Noções básicas de vitimologia

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Resumo: No presente artigo o autor apresenta os principais aspectos relacionados à Vitimologia; analisa os motivos pelos quais algumas pessoas têm uma tendência maior para se tornarem vítimas de delitos; e, por fim, indica algumas possibilidades de mitigação dos danos causados às referidas vítimas. [1]

Palavras-Chave: Vitimologia – Classificação – Evolução – Graus – Vitimação

Abstract: In this article the author presents the main aspects of Victimology; examines the reasons why some people are more likely to become victims of crime, and, finally, shows some possibilities of mitigating the damage caused to these victims.

Keywords: Victimology – Classification – Evolution – Degrees – Victimization

Sumário: 1) Aspectos introdutórios a respeito da dupla penal delinquente-vítima; 2) Conceito e classificação das vítimas; 3) Conceito de Vitimologia e seu desenvolvimento no Brasil; 4) Evolução dos mecanismos legais de amparo à vítima; 5) Graus de vitimação, consequências e alternativas; 6) Peculiaridades da Vitimologia nos crimes sexuais; 7) Considerações Finais.

1) Aspectos introdutórios a respeito da dupla penal delinquente-vítima

De acordo com Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina “há anos vem a Vitimologia (…) estudando a vítima e suas relações, seja com o infrator, seja com o sistema” (2010, p. 479). A relação existente entre a vítima e o infrator, especificamente, passou a ser chamada pela doutrina de dupla penal.

Importante consignar que, na maioria dos casos, a dupla penal é caracterizada pela contraposição delinquente x vítima, ou seja, as circunstâncias relacionadas ao crime deixam bastante claro que a vítima impôs resistência, não colaborando com o resultado delituoso.

Em outras hipóteses, entretanto, o que se verifica é que a dupla penal não é tão contraposta assim, isto é, a vítima desempenha um papel coadjuvante (às vezes até inconsciente) no desfecho do delito. Nesses casos a dupla penal não é caracterizada pela contraposição, mas sim pela harmonia, uma vez que tanto a vontade do agente ofensor quanto a vontade da vítima, de uma forma ou de outra, são convergentes.

A análise do papel desempenhado pela vítima no contexto criminoso é de fundamental importância uma vez que, verificando-se sua participação inconsciente no delito ou sua culpa, o crime poderia se tornar irrelevante ou, até mesmo, deixar de existir.

Além dessa análise acerca da colaboração da vítima com o resultado danoso é imprescindível, também, que sejam verificados os aspectos relacionados à sua personalidade, antecedentes e condições pessoais, pois se tratam de elementos que podem influenciar na classificação do crime e na aplicação da pena.

Edgard de Moura Bittencourt, invocando o ensinamento de Walter Raul Sempertegui, assevera que “essa brilhante concepção traz como consequência que a vítima adquire relevante preponderância no estudo do delito e que se elimine o critério que a reduzia à condição de passiva receptora da ação delituosa. E assim igualmente se destrói a insuficiente afirmação de que só o delinquente pode decifrar o problema do crime, sem considerar que sua existência como tal só é possível com a correlata existência da vítima e que toda ação dirigida única e exclusivamente ao delinquente fundar-se-á sobre bases falsas” (1971, p. 21).

Diante disso nota-se a imprescindibilidade de se considerar o sujeito-vítima como objeto de outra investigação positiva na apuração de um delito.

Em outras palavras isso significa que os operadores do direito (em especial o magistrado), ao analisarem um determinado fato criminoso, devem levar em conta, também, as circunstâncias do crime e o comportamento da própria vítima, conforme determina o artigo 59, caput, do Código Penal, uma vez que esta, em alguns casos, é a principal responsável pela concretização de um crime e, dessa forma, não deve ser vista como lesada.

Conforme lição de Edgar de Moura Bittencourt o propósito é “contribuir para que o legislador e o juiz criminal sejam advertidos do problema, hoje bem focalizado pela Vitimologia (…), tentando mostrar que na terapêutica e na profilaxia do crime, o estudo da vítima conduz a resultados satisfatórios para decisões justas e humanas e para prevenções de crimes” (1971, p. 88).

Trata-se da análise racional da dupla penal delinquente-vítima, “em vista dos antecedentes do fato, da personalidade de cada um dos sujeitos do crime e de sua conduta nas cenas que culminaram na infração penal. A vítima será então estudada não como efeito nascido ou originado na realização de uma conduta delituosa, senão, ao contrário, como uma das causas, às vezes principalíssima, que representa na produção dos crimes. Ou, em outras palavras, a consideração e a importância que se deve dar à vítima, na etiologia do delito” (BITTENCOURT, 1971, p. 84).

Assim, de acordo com a doutrina, a participação da vítima no resultado fático não pode ser desconsiderada, uma vez que, em muitos casos, seu comportamento tem o poder de excluir o fato típico (a tipicidade deixa de existir) ou a culpabilidade do agente (em virtude da aplicação da teoria conhecida como inexigibilidade de conduta diversa).

Entretanto, para a validade desta teoria, é imprescindível que cada caso concreto seja analisado de forma aprofundada e, mesmo assim, é importante ressaltar que sua aplicação deve ser feita de maneira extremamente cuidadosa.

A esse respeito adverte Aníbal Bruno, citado por Edgard de Moura Bittencourt, ao dizer que “fora das hipóteses tipificadas no Código não há de ser sem rigorosa cautela que se admitiria o poder de exculpação do princípio da não exigibilidade. Não é que, deliberadamente, só por exceção se deva aplicar o princípio. Mas excepcional é, na realidade, o aparecimento de casos em que, de fato, fora da tipificação da lei, se possa dizer que, razoavelmente, e tendo em vista os fins do Direito Penal, não era exigível do agente um comportamento conforme a norma” (1971, p. 71).

Com essas reservas, a mencionada teoria tem sido acolhida, sem embargo de sua contestação por vários autores, e sua aplicação tem sido aceita em casos de delitos que, de alguma forma, contaram com a participação da vítima.

Além da análise do comportamento da vítima (em especial antes e durante o evento criminoso), outro aspecto que merece atenção é aquele relacionado à palavra da vítima como prova judiciária.

Com efeito. O juiz deve averiguar se a palavra da vítima é convincente e, também, verificar seu fator biológico (personalidade), no que concerne ao modo pelo qual a vítima narra o fato ocorrido. Somente agindo dessa forma o magistrado tem reais condições de proferir uma decisão justa.

Elemento importante para o crédito da palavra da vítima é o modo firme com que presta as suas declarações. Geralmente se aceita a palavra da vítima, quando as suas declarações “são de impressionante firmeza, acusando sempre o réu e de forma inabalável” (RT 269-136).

Porém, tal assertiva também não pode deixar de ser aceita com alguma reserva, tendo em vista a personalidade da vítima. Isso porque há pessoas que mentem com mais firmeza do que os tímidos dizem a verdade. A convicção do depoimento aumenta a sua credibilidade, mas não exclui o confronto com as demais circunstâncias, para encontrar-se algum apoio, ao menos conjectural, de certa expressão.

