes na construção da decisão judicial. E tal possibilidade é viabilizada através do contraditório e ampla defesa, exercidas pela discussão em vias recursais. Renegar o direito ao recurso, ainda que seja indiretamente, através de artifícios que retiram sua força, tais como a necessidade de executar provisoriamente uma decisão, enfraquece uma das premissas basilares da sistemática recursal: a voluntariedade.

O prof. Dierle Nunes (2006) já nos alertava sobre a figura do iura novit curia, que seria a permissão do Juiz individuar a norma aplicável ao caso sem analisar as proposições jurídicas das partes, podendo inovar em argumentos alheios ao debate.

Avança, ainda, citando Nicoló Trocker, no sentido que:

“A dicção do iuria novit curia não significa que a obrigação das partes enunciarem seus argumentos e o ônus material da prova estão sempre excluídos, no que diz respeito às normas jurídicas aplicáveis, tendo em vista um litígio. A dicção iuria novit curia não significa que o Tribunal disponha do monopólio da aplicação do direito, desconhecendo ou desprezando as conclusões das partes, tendo em vista as normas jurídicas invocadas pelos litigantes. A dicção iuria novit curia não significa que pertence, ao Tribunal, o direito de fazer abstração da lei, em função de referência aos princípios da equidade, menos apropriados à solução do litígio.” (NUNES, 2006, p. 154)

É nesse sentido que o Recurso serviria como a possibilidade de exercer a garantia constitucional do contraditório e ampla defesa através da comparticipação ativa nas partes no desenvolver do processo. É o que denomina como “intersubjetividade na formação da decisão.” (NUNES, 2006, p. 169)

Portanto, não há como se falar em contraditório e ampla defesa se os destinatários do provimento final não puderem participar efetivamente da construção da decisão. Sem a influência dos destinatários, através do diálogo, não há se falar garantia do devido processo legal, eis que, “falar em processo democrático é falar em processo equilibrado e dialógico.” (DIDDIER, 2006, P. 62).

Dito isso, a posição adotada pelo STF não encontra guarida em um modelo de processo pautado pela máxima efetividade das garantias constitucionais, eis que mitiga a utilização dos recursos extremos pelo acusado com base em argumentos metajurídicos.

O tribunal não pode se apropriar e interpretar ao bel prazer as normas jurídicas sem que as partes tenham participado democraticamente da decisão. Nesse sentido, caso o julgador assim se apoie, fatalmente afastará da jurisdição constitucional para se tornar ativista judicial, mas, aqui, reduzindo o alcance da norma em um exercício hermenêutico restritivo, reduzindo a efetividade da norma constitucional, coibindo indiretamente a utilização dos recursos pelo acusado.

Além dos argumentos metodológicos, verifica-se que essa decisão também não se sustenta de forma instrumental, vez que a execução provisória não se sustenta em uma comparação, por exemplo, com as disposições de natureza civil ou processual civil. Passo a expor.

1.3 Da (in)execução provisória da sentença penal não transitada em julgado

Citando trecho do voto do Min. Edson fachin no julgamento da ADC 43/44:

“o art. 283 do CPP, em regra, exige o trânsito em julgado para a eficácia dos provimentos jurisdicionais condenatórios em geral". No entanto, os arts. 637 do CPP c/c os arts. 995 e 1.029, § 5º, ambos do CPC, "ao atribuir efeito meramente devolutivo aos recursos extraordinário e especial, excepcionam a regra geral do art. 283 do CPP, permitindo o início da execução quando o provimento condenatório for proferido por Tribunal de Apelação". (BRASIL. 2016, Supremo Tribunal Federal).

É possível perceber que a disciplina sobre o efeito devolutivo dos recursos extremos possuem regras de tratamento em ambas espécies de jurisdição: cível e criminal.

No âmbito do processo civil, a execução provisória (ou cumprimento provisório da sentença) está disciplinado no art. 520 do CPC, in verbis:

“Art. 520 O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:

I – corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;

II – fica sem efeito, sobrevindo decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos. […]

IV – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos”. (BRASIL. 2016. Código de Processo Civil.)

Para possibilitar a execução provisória no processo civil, quando vislumbrar a possibilidade de dano grave ao executado, via de regra, deverá o exequente caucionar o Juízo para permitir o cumprimento da medida. Aqui não há dúvidas, pois, considerando que tutela da jurisdição cível engloba, na maior parte dos casos, envolve direitos de caráter patrimonial, a execução provisória da decisão pendente de recurso com efeito devolutivo não representaria dano grave ou de difícil reparação.

Considerando, portanto, a possibilidade de reversão do título executivo, após o julgamento dos recursos extremos (especial ou extraordinário) a caução poderá ser levantada para liquidar eventuais prejuízos do executado em razão do deferimento da medida.

Tal argumento é de extrema relevância na medida que a tutela da jurisdição penal vincula-se ao ius libertatis. Não há como mensurar prejuízo econômico caso a condenação imposta por um Tribunal de Justiça seja executada provisoriamente e, após, seja revista pelos Tribunais Superiores. Em outras palavras, a liberdade tolhida com a execução provisória não é devolvida ao acusado.

