Os direitos fundamentais e o direito à livre orientação sexual

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Resumo: Este estudo pretendeu, a partir do conceito e finalidade dos direitos fundamentais do homem, definidos pela Constituição Federal, determinar quais deles são aplicáveis as uniões entre pessoas do mesmo sexo, a fim de estabelecer um direito constitucional de liberdade sexual.


Palavras chave: direito; família; homoafetividade; afeto; homossexual


Abstract: This study focus to concept and purpose the  human rights as defined by the Brazilian Constitution, which of them are applicable to same sex relationships, establishing a constitutional right to sexual freedom


Keywords: Family; human; homosexual; rights


Sumário: I. Conceito e finalidade dos direitos fundamentais. II. As gerações de direitos fundamentais. III. Dos direitos à liberdade e à igualdade. IV. Do princípio da dignidade da pessoa humana. V.Do direito à liberdade sexual.


I. Conceito e finalidade dos direitos fundamentais


Ao longo da história foram cunhadas inúmeras expressões para designar os direitos fundamentais do homem, o que dificulta a elaboração por parte da doutrina de uma conceituação sintética.[1]


Dentre as diversas denominações, destacam-se direitos naturais (relativos à natureza do homem), direitos inatos (cabem ao homem só pelo fato de ser homem), direitos humanos (no sentido de que apenas os seres humanos são titulares desses direitos), direitos individuais (expressão aos poucos desprezada pela doutrina, no sentido de que os direitos são do indivíduo, isoladamente), direitos públicos subjetivos (exprime a situação jurídica subjetiva do indivíduo em relação ao Estado), entre outras[2].


Na lição de José Afonso da Silva, inspirado nos estudos de Perez Luño:


“Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.”[3]


O alemão Konrad Hesse entende que os direitos fundamentais têm a finalidade de manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade da pessoa humana. Todavia, o conceito não é indissociável da acepção positivista de direitos fundamentais, aos quais seriam aqueles que o direito vigente qualifica como tais[4].


Carl Schmitt coaduna com o conceito positivista de Hesse, no sentido de que direitos fundamentais seriam aqueles garantidos pelo instrumento constitucional. Não obstante, o jurista afirma que uma mesma Constituição pode distingui-los de outros preceitos constitucionais por meio de um elevado grau de segurança, impedindo ou dificultando posteriores alterações[5], como ocorre na Constituição Federal do Brasil de 1988, que não apenas é expressa ao destacar o “Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, como, em seu artigo 60, §4º, inciso IV, veda expressamente proposta que pretenda abolir os direitos e garantias fundamentais, ainda que por emenda constitucional.


Assim, o caráter fundamental de um direito não está no fato dele estar presente no Diploma Maior de um Estado, mas sim em sua importância para o ser humano, individual ou coletivamente. Nesse sentido, os escritos de André Ramos Tavares:


“(…) é preciso também afastar a possibilidade de que “preceito fundamental” seja toda e qualquer norma contida na Lei Fundamental. Se, teoricamente, essa construção é admissível, o mesmo não ocorre quanto ao vigente sistema constitucional. (…) É preciso garantir “a relevância de cada palavra constitucionalmente empregada”, não se podendo pretender simplesmente ignorar a letra da Constituição para poder construir um significado arbitrariamente. Portanto, quando a Constituição fala de “preceito fundamental” não está a se referir à Constituição como um todo”.[6]


Para Alexandre de Moraes, a finalidade dos direitos fundamentais está na criação de limitações e garantias, impostas pelo próprio povo, titular do poder constituinte originário, nas relações entre indivíduos e o Estado e entre os próprios indivíduos.[7] Nesse sentido, o jurista brasileiro invoca os estudos do português J.J. Gomes Canotilho, assim transcrito em sua obra, in verbis:


“(…) a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”.[8]


Dessa forma, a finalidade dos direitos fundamentais está em evitar agressões injustas por parte do Poder Público, bem como garantir a livre execução dos direitos positivados


II. As gerações de direitos fundamentais


Os direitos fundamentais surgem como uma expressão positivada dos direitos considerados inatos, naturais a todo ser humano, fontes de inspiração do primeiro documento que procurou sintetizar de forma universal as garantias individuais, a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, elaborada no curso da Revolução Francesa[9].