É claro que em alguns crimes, como, por exemplo, os de cunho sexual que deixam vestígios (equimoses, rotura do hímen, gravidez, esperma na cavidade vaginal, etc.), o perito deverá considerar todos esses elementos, além da palavra da vítima.

O problema, entretanto, é que em boa parte dos casos, devido à ausência de tais vestígios, há uma grande dificuldade para o esclarecimento do delito e são justamente nesses casos que a palavra da vítima assume relevante papel, por servir, muitas vezes, como único meio de prova.

Todavia, conforme observa Edgard de Moura Bittencourt, “é bem de ver que, tanto apontando o autor do crime como afirmando sua materialidade não revelada por outros meios probatórios, a palavra da vítima pode ser fruto de uma ideia preconcebida, ou criada pela imaginação traumatizada” (1971, pp. 104/105).

Daí a necessidade de o perito realizar um trabalho de fôlego em cada caso concreto, esquadrinhando a mente da vítima, a fim de constatar a credibilidade de sua versão dos fatos e verificar se houve, ou não, participação sua, ainda que mínima, no desfecho do delito.

Dessa forma, estando o magistrado amparado por um laudo pericial desse jaez, as decisões proferidas nos processos criminais tendem a se aproximar, cada vez mais, do valor conhecido como Justiça.

2) Conceito e classificação das vítimas

A palavra vítima, derivada do latim victima, é definida no dicionário da seguinte forma: “criatura viva, imolada em holocausto a uma divindade; pessoa sacrificada aos interesses ou paixões de outrem; pessoa assassinada ou ferida; pessoa que sucumbe a uma desgraça ou que sofre algum infortúnio; tudo o que sofre qualquer dano; sujeito passivo do ilícito penal; aquele contra quem se comete um crime ou contravenção” (FERREIRA, 1987, p. 1251).

Todavia, na literatura especializada, em especial em sede de Vitimologia, são muitas as definições de vítima que se tem encontrado, sendo importante transcrever algumas delas, a título de ilustração.

O famoso professor de Criminologia e advogado em Jerusalém, Benjamin Mendelsohn, considerado por muitos o Pai da Vitimologia Moderna, conceitua vítima nos seguintes termos: “é a personalidade do indivíduo ou da coletividade na medida em que está afetada pelas consequências sociais de seu sofrimento, determinado por fatores de origem muito diversificada: físico, psíquico, econômico, político ou social, assim como do ambiente natural ou técnico” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 88).

A vitimóloga Ana Isabel Garita Vilchez, por sua vez, define vítima como “a pessoa que sofreu alguma perda, dano ou lesão, seja em sua pessoa propriamente dita, sua propriedade ou seus direitos humanos, como resultado de uma conduta que: a) constitua uma violação da legislação penal nacional; b) constitua um delito em virtude do Direito Internacional; c) constitua uma violação dos princípios sobre direitos humanos reconhecidos internacionalmente ou d) que de alguma forma implique um abuso de poder por parte das pessoas que ocupem posições de autoridade política ou econômica” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 88).

Para Paul Z. Separovic vítima é “qualquer pessoa física ou moral, que sofre com o resultado de um desapiedado desígnio, incidental ou acidentalmente” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 89).

Por fim, Luis Rodríguez Manzanera leciona que “vítima é o indivíduo ou grupo que sofre um dano, por ação ou por omissão, própria ou alheia, ou por caso fortuito” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 90).

Nesse instante já é possível verificar a impossibilidade de se tentar elaborar um conceito único de vítima, uma vez que tal definição, conforme ensina Manzanera, vai depender do “paradigma científico do modelo e da ideologia adotada e vice-versa: cada teoria, tendência ou perspectiva elaborará sua definição de vítima” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 90).

Se já é difícil expor, sob o ponto de vista técnico, uma definição completa do que seja vítima, não menos conturbada se apresenta a questão relacionada à classificação das vítimas, uma vez que cada estudioso do assunto apresenta uma classificação distinta, como se verá a seguir.  

Para Benjamin Mendelsohn, as vítimas podem ser classificadas da seguinte forma:

a) Vítima completamente inocente ou vítima ideal: “é aquela que não tem nenhuma participação no evento criminoso”, isto é, “o delinquente é o único culpado pela produção do resultado. Exemplos: sequestros, roubos qualificados, terrorismo, vítima de bala perdida, etc.” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 47).

b) Vítima menos culpada do que o delinquente ou vítima por ignorância: é aquela que “contribui, de alguma forma, para o resultado danoso, ora frequentando locais reconhecidamente perigosos, ora expondo seus objetos de valor sem a preocupação que deveria ter em cidades grandes e criminógenas” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 47).

c) Vítima tão culpada quanto o delinquente: é aquela cuja participação ativa é imprescindível para a caracterização do crime. Exemplo: estelionato caracterizado pela torpeza bilateral.

d) Vítima mais culpada que o delinquente ou vítima provocadora: os exemplos mais frequentes dessa modalidade encontram-se nas lesões corporais e nos homicídios privilegiados cometidos após injusta provocação da vítima.

e) Vítima como única culpada, cujos exemplos apontados pela doutrina são os seguintes: “indivíduo embriagado que atravessa avenida movimentada vindo a falecer atropelado, ou aquele que toma medicamento sem atender o prescrito na bula, as vítimas de roleta-russa, de suicídio, etc.” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 48).

Para o professor alemão Hans Von Hentig, as vítimas podem ser classificadas como:

 a) Vítima resistente, cujo principal exemplo mencionado pela doutrina é aquela que, agindo em legítima defesa, repele uma injusta agressão atual ou iminente.

b) Vítima coadjuvante e cooperadora: é aquela que concorre para a produção do resultado, seja devido à sua imprudência, negligência ou imperícia, seja por ter agido com má-fé.  

De acordo com o professor de Direito Penal da Universidade Central de Madrid (atual Universidade Complutense), Luis Jimenez de Asúa, as vítimas podem ser classificadas da seguinte maneira:

a) Vítima indiferente: é aquela que se pode chamar de vítima comum, ou seja, desconhecida pelos criminosos.

b) Vítima indefinida ou indeterminada: “é a chamada vítima da sociedade moderna, do desenvolvimento e do progresso científico. Exemplo: terrorismo, propaganda enganosa dos crimes contra o consumidor, etc., em que o crime atinge a coletividade em geral e o indivíduo em particular” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 50).

c) Vítima determinada: “é aquela conhecida do agente, como na extorsão mediante sequestro, nos furtos com abuso de confiança, na apropriação indébita, no homicídio por vingança, etc.” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 50).  

Para Guglielmo Gulotta, advogado, psicólogo e professor de Psicologia Forense da Universidade de Turim, as vítimas se classificam em:

a) Vítima falsa: simulada ou imaginária.

A vítima falsa simulada é aquela que atua conscientemente ao provocar o movimento da máquina judiciária, com o desejo de gerar um erro judiciário ou, ao menos, alcançar a impunidade por algum fato delitivo que tenha cometido.

A vítima falsa imaginária, por sua vez, é aquela que erroneamente crê, por razões psicopatológicas ou imaturidade psíquica, haver sido objeto de uma agressão criminal.

b) Vítima real: fungível ou não fungível.