É neste aspecto que Barros e Machado (2016) já alertavam sobre a necessidade de que os microssistemas processuais sejam aplicados em conformidade com uma base geral, qual seja, com o modelo constitucional de processo, que seria o ponto legitimador da atividade jurisdicional.

Noutro giro, outro argumento que merece destaque foi o proferido no voto do Min. Teori Zavascki quando do julgamento do HC 126.292, a saber:

“Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressuposto inafastável para condenação –, embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior. É nesse juízo de apelação que, de ordinário, fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado. É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição, destinado ao reexame de decisão judicial em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha ela sido apreciada ou não pelo juízo a quo. Ao réu fica assegurado o direito de acesso, em liberdade, a esse juízo de segundo grau, respeitadas as prisões cautelares porventura decretadas”. (BRASIL, Supremo tribunal Federal. 2016)

Segundo a orientação do STF, por não haver necessidade de dilação probatória no recursos especial e extraordinário, seria possível a execução provisória do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal a quo, de modo que nos tribunais superiores não haveria rediscussão de matéria probatória.

Assim, exaurindo-se o exame do contexto fático-probatório, estaria devidamente respeitado o duplo grau de jurisdição, de modo que a prova da inocência seria relativizada, permitindo o recolhimento do réu à prisão, independente da análise da existência dos fundamentos da prisão cautelar.

Argumentos desse jaez devem ser vistos com maior cautela. A culpa é pressuposto para configuração do delito, devendo ser constatada apenas após a preclusão maior, no caso, o trânsito em julgado de sentença condenatória. Ou seja, a execução da pena pressupõe a existência do crime, sendo, portanto, um fato, típico, antijurídico e culpável, determinado por sentença passada em julgado.

Nesse aspecto, com base na teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli (1998), não há culpa sem sentença. E a sentença, para permitir a execução da pena, seria aquela revestida da qualidade de título executivo final, qual seja, do trânsito em julgado.

Outrossim, como bem salientado pelo Ministro Marco Aurélio, ao conceder a liminar pleiteada nas ADC’s 43 e 44:

“O Superior Tribunal de Justiça consolidou função uniformizadora relativamente à legislação federal, espaço prioritário de aplicação do Direito Penal. Percebam serem os Códigos Penal e de Processo Penal leis federais. Cumpre-lhe examinar a correta interpretação da lei penal, sob o ângulo da configuração dos substratos do delito, sendo admissível o recurso especial por simples divergência jurisprudencial. Ao assim atuar, o Superior funciona como verdadeiro Tribunal de Cassação apesar de lhe serem vedadas incursões fático-probatórias. É que o Direito Penal não se limita à análise de fatos, abrangendo também normas essenciais para a configuração da culpa. A evolução da teoria do crime aponta para o abandono do causalismo, a revelar o equívoco daqueles que equivalem o Direito Penal ao exame do fato, sobretudo no tocante à culpabilidade. Observem algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça em matéria penal. Consolidou-se, por exemplo, a tese de que o aumento da pena-base em virtude das circunstâncias judiciais desfavoráveis depende de fundamentação concreta e específica que extrapole os elementos vinculados ao tipo. Com alicerce nesse entendimento, tem-se a diminuição da reprimenda em inúmeros processos nos quais verificada a dupla punição”. (BRASIL, 2016. Supremo Tribunal Federal).

Nesse sentido, em que pese a existência das súmulas 07 do STJ e 279 do STF, verifica-se que nem todas as reversões de julgados são feitas, necessariamente, mediante análise do contexto fático probatório. Isso porque, matérias de direito podem, por exemplo, trazer redução da pena aplicada e alterar a regime ou forma de seu cumprimento, ou até mesmo gerar absolvição, quando houver equívoco na interpretação do tipo penal pelo STJ, por exemplo.

Logo, a decisão colegiada suplantada em grau de acórdão proferido pelos Tribunais de Justiça não encerram a discussão sobre responsabilidade penal. Ainda que caiba ao STJ a uniformização interpretativa da legislação federal e ao STF a guarda da constituição, somente poderia se falar em pena após o encerramento de toda discussão penal, seja ela através da discussão de provas ou por meio de interpretação da lei federal, divergência jurisprudencial, ou, quiçá, por violação de norma constitucional.

O instituto da coisa julgada, a garantia da presunção de inocência e a própria configuração do crime necessitam de um juízo de certeza sobre todos os elementos que circundam a tipicidade penal.

Na concepção adotada pelo Supremo Tribunal Federal, os recursos especial e extraordinário perderiam, portanto, o status de direito fundamental de fiscalização e participação no provimento final, sob a ótica do modelo constitucional de processo, passando a ser mero meio de impugnação com possibilidade de execução provisória.

Temos aqui a verdadeira história do cobertor pequeno: tampa-se a cabeça, descobre-se os pés! Se permitida a execução provisória de decisão pendente de recurso especial ou extraordinário, eis que impossível a dilação probatória nessas vias, deverá o STJ e/ou STF aceitar o habeas corpus como sucedâneo recursal para corrigir imperfeições nas decisões dos desembargadores e impedir a prisão provisória.