Os direitos garantidos na Declaração francesa ilustram, de forma abstrata, “direitos naturais, inalienáveis e sagrados” de liberdade individual frente ao estado e da garantia da propriedade privada, introduzindo de forma normativa os direitos de liberdade, chamados, posteriormente, a partir da lição de Karel Vasak, de direitos fundamentais de primeira geração[10].


Um século mais tarde, a partir da crescente industrialização dos países ocidentais, ainda sob o eco dos ideais da Revolução Francesa (“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”) surgem no direito positivo os direitos de igualdade, que são todos aqueles direitos de âmbito social, econômico e da coletividade, que foram chamados de direitos fundamentais de segunda geração[11].


“(…) o começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores da liberdade das nações e das normas de convivência internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trab”alho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc.[12]


Os direitos fundamentais de terceira geração surgiram a partir do ideal de fraternidade, que ganharam contornos contemporâneos a partir da segunda metade do Século XX, em um mundo dividido por conflitos bélicos e desigualdade econômica, que engatinhava rumo à globalização, trazida pela mídia de massa e pelos avanços nos meios de transporte. Vasak enumera ao menos cinco direitos fundamentais de terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação[13].


Em breve síntese sobre as três gerações de direitos fundamentais, Alexandre de Moraes transcreve voto do Ministro Celso de Mello:


“(…) enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.”[14]


A partir da globalização cultural, econômica e da relativização dos Estados nacionais, Paulo Bonavides, entre outros autores, como Celso Lafer[15], sugere a conceituação dos direitos fundamentais de quarta geração, refletidos nas garantias de liberdade de informação, pluralismo e, em especial na democracia, que não apenas reforçam o poder do povo sobre o Estado, mas atuam como garantidores dos direitos das outras três gerações, em especial da liberdade e da igualdade[16].


Atualmente, os direitos fundamentais adquiriram um caráter de universalização, próximo da proposta da Revolução Francesa de proteger os direitos naturais dos seres humanos, em que diversos Estados abrem mão de uma parcela de sua soberania constitucional ao assinarem tratados internacionais de proteção e garantia aos direitos fundamentais, individuais, difusos e coletivos. O principal desses documentos é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que sintetiza os direitos garantidos até então e irradia a todos os Estados signatários os direitos humanos, a fim de que nenhuma de suas Constituições suprima ou lesione esses direitos[17].


Maria Berenice Dias, citando o jurista Sérgio Resende de Barros, resume de forma clara a importância adquirida pelos direitos fundamentais na sociedade contemporânea, a partir de sua evolução histórica:


“A evolução dos direitos humanos atingiu seu ápice, a sua plenitude subjetiva e objetiva. São direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os sujeitos, para proteger tudo que condiciona a vida humana, fixados em valores ou bens humanos, patrimônio da humanidade, segundo padrões de avaliação que garantam a existência com a dignidade que lhe é própria.”[18]


Segundo Barros, os direitos fundamentais traduzem o humanismo íntegro, “a humanidade, em toda a sua plenitude, subjetiva e objetiva, individual e social”[19].


III. Dos direitos à liberdade e à igualdade


A liberdade e a igualdade, conforme exposto anteriormente, são reconhecidas pela doutrina enquanto direitos fundamentais de primeira e segunda geração, respectivamente, possuindo sua origem legislativa expressa na já citada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, especialmente em seus artigos 1º, 4º e 5º, traduzidos, in verbis:


“Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. (…)


Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.


Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.”


Assim, no final do Século XVIII, os revolucionários franceses entendiam a liberdade enquanto direito indissociável da igualdade, como demonstra o artigo 1º da Declaração, sendo ambos direitos naturais do homem, restringidos apenas pelos direitos de outros indivíduos, limites estes estabelecidos pela lei.