As vítimas reais fungíveis podem também ser chamadas de inteiramente inocentes ou vítimas ideais, pois, caso venha a ocorrer um delito, sua relação com o criminoso é irrelevante e, justamente por isso, elas são substituíveis na dinâmica criminal. Em outras palavras, isso significa que o fato delitivo não se desencadeia com base em sua intervenção, consciente ou inconsciente.

É importante ressaltar que as vítimas reais fungíveis ainda se subdividem em duas subespécies: acidentais e indiscriminadas. As acidentais são aquelas colocadas, por azar, no caminho dos delinquentes como, por exemplo, aquela que se encontra num banco no exato momento em que um grupo de assaltantes ali adentra para roubá-lo. Já as indiscriminadas representam uma categoria mais ampla que a anterior, pois não sustentam, em nenhum momento, vínculo algum com o infrator como, por exemplo, as vítimas de atentados terroristas.

Por outro lado, as vítimas reais não fungíveis são aquelas que desempenham certo papel na gênese do delito. Daí serem consideradas insubstituíveis na dinâmica criminal. As vítimas reais não fungíveis também se subdividem, porém, em quatro subespécies: imprudentes, alternativas, provocadoras e voluntárias.

As imprudentes são aquelas que omitem as precauções mais elementares facilitando, dessa forma, a concretização de um crime. Exemplo: deixar à mostra um objeto valioso dentro de um veículo que esteja com os vidros abertos. As alternativas são aquelas que, deliberadamente, se colocam em posição de sê-lo, dependendo do azar sua condição de vítima ou de vitimário. Exemplo clássico mencionado pela doutrina é o duelo. As provocadoras são aquelas que fazem surgir o delito, precisamente, como represália ou vingança pela prévia intervenção da vítima. Exemplos são os homicídios privilegiados cometidos após injusta provocação da vítima. As voluntárias são aquelas que constituem o mais característico exemplo de participação. Nestes casos o delito é resultado da instigação da própria vítima ou de um pacto livremente assumido. Exemplo típico é a eutanásia.

Por fim, de acordo com o professor de Vitimologia Elias Neuman, as vítimas podem ser classificadas em:

a) Vítimas individuais: são as vítimas clássicas, ou seja, aquelas resultantes das primeiras investigações vitimológicas baseadas na chamada dupla penal. Em outras palavras, são  todas as pessoas físicas que figuram no polo passivo de um crime.

b) Vítimas familiares: são aquelas decorrentes de maus-tratos e de agressões sexuais produzidas no âmbito familiar ou doméstico, as quais recaem, geralmente, nos seus membros mais frágeis, como as mulheres e as crianças.

c) Vítimas coletivas: certos delitos lesionam ou põem em perigo bens jurídicos cujo titular não é a pessoa física. Destaca-se, assim, a despersonalização, a coletivização e o anonimato entre o delinquente e a vítima, que pode ser uma pessoa jurídica, a comunidade ou o próprio Estado. Exemplo dessa modalidade ocorre nos chamados delitos financeiros, nos crimes contra os consumidores, entre outros.

d) Vítimas da sociedade e do sistema social: essa modalidade vem se tornando cada vez mais corriqueira. Exemplos: mortes diárias nos corredores dos hospitais públicos devido à falta de leitos; homicídios cometidos por milícias, etc.  

Como se pode perceber, não obstante as classificações apresentadas sejam extremamente diversificadas, todas elas são dotadas de cientificidade e, como tal, devem ser respeitadas. Porém, vale ressaltar que a classificação de Benjamin Mendelsohn é a mais difundida entre os estudiosos do assunto.

3) Conceito de Vitimologia e seu desenvolvimento no Brasil

Antes de analisar o conceito de Vitimologia é importante verificar a questão pertinente à sua autonomia científica, uma vez que aquela conceituação pode variar caso se considere, ou não, a Vitimologia, como ciência autônoma.

Existem estudiosos que conferem autonomia científica à Vitimologia alegando a existência de objeto, método e fim próprios. Entretanto, a maior parte da doutrina entende não existir tal autonomia, considerando a Vitimologia mero ramo da Criminologia. Por fim encontram-se autores negando-lhe mesmo a possibilidade de existência, quer como ciência autônoma, quer como parte da Criminologia. É justamente a partir dessas considerações que se torna possível compilar alguns conceitos de Vitimologia encontrados na doutrina.

Dentre os adeptos da autonomia científica verifica-se a conceituação formulada por Ramírez González, que considera a Vitimologia como sendo “o estudo psicológico e físico da vítima que, com o auxílio das disciplinas que lhe são afins, procura a formação de um sistema efetivo para a prevenção e controle do delito” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 83).

Tem-se, ainda, a definição elaborada pela famosa criminóloga venezuelana, Lola Aniyar de Castro, para quem a Vitimologia é o “estudo da personalidade da vítima, tanto vítima de delinquente, quanto vítima de outros fatores, como consequência de suas inclinações subconscientes. O descobrimento dos elementos psíquicos do ‘complexo criminógeno’ existente na dupla penal, que determina a aproximação entre a vítima e o criminoso, quer dizer, ‘o potencial de receptividade vitimal’” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 83).

Por outro lado, entendendo que a Vitimologia é simples ramo da Criminologia, colhe-se na doutrina a definição formulada por Henry Ellenberger, para quem a Vitimologia é “um ramo da Criminologia que se ocupa da vítima direta do crime e que compreende o conjunto de conhecimentos biológicos, sociológicos e criminológicos concernentes à vítima” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 81).

O criminólogo Raúl Goldstein considera a Vitimologia como sendo “parte da Criminologia que estuda a vítima não como efeito consequente da realização de uma conduta delitiva, mas como uma das causas, às vezes a principal, que influenciam na produção de um delito” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 81).

Hans Göppinger ensina que a Vitimologia “representa de fato um determinado departamento do campo total relativamente fechado da Criminologia empírica, e, em particular, do complexo problema: o delinquente em suas interdependências sociais” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 81).

Por fim, negando a existência da Vitimologia encontra-se o posicionamento de Manuel Lopez Rey Y Arrojo, para quem a Vitimologia “não é mais que o resíduo de uma concepção superada da criminalidade e da Criminologia” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 128).

Todavia, vale lembrar que a quantidade de obras publicadas, o número cada vez maior de estudiosos do assunto e a infinidade de eventos relacionados à Vitimologia, não só no Brasil como no exterior, são fatores que falam por si e são capazes de demonstrar que este último posicionamento, extremamente radical, é voz isolada na doutrina.

Sem abordar a questão relacionada à existência ou não de autonomia científica da Vitimologia, pode-se afirmar que um dos mais completos conceitos apresentados pelos estudiosos do assunto foi elaborado por Eduardo Mayr, para quem a Vitimologia é “o estudo da vítima no que se refere à sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer do de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos” (apud MOREIRA FILHO, 2004, p. 23).

Tecidos esses esclarecimentos a respeito da definição de Vitimologia passa-se, agora, a analisar seu desenvolvimento no Brasil.