Ou seja, o argumento da efetividade na entrega da prestação cairá por terra novamente, já que toda decisão que influencie no estado de liberdade do acusado é presumidamente grave, deve ser sujeita a nova análise e resguardar o direito do réu de responder em liberdade, quando não estiverem presentes o fundamentos da custódia cautelar.

Há quem diga que a concessão de efeito suspensivo via medida cautelar nos recursos especial e extraordinário poderia corrigir essas imperfeições, mas, de toda forma, a nova sistemática de prisão decorrente de acórdão condenatório desvirtua do mandamento constitucional.

Aqui, existe a criação de uma nova espécie de prisão, diferente daquelas previstas taxativamente no ordenamento jurídico. Aceitar tais hipóteses seria permitir aos julgadores lançar interpretações cada vez mais extravagantes e usurpadoras do poder legiferante que compete ao poder legislativo, criando normas violadoras de direitos e garantias fundamentais.

CONCLUSÃO

De tudo que foi exposto, verifica-se que a decisão proferida pelo STF, seja no julgamento do HC 126.292, seja no julgamento da liminar nas ações declaratórias nº 43 e 44, não se coaduna com um modelo constitucional de processo, pautado pela máxima efetividade das garantias constitucionais.

O art. 283 do CPP, devidamente alterado pela Lei 12.403, de 2011, reflete formal e materialmente o conteúdo do art. 5º, LVII, da Constituição da República de 1988, reforçando a validade e eficácia do princípio da presunção da inocência no plano infraconstitucional.

Ademais, pela própria redação constitucional, combinada com a legislação infraconstitucional, verifica-se que a presunção de inocência está umbilicalmente relacionada ao trânsito em julgado da decisão condenatória. Ou seja, a formação da responsabilidade penal pressupõe a existência de um título executivo judicial dotado de uma qualidade inequívoca: a força da coisa julgada. Qualquer prisão diferente disso deve revestir de cautelaridade, conforme dicção dada pela legislação processual penal.

Outrossim, o recurso, como direito fundamental das partes, deve possibilitar a fiscalização e participação dos mesmos no provimento judicial final, como forma de exercitar a regra democrática e harmonizar o campo processual com o mandamento constitucional, independente da espécie recursal.

Argumentos no sentido de que o uso excessivo de recursos postergam a efetividade da justiça não podem ser validados diante da existência de garantias fundamentais em curso no processo, de modo que a velocidade na satisfação de um resultado não se deve confundir com a qualidade da prestação jurisdicional, que somente ocorrerá com o devido respeito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal em todas as fases processuais.

Aliás, nesse aspecto, tem-se que o juízo de culpa formado pelos Tribunais de Justiça não o torna definitivo quanto à exequibilidade do título judicial, já que a pena a ser aplicada pressupõe uma sentença final, sujeita à preclusão maior. Somente quando esgotadas as vias recursais, conferido ampla dialeticidade aos litigantes, seria possível cogitar em contraditório efetivo, bem como na formação definitiva da culpabilidade e afastamento da presunção de inocência.

Admitir a execução provisória fundada nos art. 637 do CPP e art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90, revogadas pelo Novo Código de Processo Civil, seria admitir que o art. 283 do CPP já nasceu inconstitucional, situação contrária ao princípio da presunção de constitucionalidade das Leis, pois, sem ela, jamais se poderia falar em imperatividade dessa norma, que revogou quaisquer outras espécies de prisão diversas da temporária, preventiva ou da definitiva. Ademais, não há como comparar as disposições inerentes ao processo civil com o processo penal para permitir a execução provisória de acórdão, já que o bem jurídico tutelado é diverso, com proteções constitucionais diferentes.

Portanto, pensando em um modelo constitucional de processo, refuta-se sobre a possibilidade de execução provisória de sentença penal pendente de dúvidas e incertezas, mormente quando discutidas em vias recursais, ainda que extraordinárias e ainda que apenas quanto à matéria de direito.

Prisões que não são definitivas, devem subsistir apenas em caráter cautelar. A execução provisória de pena imposta em grau de apelação é nova modalidade de prisão que não possui previsão legal. Nesse aspecto, o Poder Judiciário não pode usurpar o poder legiferante e criar normas para confortar a opinião pública, já que, institucionalmente, o Supremo Tribunal Federal exerce papel contra majoritário, devendo fazer valer as regras e postulados do Estado Democrático de Direito ainda que em contrapartida dos demais poderes, sob pena de incorrer no mal ativismo judicial.

Enfim, na existência de tais dúvidas e incertezas sobre um juízo final de culpabilidade, o julgador deve valer-se da histórica garantia da presunção de inocência, bem como das normas existentes no Estado Democrático de Direito, de tal sorte que a interpretação mais adequada é aquela que prevê a máxima efetividade dos direitos fundamentais e o valor da Lei Maior.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Frederico Gomes Lara

Advogado. Especialista em Ciências Penais pela PUC Minas


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