No Século XX, a Organização das Nações Unidas (ONU), ao editar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reforçou o caráter soberano e indissociável dos direitos à liberdade e à igualdade:


Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.


Artigo 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.“


Artigo 3° Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.


Maria Berenice Dias, ao tratar do princípio da liberdade, ressalta a relação existente entre ela e a igualdade, vez que sem a segunda, a primeira perderia qualquer sentido:


“A liberdade e a igualdade – correlacionadas entre si – foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana. O papel do direito – que tem como finalidade assegurar a liberdade – é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. Parece um paradoxo. No entanto, só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade.”[20]


José Afonso da Silva conceitua liberdade a partir da lição de Jean Rivero, de que ela é “(…) um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal[21]”. O jurista brasileiro entende que esse direito fundamental se constitui na “(…) possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal” [22]. O autor vai além, afirmando que a liberdade:


“(…) é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente.”[23]


Quanto ao direito fundamental da igualdade, José Afonso da Silva afirma que o sentido trazido pelos tratados internacionais e pelas constituições em geral é um sentido formal, abstrato, de caráter programático, não englobando as igualdades e desigualdades existentes entre cada indivíduo isoladamente[24]. Na visão do autor, a igualdade perante a lei trazido por esses inúmeros documentos trata-se do corolário do princípio da isonomia, “consistente no tratamento igual a situações iguais e tratamento desigual a situações desiguais”[25].


Assim ensina Alexandre de Moraes, in verbis:


“Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é a exigência tradicional do conceito de Justiça, pois o que realmente se protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito (…).”[26]


A liberdade e a igualdade são direitos fundamentais reconhecidos expressamente pela Constituição Federal de 1988 enquanto objetivos da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º, incisos I e IV, do diploma constitucional  e no artigo 5º, “caput”, e incisos I, II, IV, VI, IX.


Ademais, o preâmbulo da Carta Magna brasileira também reconhece a liberdade como um dos fins do Estado Democrático instituído pela Constituição, in verbis:


“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.


Por mais que o texto introdutório da Constituição Federal não seja uma norma constitucional, o preâmbulo pode ser definido como um documento de intenções do diploma, tanto uma certidão da origem democrática da Carta, como uma proclamação de princípios, que rompem com o ordenamento constitucional anterior. O preâmbulo traça as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, constituindo-se uma de suas linhas interpretativas[27]. Como afirma Alexandre de Moraes, ao citar o Ministro Carlos Velloso e o jurista argentino Juan Bautista Alberdi:


Apesar de não fazer parte do texto constitucional propriamente dito e, conseqüentemente, não conter normas constitucionais de valor jurídico autônomo, o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem.


(…) o preâmbulo deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para a atividade política do governo”[28].


Assim, a liberdade, consistente no direito subjetivo de buscar a felicidade e a satisfação pessoal, podendo fazer tudo aquilo não vedado pela lei, no limite da liberdade de outrem, é direito fundamental, isto é, inato, natural a todo ser humano, sendo reconhecido pela Constituição Federal de 1988 enquanto objetivo do Estado Democrático brasileiro e princípio que se irradia a todo ordenamento jurídico pátrio, especialmente para o Direito de Família.


IV. Do princípio da dignidade da pessoa humana


A dignidade da pessoa humana, conforme o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, consistindo, nas palavras de José Afonso da Silva, em “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.[29]


Importante citar a lição de Maria Berenice Dias:


“Na medida em que a ordem constitucional elevou a dignidade da pessoa humana a fundamento da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, ligando todos os institutos à realização de sua personalidade. Tal fenômeno provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito. O princípio da dignidade humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.”[30]


Trata este princípio de garantir não apenas os direitos fundamentais e sociais a todos os indivíduos, mas também proteger a personalidade, a vida privada e todos os valores que consistem na base da existência humana.[31]


Em relação à vida privada, na lição de André Ramos Tavares, importante distingui-la do conceito de intimidade. Enquanto esta refere-se ao direito individual de não ter sua vida pessoal, sua esfera íntima invadida pela atuação do Estado e de outros indivíduos, a vida privada “diz respeito ao modo de ser, de agir, enfim, o modo de viver de cada pessoa. Em poucas palavras, importa em reconhecer que cada um tem direito a seu próprio estilo de vida”.[32]