Para a maior parte da doutrina, a fundação da moderna Vitimologia é atribuída ao professor de Criminologia e advogado em Jerusalém, Benjamin Mendelsohn, que em 1947 proferiu uma conferência na Universidade de Bucareste, intitulada Um Horizonte Novo na Ciência Biopsicossocial – a Vitimologia.

Outros, porém, defendem que o verdadeiro criador da Vitimologia teria sido Hans Von Hentig, que em 1948 publicou a obra denominada O Criminoso e sua Vítima, onde deixou consignado que, na apreciação do fato criminoso a vítima tem idêntica importância à do infrator.

No Brasil, pelo que se sabe, o primeiro artigo relacionado à Vitimologia só veio à tona uma década depois, quando o trabalho de Paul Cornil, apresentado durante as Jornadas Criminológicas Holando-Belgas, fora transcrito na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Paraná, anos VI e VII, nº 06 e 07, de 1958 e 1959.  

A partir de então dezenas de profissionais, das mais variadas áreas do conhecimento humano (Direito, Medicina, Sociologia, Psicologia, etc.) e das mais diversas regiões do país passaram a dispensar maior atenção ao papel da vítima no contexto da realidade social.

Assim, autores da envergadura de René Ariel Dotti (Paraná), Armida Bergamini Miotto (Brasília), Edgard de Moura Bittencourt (São Paulo), Ester Kosovski (Rio de Janeiro), etc., começaram a se debruçar sobre o estudo da vítima, sendo que tais reflexões rapidamente começaram a produzir frutos.

Em 1964, a professora Armida Bergamini Miotto publicou, na Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, um artigo intitulado Considerações a respeito da denominada “Vitimologia”.

Anos mais tarde, em 1971, o professor Edgard de Moura Bittencourt lançou seu livro Vítima: a Dupla Penal Delinquente-Vítima, Participação da Vítima no Crime. Contribuição da Jurisprudência Brasileira para a Nova Doutrina.

Dois anos depois, em 1973, foi realizado em Jerusalém o I Simpósio Internacional de Vitimologia, sendo que “ilustres estudiosos brasileiros ali estiveram presentes, representando, com o seu saber, nossa vocação para esse novo ramo das ciências criminológicas” (PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 150).

Ainda no ano de 1973, na cidade de Londrina, no Estado do Paraná, foi realizado o I Congresso Brasileiro de Criminologia, onde muito se discutiu acerca do fenômeno da vitimação.

Já em 1976, em Boston, nos EUA, realizou-se o II Simpósio Internacional de Vitimologia onde, novamente, o Brasil estava bem representado, havendo participação ativa no evento, uma vez que o brasileiro Laércio Pellegrino expôs sobre o problema da vitimação pelo erro judiciário.

Em 28 de julho de 1984, num encontro de intelectuais realizado na cidade do Rio de Janeiro, foi fundada a Sociedade Brasileira de Vitimologia.

Três meses mais tarde, nos dias 27 a 31 de outubro de 1984 foi realizado, na cidade de Londrina-PR, o I Congresso Brasileiro de Vitimologia.

De 29 a 31 de maio de 1987, a Sociedade Brasileira de Vitimologia promoveu, novamente na cidade de Londrina-PR, o Simpósio Nacional Sobre a Culpa.

Nos dias 29 e 30 de junho de 1988 foi realizado, na cidade do Rio de Janeiro, o Colóquio Preparatório ao VI Simpósio Internacional de Vitimologia, que seria realizado na cidade de Jerusalém, de 28 de agosto a 1º de setembro de 1988.

A Sociedade Brasileira de Vitimologia foi responsável por promover o II Congresso Brasileiro de Criminologia, o qual foi realizado na cidade de Londrina-PR, nos dias 20 a 24 de agosto de 1988.

Já em 1989, durante os dias 17 a 26 de setembro foi realizado, na cidade do Rio de Janeiro, o 1º Colóquio Preparatório ao VII Simpósio Internacional de Vitimologia.

Em março de 1990, novamente na cidade do Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de Vitimologia promoveu o 2º Colóquio Preparatório ao VII Simpósio Internacional de Vitimologia.

No ano seguinte, mais especificamente nos dias 16 a 18 de julho de 1991 foi realizado o Seminário Preparatório ao VII Simpósio Internacional de Vitimologia.

Durante os dias 25 a 29 de agosto de 1991, o Rio de Janeiro foi o palco do VII Simpósio Internacional de Vitimologia.

Essa breve exposição das obras publicadas e dos eventos realizados a partir da década de 60 mostra, ainda que superficialmente, os esforços empreendidos pelos intelectuais brasileiros que se dedicam a temática relacionada à Vitimologia, podendo-se verificar, claramente, os avanços obtidos até agora.

Mais recentemente, inclusive, foram adotadas normas para organização e manutenção de programas especiais para proteção de vítimas, com a aprovação da Lei n.º 9.807, de 13 de julho de 1999, que dispõe sobre a matéria e institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas.

Para entrar nesse programa, para fins de instrução do pedido, o órgão executor poderá solicitar ao interessado, com a sua aquiescência, “exames ou pareceres técnicos sobre a sua personalidade, estado físico ou psicológico”, conforme estabelece o artigo 5º, § 2º, II, da referida lei.

Nota-se, com isso, que a perícia psiquiátrico-forense deve ser minuciosa, considerando não somente as condições psíquicas atuais, mas também todas as circunstâncias em relação ao crime, as ameaças recebidas e a necessidade de apoio e assistência social, médica e psicológica.

Por fim, para demonstrar que os estudos relacionados à Vitimologia continuam intensos no Brasil, conclui-se o presente tópico lembrando que no dia 26 de outubro de 2012 foi realizado o IX Seminário de Vitimologia, no Auditório Ministro Evandro Lins e Silva, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio de Janeiro, ocasião em que foram discutidos temas como: Vitimologia e Direitos Humanos; História, memória e aplicação da Vitimologia; A Vitimologia e o usuário de drogas; Vitimização do meio ambiente; O papel da educação frente à Vitimologia; etc.

4) Evolução dos mecanismos legais de amparo à vítima

A respeito da evolução dos mecanismos legais de amparo à vítima é fundamental ressaltar, desde logo, que, de acordo com a doutrina, existem dois grandes períodos que caracterizam a referida evolução, chamados, respectivamente, de antecedentes históricos remotos e próximos.

No que tange aos antecedentes históricos remotos é importante consignar que os mecanismos legais de amparo à vítima (considerado um dos mais importantes objetos de estudo da moderna Vitimologia, ao lado da análise da personalidade da vítima e de suas relações com o criminoso) remontam à antiguidade. Para corroborar tal assertiva basta verificar que muitos monumentos legislativos da antiguidade já demonstravam preocupação com a reparação do dano por atos ilícitos de seus vitimizadores.

Todos esses documentos históricos (que serão analisados a seguir) demonstram que as teses vitimológicas de socorro à vítima e de reparação do dano eram tidas, ora como imposição divina, ora como manifestação política dos governantes e ora como anseio de um povo sedento de justiça.

Quanto à característica da reparação do dano convém esclarecer que, apesar dos antigos desconhecerem o instituto da responsabilidade civil, em sua forma técnica, eles sabiam discernir, perfeitamente, um ato ou omissão que gerasse dano, de um acidente ou de uma conduta que não atingisse qualquer bem material ou moral de terceiros.

A respeito da evolução da responsabilidade civil, Francisco dos Santos Amaral Neto ensina que nos tempos primitivos a responsabilidade era coletiva, objetiva e penal. “Coletiva porque as ofensas pessoais e patrimoniais reparavam-se com a vingança privada contra o ofensor ou seu grupo social. Posteriormente, esse procedimento foi substituído pela entrega à vítima, pelo ofensor, de certa quantia em dinheiro, a título de pena. O Estado passa a intervir nesses conflitos particulares, fixando o valor do prejuízo e obrigando a vítima a aceitar a composição. A responsabilidade era simultaneamente de caráter penal e civil e independente da existência de culpa, donde sua denominação de objetiva” (1991, p. 598). Somente com o advento do Cristianismo, em especial através do Direito Canônico, é que se passou a estabelecer uma nítida distinção entre a matéria penal e a civil.

Atualmente, a Vitimologia procura estudar a complexa órbita da manifestação do comportamento da vítima face ao crime, numa visão interdisciplinar em seu universo biopsicossocial, procurando encontrar alternativas de proteção, material ou psicológica, às vítimas.

Retomando a análise dos antecedentes históricos remotos dos mecanismos legais de amparo à vítima, podem ser mencionados, dentre outros, os seguintes diplomas legislativos:

a) Código de Ur-Nammu: alguns arqueólogos afirmam que este é, provavelmente, o corpo de normas mais antigo de que se tem notícia. Pelo que tudo indica teria surgido, aproximadamente, no ano de 2028 a.C. Presume-se que seu autor tenha sido o fundador da terceira dinastia de Ur, do país dos primitivos povos sumerianos. Apesar de ser apontado como o mais antigo documento legislativo, somente em 1952 é que foi trazido à luz, podendo se verificar diversos dispositivos referentes à reparação dos danos causados à vítima.

A título de ilustração veja-se a seguinte passagem que, apesar de incompleta, demonstra claramente a preocupação com a reparação do dano: “Se um homem, a outro homem, com instrumento (…) o pé se cortou: 10 siclos de prata deverá pagar”.

Verifica-se, com isso, que a preocupação com a vítima remonta aos primórdios da civilização oriental, concluindo-se, assim, que há muito tempo um dos primeiros embriões da moderna Vitimologia começou a se formar.  

b) Código de Hammurabi: dotado de profundo sentimento de justiça, Hammurabi foi o sexto soberano da primeira dinastia babilônica e viveu entre os anos de 1728 e 1686 a.C., sendo responsável pela promulgação do famoso código de leis, que hoje leva seu nome, o qual foi de extrema importância na história dos direitos babilônicos, no direito asiático e, principalmente, na legislação dos hebreus.

Importante lembrar que nesse conjunto de normas encontram-se cerca de cinquenta referências expressas ao instituto de reparação do dano, um dos mais importantes objetos de estudo da Vitimologia.

A título de ilustração, o artigo 209 do Código de Hammurabi estatui que “Se um homem livre ferir a filha de um outro homem livre e, em consequência disso, lhe sobrevier um aborto, pagar-lhe-á 10 siclos de prata pelo aborto”.

Como se pode perceber, a reparação do dano foi uma das primeiras preocupações da Vitimologia, enquanto o estudo científico da personalidade da vítima somente veio a se tornar uma das propostas vitimológicas séculos depois.

c) Alcorão: trata-se do livro sagrado do Islamismo e, ao contrário do que muitos pensam, ele não foi escrito por Maomé que, para alguns, sequer sabia escrever. Ele apenas recitava o que lhe vinha à mente, acreditando ser-lhe transmitido pelo anjo Gabriel por ordem de Deus. Isso, por volta do ano 630.

A importância do Alcorão para o presente estudo reside no fato de que referido corpo de leis também se preocupou com a compensação de natureza patrimonial, em substituição ao exercício do direito de vingança privada.  

d) Código de Manu: a sistematização das leis sociais e religiosas do Hinduísmo, de acordo com pesquisas realizadas na mitologia hinduísta, foi tarefa levada a cabo por Manu. Daí o fato de tal conjunto legislativo levar o seu nome. Apesar do Código de Manu ser datado do século XIII ou XII a.C., já é possível verificar embrionárias manifestações da Vitimologia em alguns preceitos que impunham a reparação do dano, como, por exemplo, o artigo 224, em que o próprio rei poderia impor pesada multa a quem desse uma donzela com defeitos, sem antes haver prevenido o interessado. Assim, pode-se verificar, expressamente, no Código de Manu, uma substituição da violência (vingança privada) pela compensação pecuniária, no que tange ao sistema de reparação do dano.

e) Lei das XII Tábuas: “foi o resultado do anseio de um povo que desejava um corpo de leis ao alcance de seus conhecimentos culturais” (PIEDADE JUNIOR, 1993, p. 34). Isso porque, até então, o conhecimento das normas de Direito ficava limitado a um pequeno número de privilegiados, geralmente nobres e patrícios. É importante registrar que, apesar de não se encontrar, no referido corpo de leis, noções claras a respeito da Vitimologia, em sua concepção atual, percebe-se nitidamente uma preocupação com a indenização às vítimas de danos, o que, como já mencionado, é um dos objetos de estudo da moderna Vitimologia.

f) Legislação Mosaica: Moisés, grande legislador hebreu e líder da nação israelita, que nascera aproximadamente 1500 anos antes de Cristo, condensou seu pensamento político e religioso no chamado Pentateuco, constituído pelos cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio).

Em diversos segmentos da legislação mosaica pode-se verificar a preocupação de Moisés no que diz respeito à proteção da vítima de qualquer dano, em especial daqueles causados pelo próprio homem.

A título de exemplo, são transcritos os versículos 28 a 30 do capítulo 22 de Deuteronômio: “Se um homem encontrar uma donzela virgem, que não tem esposo, e tomando-a a força a desonrar, e a causa for levada a juízo, o que a desonrou dará ao pai da donzela cinquenta siclos de prata; tê-la-á por mulher, porque a humilhou; não poderá repudiá-la em todos os dias de sua vida”.

g) Direito Talmúdico: primeiramente, cumpre esclarecer que a palavra talmude significa ensinamento. Desse modo, conforme leciona Heitor Piedade Júnior, o Direito Talmúdico é “um trabalho enciclopédico versando sobre as leis, tradições, costumes, ritos e cerimônias judaicas. Além disso, contém opiniões, discussões e debates, aforismos moralísticos e exemplos biográficos de sábios rabínicos” (1993, p. 43).

Em outras palavras, o Talmude abarca a sabedoria que foi sendo acumulada pelo povo judeu ao longo de várias gerações, sendo que todos os aspectos do pensamento judaico foram ali sendo transcritos.