A dignidade da pessoa humana é um princípio nuclear da ordem constitucional, maior fundamento do Estado Democrático de Direito, que se irradia a todos os princípios e direitos constitucionais e a todo ordenamento jurídico brasileiro, sendo o mais universal de todos os princípios.[33]


Nas palavras do jurista Alexandre de Moraes, in verbis:


“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”[34]


O jurista Daniel Sarmento, citado na obra de Maria Berenice Dias, entende ser a dignidade da pessoa humana o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e limitando não apenas a atuação do Estado, mas todas as relações sociais.[35]


Enquanto princípio que se reflete em todo o ordenamento jurídico brasileiro, é na dignidade da pessoa humana que encontra-se o fundamento norteador do Direito de Família, instituição constitucionalmente protegida e base da sociedade.[36] Assim, este princípio apenas é garantido se forem preservadas as qualidades essenciais das relações familiares, a saber, o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo, dessa forma, o desenvolvimento pessoal e social de cada membro da entidade familiar.[37]


Ao resguardar a dignidade humana, a Constituição Federal garante ao ser humano o direito a uma existência digna, na qual são resguardadas a sua intimidade, personalidade e individualidade, a fim de que cada indivíduo busque a felicidade da forma como bem entender, desde que dentro dos limites dos direitos dos outros indivíduos. Assim, a garantia da dignidade do ser humano só é possível se forem resguardados os direitos fundamentais, em especial a igualdade e a liberdade, estudados em tópico anterior.


A fim de proteger o princípio maior do direito pátrio, a dignidade da pessoa humana, é dever do Estado garantir a todos os indivíduos o exercício dos direitos ditos fundamentais, como a igualdade, a liberdade, a intimidade e a busca da felicidade, em especial quando a acesso desses direitos está diretamente ligado à liberdade de constituir uma família, da forma como melhor lhe convier e com a pessoa que quiser, sem que o Poder Público ou qualquer outro indivíduo intervenha nesse direito.


Essa liberdade na constituição de uma entidade familiar deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou discriminação, seja o indivíduo homo ou heterossexual. A orientação sexual é qualidade íntima do ser humano, de sua personalidade, sendo ele livre para se relacionar com quem bem entender, seja a pessoa do mesmo gênero ou de gênero diferente. A proteção da liberdade sexual e afetiva garante a igualdade entre todos os seres humanos, independentemente de orientação sexual, como será visto a seguir.


Não pode o Estado ou qualquer indivíduo intervir, por ação ou omissão, na personalidade ou na intimidade, caso contrário se estaria diante de afronta ao fundamento maior da República do Brasil, a dignidade da pessoa humana, que garante a todos os seres humanos, sem exceção, uma existência digna e o direito à busca da felicidade, seja ela qual for, desde que não invada a liberdade dos demais indivíduos. Ressalta-se os escritos de André Ramos Tavares, a partir d”o magistério de Pedro Luño, in verbis:


A dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O pleno desenvolvimento da personalidade pressupõe, por sua vez, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possíveis atuações próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes de uma predeterminação dada pela natureza.”[38]


V. Do direito à liberdade sexual


Conforme exposto anteriormente, são objetivos da República Federativa do Brasil a constituição de uma sociedade livre e igualitária, corolários que encontram proteção desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e que ganharam uma proteção universal, internacionalizada, durante o Século XX.


A garantia de tais direitos, chamados de fundamentais, é conseqüência e ao mesmo tempo pressuposto do mais amplo e importante princípio do ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana. Este princípio, fundamento do Estado Democrático brasileiro, consiste no direito de cada indivíduo ter uma existência digna, baseada na liberdade, na igualdade e na solidariedade, bem como na garantia dos direitos fundamentais previstos na Magna Carta, a fim de dar condições ao ser humano de buscar a felicidade, da forma que lhe convier.