A importância do Direito Talmúdico para o presente trabalho reside no fato de existirem cinco espécies de reparação de danos causados às vítimas. A esse respeito é pertinente a transcrição do seguinte trecho, de autoria de Mateo Goldstein:

“1 – O ‘Nezek’, que era o tipo de indenização específico para o chamado ‘dano propriamente dito’; 2 – Tinha-se o ‘Tzaar’, que era medida exclusiva do dano moral, ou psicológico; 3 – O ‘Shevet’, que se referia ao dano relativo à cessação das atividades da vítima durante a enfermidade; 4 – O ‘Riput’, determinando ao vitimário a obrigação de indenizar as vítimas pelas despesas com o tratamento médico; 5 – Por fim, o ‘Boshet’, que era uma indenização por dano psicológico, ou por íntimo sofrimento, que se configurasse perante o grupo social, uma humilhação ou vergonha” (apud PIEDADE JUNIOR, 1993, p. 45).

Curiosidade interessante do Direito Talmúdico era a maneira como se calculava a indenização pelo dano causado. Na hipótese de dano moral (Tzaar), por exemplo, o dano era mensurado pelo nível da dor suportada pela vítima que, por sua vez, era estimada levando-se em conta o que um homem como a vítima deveria receber para suportar o mesmo sofrimento.

 h) Direito Romano: o legado deixado por Roma em relação ao seu sistema jurídico dispensa qualquer comentário. Todavia, um aspecto específico do Direito Romano interessa diretamente ao presente estudo.

O fato de os romanos também terem efetuado uma nítida distinção acerca dos conceitos de reparação do dano material e moral revela que eles tinham a exata noção da necessidade de amparo à vítima. Teve início, assim, o estudo de outra característica importantíssima da moderna Vitimologia, qual seja, a análise da personalidade da vítima.

A esse respeito, Heitor Piedade Junior ensina que, “com a aceitação da reparação por danos morais vislumbra-se, embrionariamente, a preocupação dos romanos com outra vertente da Vitimologia, qual seja, a do estudo da personalidade da vítima, uma vez que somente através do conhecimento da personalidade, do psiquismo e da sensibilidade da vítima, poder-se-á entender a necessidade da reparação do dano moral, pois ele é de natureza psicológica” (1993, p. 50).

Diante disso vislumbra-se o motivo pelo qual vários doutrinadores atribuem aos romanos o pioneirismo da plena aceitação do instituto da reparação do dano moral. Era o ato ilícito praticado por uma pessoa que, mesmo sem ter havido culpa ou dolo de sua parte, acarretava prejuízos a alguém. Havia a responsabilidade objetiva do agente ativo, bastando apenas à vítima comprovar o dano injusto.

Quanto aos antecedentes históricos próximos dos mecanismos legais de amparo à vítima, os doutrinadores costumam adotar a seguinte subdivisão:

a) Escolas Penais: a sistematização do pensamento filosófico-jurídico existente na Europa, em meados do século XVIII, o qual emprestou ao Direito Penal uma incalculável contribuição, foi obra das chamadas Escolas Penais, sendo que as mais importantes foram a Escola Clássica e a Escola Positiva.

A Escola Clássica, nitidamente inspirada na filosofia iluminista, e representada por juristas notáveis como Beccaria, Carrara e Feuerbach, entre outros, já demonstrava certa preocupação vitimológica, não obstante de maneira ainda incipiente, uma vez que tinha como objetivo lutar por um regime de ordem, justiça e segurança, em oposição ao direito punitivo de então.

Em outras palavras, a Escola Clássica lutou contra a justiça penal da Idade Média e séculos que se seguiram, “por meio dos diversos mecanismos e postulados de seus vultos, revelando bastante anseio vitimológico a admissão, por Feurbach, por exemplo, com o postulado da absoluta legalidade dos crimes e das penas” (PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 55).

Outro exemplo marcante do modelo do trabalho a favor da vítima encontra-se na obra de Beccaria, denominada Dos Delitos e Das Penas (1764), a qual, sem a menor sombra de dúvida é a obra-prima dos precursores da Vitimologia.

Para se perceber a relação existente entre a Escola Clássica e o processo vitimológico, Heitor Piedade Júnior ensina que “a Escola Clássica cumpriu seu ciclo histórico, lutando pelo empenho da liberdade, através do exercício da justiça. E a plenitude da liberdade afasta qualquer processo de vitimização, de vez que só existe vitimização quando não há justiça e esta só se impõe, quando existe liberdade” (1993, pp. 57/58).

Verifica-se, assim, a preocupação vitimológica dessa Escola no momento em que ela passa a tratar da violência, da opressão e da iniquidade a que chegara a justiça penal da Idade Média.

Por outro lado, em relação à Escola Positiva, é importante esclarecer que as teorias evolucionistas de Darwin e Lamarck a influenciaram sobremaneira. Tanto isso é verdade que a Escola Positiva surgiu no final do século XIX, com o intuito de se opor aos movimentos filosóficos da Escola Clássica.

O ponto de partida da Escola Positiva, no que tange especificamente ao Direito Penal, foi a obra de Lombroso denominada O Homem Delinquente (1876), em que “o autor parte da ideia básica da existência de um ‘criminoso nato’, para quem o criminoso verdadeiro é uma variedade particular da espécie humana, um tipo definido pela presença de anomalias anatômicas e fisiopsicológicas” (PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 58).

Outra significante contribuição de Lombroso encontra-se em sua obra Crime, Causas e Remédios, em que o autor dedica parte de seu trabalho à luta pela indenização das vítimas estabelecendo que cabe ao juiz fixar a compensação, além de assegurar os bens do detido.

Nome de grande importância para a Escola Positiva e para o amadurecimento da Vitimologia foi, também, o de Henrico Ferri, que propôs diversas reformas no procedimento penal, para facilitar a reparação do dano.

Além disso, Ferri causou grande repercussão no campo da Criminologia ao publicar, em 1892, sua obra O Homicídio-Suicídio, a qual não só colocou em evidência a pessoa da vítima, mas também chamou a atenção para o estudo da Vitimologia.

Verifica-se, assim, que a contribuição prestada pela Escola Positiva em relação à Vitimologia foi inestimável, pois, a partir de então, tanto o delinquente quanto a vítima se tornaram o centro das atenções das ciências penais.

b) Direito Canônico: é o direito codificado que rege a Igreja Católica Apostólica Romana. O Código de Direito Canônico foi promulgado, pela primeira vez, por Bento XV, em 1917. Entretanto, o Papa João XXIII decidiu reformar o referido Código sendo que, no ano de 1983, fora promulgado o novo Código de Direito Canônico.

O importante, aqui, é deixar consignado que em ambos os Códigos verifica-se uma preocupação do legislador com o amparo às vítimas de danos materiais e morais advindos de terceiros.

Além do Código de Direito Canônico existe, ainda, legislação canônica esparsa, como, por exemplo, o Corpus Juris Canonici, onde também se pode verificar a preocupação com a reparação dos danos.

Por estar diretamente relacionado com o presente curso, transcreve-se, a título de exemplo, o seguinte trecho, extraído do Corpus Juris Canonici: “Se alguém seduzir uma virgem, ainda não desposada e com ela dormir, dota-la-á e com ela se casará. Se, porém, o pai da virgem não a quiser entregar ao sedutor, pagará este uma certa quantia em dinheiro, num montante idêntico ao que as virgens costumavam receber como dote” (apud PIEDADE JÚNIOR, 1993, p. 64).

Diante de tudo que foi mencionado conclui-se que a preocupação com a reparação dos danos causados à vítima, considerada um dos objetos de estudo mais importantes da Vitimologia, com maior ou menor intensidade, sempre esteve presente nas principais codificações, desde os primórdios da civilização.

Entretanto, coube ao Direito Romano, o papel de precursor da análise de outro objeto de estudo extremamente importante da Vitimologia, que é a personalidade da vítima.

São essas, enfim, as bases necessárias (juntamente com a análise da relação existente entre a vítima e o criminoso no contexto delitivo) para o estudo e a compreensão da moderna Vitimologia.

5) Graus de vitimação, consequências e alternativas

Vários estudos vêm sendo realizados, especialmente na Europa, acerca dos graus de vitimação possibilitando,  dessa forma, uma análise variada a respeito dos diferentes fatores relacionados à origem e às diversas consequências e soluções a respeito do primeiro, do segundo e do terceiro dano causado às vítimas, os quais são também conhecidos como vitimação primária, secundária e terciária, respectivamente.  

O primeiro dano, também chamado de vitimação primária, pode ser entendido como aquele que deriva diretamente do crime. Exemplo: a constatação de uma gravidez indesejada resultante de um estupro.  

O segundo dano, também conhecido como vitimação secundária, é aquele que, nas palavras de Antonio Beristain, “emana das respostas formais e informais que recebe a vítima” (2000, p. 103) ou, em outras palavras, é o sofrimento imposto à vítima pelas pessoas que deveriam estar encarregadas de fazer justiça. Exemplo: comentários desagradáveis com alusões sexuais e olhares mal intencionados dirigidos às vítimas de estupro por parte dos funcionários de uma Delegacia de Polícia.  

Por fim, o terceiro dano ou a vitimação terciária procede, principalmente, da conduta posterior da mesma vítima. A esse respeito, muito esclarecedor o seguinte trecho trazido por Antonio Beristain: “Quando alguém, por exemplo, consciente de sua vitimação primária ou secundária, avoca um resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem sucedido (fama nos meios de comunicação, aplauso de grupos extremistas, etc.), deduz que lhe convém aceitar essa nova imagem de si mesmo(a), e decide, por meio desse papel, vingar-se das injustiças sofridas e de seus vitimadores (legais, às vezes)” (2000, p. 109).

Em outras palavras, pode-se dizer que a vitimação terciária, em muitos casos, emerge como consequência, ou melhor, como valor acrescentado às vitimações primária e secundária precedentes como é o caso, por exemplo, daquele que para vingar-se, se auto-define e passa a atuar como delinquente.

Tecidos esses comentários iniciais a respeito dos graus de vitimação, passa-se a analisar de forma mais detalhada alguns aspectos inerentes à vitimação secundária, salientando-se, desde já, que, dentre as principais queixas apresentadas pelas vítimas de crimes encontra-se a falta de informação por parte das autoridades públicas.

Segundo Bernhard Villmow, citado por Antonio Beristain, “a história do sistema penal demonstra que a vítima nos últimos séculos se encontra desamparada, e também vitimada durante o processo penal; ela praticamente não é levada em conta; somente atuam o poder estatal, por uma parte, e o delinquente, por outra. Ambos abandonam e desconhecem a vítima” (2000, p. 105).

Vários estudos realizados têm chegado a resultados semelhantes, concluindo que as vítimas de delitos, nos primeiros contatos com a polícia, se encontram satisfeitas com o comportamento policial, mas essa sensação vai se deteriorando ao longo do tempo.

Em outras palavras, verifica-se que, no começo, a polícia acode de imediato e dá mostras de apreciar a gravidade do delito. Entretanto, passado algum tempo, a vítima começa a encontrar menos compreensão por parte dos agentes estatais, sendo que a falta de informação é uma das queixas mais frequentes, já que são raras as vezes em que a vítima é comunicada se o delinquente foi preso, julgado, condenado, etc.  

Uma das principais consequências dessa conjugação de fatores durante a apuração do delito (vitimação secundária) é o descrédito da vítima em relação à atividade policial. Esse também é um resultado reiteradamente constatado em diversos estudos já realizados, haja vista muitas vítimas manifestarem que a polícia não está à altura devida para prestar-lhes a ajuda necessária ou esperada; ou, ainda, declararem que jamais voltarão a recorrer à polícia.

Elias Neuman, também citado por Beristain, corrobora tal assertiva dizendo que “ao longo do processo penal (já desde o começo da atividade policial), os agentes do controle social, com frequência, se despreocupam com (ou ignoram) a vítima; e, como se fosse pouco, muitas vezes a vitimam ainda mais. Especialmente em alguns delitos, como os sexuais. Não é raro que nessas infrações o sujeito passivo sofra repetidos vexames, pois à agressão do delinquente se vincula a postergação e/ou estigmatização por parte da polícia, dos médicos forenses e do sistema judiciário” (2000, p. 106).

É importante ressaltar que, em boa parte dos casos, tais problemas poderiam ser minimizados, se os cursos oferecidos pelas Academias de Polícia, Escolas Superiores da Magistratura, etc., priorizassem os aspectos científicos e humanitários, durante a formação dos futuros agentes públicos.  

Outra interessante característica, verificada nos estudos referentes aos graus de vitimação, diz respeito à atitude da vítima quanto ao seu desejo de que ao delinquente se imponha a justa sanção punitiva.

Ao contrário do que ocorre em relação à exigência, por parte da vítima, de receber sua devida compensação (característica que se mantém proeminente ao longo de todo o processo), o desejo de imposição de sanção ao delinquente vai mudando com o transcorrer do tempo, ou seja, aquele desejo inicial de se fazer justiça vai diminuindo ao longo do processo.

Apontadas as principais consequências advindas da vitimação de segundo grau, já é possível dedicar algumas linhas à análise das alternativas sugeridas pelos estudiosos do assunto, para minimizar sua incidência.

Um grande número de estudos realizados mostra a necessidade da criação de programas de acolhimento urgente, também denominados centros de assistência imediata às vítimas.

Isso vem se mostrando imprescindível porque a polícia, que costuma ser a que primeiro entra em contato com a vítima, geralmente não está preparada para desempenhar tal função assistencial.

Não obstante a tarefa seja relativamente simples, consistindo, basicamente, em escutar a vítima, buscar-lhe alojamento, fornecer assistência médica e, sobretudo, psicológica, a realidade é que são poucas as vítimas que encontram atenção imediata com a urgência desejada.

É importante registrar que, apesar de ser bastante reduzido o número de países que efetivamente proporcionam essa primeira assistência de forma adequada (Reino Unido, por exemplo), vem se verificando um aumento significativo no número de países que já deram os primeiros passos nesse sentido, como ocorre, por exemplo, com a Espanha.