A Constituição Federal é explícita ao vedar todo e qualquer tipo de discriminação, garantindo, ainda, que todos os indivíduos são livres e iguais perante a lei. A liberdade concedida a cada indivíduo apenas é limitada pela liberdade das demais pessoas.


Assim, desde que não viole os direitos de outrem, todos os brasileiros tem o direito à igualdade jurídica, isto é, à igualdade de direitos, e a liberdade a fazer tudo àquilo que a lei não proíbe. A limitação ou supressão desses direitos, considerados fundamentais, implica em violação da dignidade da pessoa humana, violação à democracia, ofensa à Constituição Federal.


Estão protegidos pelo direito à liberdade o pensamento, a personalidade, a intimidade, a vida privada, a livre iniciativa, a locomoção e todos os direitos relativos à manifestação física ou psíquica, que não podem ser tolhidos dos indivíduos sem um justo motivo. Dessa forma, todo tipo de liberdade individual pode e deve ser considerado direito fundamental, objeto de proteção constitucional.


Dentre as mais diversas expressões da liberdade, da personalidade e da individualidade humana está a liberdade sexual, isto é, o direito de, em sua vida privada, expressar sua sexualidade da forma que melhor lhe convier. Assim como ocorre com as outras liberdades, a dignidade da pessoa humana depende da livre expressão sexual, inclusive a livre orientação sexual. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “ninguém pode se realizar como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual.”[39]


Não permitir a um ser humano a livre orientação sexual, isto é, o direito de relacionar-se com uma pessoa do gênero oposto ou do mesmo sexo, é retirar-lhe o direito à intimidade, à livre busca da felicidade. Privar um indivíduo de sua sexualidade é oferecer a este ser humano uma vida indigna, seja ele homo ou heterossexual, podendo novamente citar-se o magistério de Maria Berenice Dias:


“A identificação do gênero do objeto de desejo, se masculino ou feminino, é o dado revelador da orientação sexual, opção essa que não pode merecer tratamento diferenciado. O fato de a atenção ser direcionada a alguém do mesmo ou de distinto sexo não pode ser alvo de tratamento discriminatório, pois tem por base o próprio sexo da pessoa que faz a escolha. A decisão judicial que adote por critério, não a efetiva conjunção das pessoas, de suas próprias vidas, mas a mera coincidência de sexos parte de um preconceito social.”[40]


Muito se argumenta, em decorrência, principalmente, da origem Católica Apostólica Romana da sociedade e do Direito brasileiro, que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo é imoral e não deveria ser protegido pelo Estado, em especial, por não ser possível a procriação natural, objetivo precípuo das relações sexuais e da família. Trata-se de um argumento retrógrado e leviano, como se depreende da lição de Maria Berenice Dias:


“A espécie humana é a única em que há a separação psíquica e física entre o ato sexual prazeroso e a função procriativa. Dessa separação, e na medida em que ela ocorre, nasce a liberdade de orientação sexual, que se tornou inerente ao homem. Indivíduos de ambos os sexos têm o direitos de entreter uma relação sexual além da simples necessidade de reprodução, inclusive com pessoa do mesmo sexo, o que não afronta os conceitos das sociedades historicamente desenvolvidas. Não cabe mais desfigurar para desproteger, senão por preconceitos que, presos ao passado, distorcem no presente a evolução e a história da humanidade.”[41]


Em nada diferencia, enquanto ser humano, um indivíduo homossexual ou heterossexual. Ambos são sujeitos de direito, protegidos pela Constituição Federal, sendo vedada qualquer discriminação em razão da tendência ou orientação afetiva, vez que essa é uma característica da própria natureza humana, que abrange sua dignidade[42], e que não ofende os direitos ou a liberdade dos demais indivíduos.


Para a proteção estatal da livre orientação sexual, independe que o tratamento igualitário entre homossexuais e heterossexuais esteja ou não expressamente previsto no “caput” do artigo 5º da Constituição Federal, haja vista que o já transcrito artigo veda distinções de qualquer natureza.


Ao tratar desse artigo constitucional, o jurista José Afonso da Silva afirma:


“A questão mais debatida feriu-se em relação às discriminações dos homossexuais. Tentou-se introduzir uma norma que vedasse claramente, mas não se encontrou expressão nítida e devidamente definida que não gerasse extrapolações inconvenientes. Uma delas fora conceder igualdade, sem discriminação de orientação sexual, reconhecendo, assim, na verdade, não apenas a igualdade, mas igualmente a liberdade de as pessoas de ambos os sexos adotarem a orientação sexual que quisessem. Teve-se receio de que essa expressão albergasse deformações prejudiciais a terceiros. Daí optar-se por vedar distinções de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação, que são suficientemente abrangentes para recolher também aqueles fatores, que têm servido de base para desequiparações e preconceitos”.[43]


A orientação sexual nada mais é do que um direito inerente à personalidade do indivíduo, que apenas tem importância para o próprio, dentro de sua vida privada.  Impossível deixar de trazer as palavras de Maria Berenice Dias:


“A orientação que alguém imprime na esfera de sua vida privada não admite restrições a quaisquer direitos. Há de se reconhecer a dignidade existente na união homoafetiva. O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo. A sexualidade está dento do campo da subjetividade, representando fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, e partilhar a cotidianidade da vida em parcerias estáveis e duradouras parece ser um aspecto primordial da existência humana.[44]


Despender tratamento diferenciado àquele que se relaciona com pessoas do mesmo sexo é discriminar o indivíduo por uma característica particular, por uma expressão que deveria ser livre, e não se tornar motivo de tratamento desigual.


 


Notas:

[1] SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 179.

[2] Ibid., p. 180-182.

[3] Ibid., p. 182.

[4] HESSE apud BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 560.

[5] SCHMITT, 1954. p. 163-173  apud BONAVIDES, 2008. p. 561.

[6] TAVARES, A. R. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 122.

[7]MORAES, A. de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 25.

[8] CANOTILHO, 1993. p. 541 apud MORAES, 2006. p. 25.

[9] BONAVIDES, 2008. p. 562.

[10] BONAVIDES, 2008. p. 563.

[11] Ibid., p. 564.

[12] CAVALCANTI, 1966. p. 202 apud MORAES, 2006. p. 26.

[13] BONAVIDES, op. cit., p. 569.

[14] MELLO, 1995 apud MORAES, 2006. p. 26.

[15] LAFER, 1988 apud MORAES, 2006. p. 27.

[16] BONAVIDES, 2008. p. 571-572.

[17] BONAVIDES, 2008. p. 573-575.

[18] DIAS, M. B. União homossexual: O preconceito e a justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 72-73.

[19] BARROS apud Ibid., p. 73.

[20] DIAS, 2009. p. 63.

[21] RIVERO, in SILVA, 1998. p. 236.

[22] SILVA, 1998. p. 236.

[23] Ibid., p. 236.

[24] SILVA, 1998. p. 218-219.

[25] Ibid., p. 226.

[26] MORAES, 2006. p. 31.

[27] MORAES, 2006. p. 15.

[28] Ibid., p. 15.

[29] SILVA, 1998. p. 109.

[30] DIAS, 2009. p. 62.

[31] SILVA, 1998. p. 109.

[32] TAVARES, 2008. p. 627.

[33] DIAS, 2009. p. 61.

[34] MORAES, 2006.

[35] SARMENTO, 2000. p. 71 apud DIAS, 2009. p. 62.

[36] DIAS, 2009. p. 62.

[37] Ibid., p. 62.

[38] LUÑO, 1995. p. 318 apud TAVARES, 2008. p. 542.

[39] DIAS, 2009. p. 188.

[40] DIAS, 2006. p. 76.

[41] DIAS, 2006. p. 76.

[42] DIAS, 2008. p. 188.

[43] SILVA, 1998. p. 227.

[44] DIAS, 2006. p. 77.


Informações Sobre o Autor

Matheus Antonio da Cunha

Advogado criminal de Piracicaba/SP; graduado em Direito pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba; associado ao escritório Pedroso Advogados Associados


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