Um segundo grupo de programas assistenciais é composto por centros que prestam assistência dentro do sistema de Direito Penal ou, em outras palavras, procuram auxiliar as vítimas de forma contínua, tanto em nível emotivo como em nível prático, antes, durante e depois do processo.

Essa prestação de auxílio às vítimas, muito comum nos EUA e no Canadá, ocorre da seguinte forma: “Antes, facilitando-lhes as gestões da denúncia que em algumas situações de terrorismo deveriam manter certo anonimato (…); durante, evitando-lhes a segunda vitimação; e, depois, com os programas de compensação e os possíveis intentos restaurativos e reconciliadores, etc.” (BERISTAIN, 2000, p. 113).

As vítimas, de modo geral, têm considerado positiva essa forma de assistência, uma vez que lhes têm poupado muito tempo e muitos desgostos em suas relações com o aparato judicial.

Um terceiro grupo de programas assistenciais tem por objetivo promover a indenização econômica às vítimas, sendo que existem vários estudos discutindo quais os fundamentos e as finalidades dessa compensação.

Conforme ensinamento de A. Karmen “alguns baseiam-na no Estado social de direito, outros na estrita justiça, outros na compensação que deve o poder governamental, por não conseguir evitar a criminalidade, etc.” (apud BERISTAIN, 2000, p.115).

Apesar disso, a realidade é que os programas de indenização econômica ainda não chegaram à meta desejada, uma vez que, em muitos casos, as vítimas desconhecem a existência de tais programas e, mesmo nos casos em que eles são conhecidos, verifica-se que a maioria das vítimas necessitadas acaba não sendo compensada e, quando o são, não ficam satisfeitas.

Dentre os países que já adotam o programa de indenização às vítimas podem ser citados a Nova Zelândia, a Inglaterra, a Argentina, a Espanha, o México, etc.

6) Peculiaridades da Vitimologia nos crimes sexuais

Antes de tratar das peculiaridades da Vitimologia nos crimes sexuais é imprescindível tecer alguns comentários a respeito da predisposição das vítimas em relação aos delitos de uma forma geral.

Existem estudos que  demonstram a tendência ou vocação que algumas pessoas têm para sofrer os efeitos da vitimação, dentre os quais merecem destaque os seguintes:

E. A. Fattah, no ano de 1979, relata a existência de três diferentes tipos de predisposições específicas na vítima: a) as predisposições biológicas, que levam em consideração fatores como a idade, o sexo, a raça, o estado físico, etc.; b) as predisposições sociais, que têm como pano de fundo a condição econômica da vítima, bem como seu trabalho, lazer, etc.; e c) as predisposições psicológicas, caracterizadas, principalmente, pelos desvios sexuais, negligência, imprudência, extrema confiança em si mesmo, traços do caráter da vítima, etc.

Referindo-se, ainda, a E. A. Fattah, Antonio Beristain lembra que o delinquente faz uma análise na escolha de sua vítima para justificar seu crime. Posteriormente, o responsável pela pesquisa constata que “diversos estudos de tipo psicossocial e vitimológico evidenciam que muitos delinquentes, antes de cometer o delito, fazem uma racionalização e uma maturação dos processos mentais e do desenvolvimento real de uma vitimação, com a pretensão de justificar seu crime, anular as possíveis inibições e apagar os normais sentimentos de culpa ou de remorso subsequentes ao delito” (2000, p. 98).

R. F. Sparks foi responsável por outro estudo que, igualmente, merece ser lembrado. Para ele a vítima contribui de diversas formas para sua própria vitimação dependendo, em cada caso, do tipo de sua personalidade. Os resultados obtidos por Sparks demonstram quatro espécies de predisposições distintas: a) a precipitação, em que a vítima, com seu comportamento, anima e excita o vitimador; b) a negligência ou excessiva audácia, caracterizada pelo fato da vítima facilitar o comportamento do vitimador expondo-se voluntária e inconscientemente ao perigo; c) a vulnerabilidade, consistente na situação social ou nas qualidades pessoais das vítimas; e d) a atração, em que a vítima atrai o vitimador devido à maneira com que se comporta.

Um último estudo que deve ser mencionado foi conduzido por J. Garofalo, M. Hindelang e M. Gottfredson. Segundo eles, a predisposição das vítimas pode ser baseada no estilo de vida e na exposição ao perigo e a colocação em perigo.

Esses autores entendem por “estilo de vida a costumeira atividade cotidiana que desenvolve a pessoa no campo de trabalho, de lazer e de tempo livre. Pela ‘colocação em perigo’, o grau de perigo da pessoa concreta, levando em conta o lugar e o momento que influenciam no fato de serem vítimas do delito; por ‘associação’, a frequência com que a pessoa estudada se relaciona ou se associa com outros indivíduos, mais ou menos inclinados a cometer delitos” (BERISTAIN, 2000, pp. 100/101). Em suma, analisam em que percentual cada uma dessas variáveis influi na sua vitimação.

Com isso, pode-se perceber que, atualmente, além da devida atenção aos aspectos clínicos individuais da vítima, têm-se intensificado os estudos a respeito da situação e do contexto social que, sem dúvida, influem, de forma mais ou menos intensa, no perigo da vitimação.

Feitos esses esclarecimentos iniciais passa-se, agora, à análise das peculiaridades da Vitimologia em relação aos delitos de cunho sexual.

Como se sabe, a palavra da vítima nos delitos sexuais assume especial importância, justamente pelo fato de que, na maioria das vezes, tais crimes são cometidos às ocultas, sendo extremamente difícil se conceber outro elemento direto, além das informações por ela prestadas, para a prova da autoria do crime.

Todavia, é relevante consignar que, caso existam outras provas, estas devem corroborar o que foi dito pela vítima, ou seja, se sua palavra se encontrar dissociada das demais provas existentes nos autos, o juiz deve levar isso em conta.

Sendo assim, aquelas informações, a princípio de grande valia, passam a nada valer, quanto ao elemento material do delito, caso se encontrem isoladas na apuração probatória, notadamente se estiverem se contrapondo a uma prova pericial.

Essa análise valorativa acerca da palavra da vítima se justifica, pois, não é raro encontrar casos em que a vítima minta, atribuindo a autoria de um delito de cunho sexual a uma pessoa que não o cometeu.

Dentre os diversos fatores que devem ser levados em consideração ao analisar as informações prestadas pela vítima encontram-se os seguintes: sua idade, sobretudo quando se tratar de depoimentos de crianças; sua formação moral; seus antecedentes; e sua higidez mental, em especial quando se tratar de vítimas débeis mentais ou de vítimas que apresentem traumas psicológicos, uma vez que, neste último caso “a palavra da vítima pode ser fruto de uma ideia preconcebida, ou criada pela imaginação traumatizada” (BITTENCOURT, 1971, p. 105).

A esse respeito é muito esclarecedora a seguinte lição: “O percuciente exame dos índices de valor ao alcance do juiz é o importante fator subjetivo de uma conclusão prudente. Primeiramente, a prova da materialidade da infração, prova, que se não for direta, deverá ser bem robusta; em segundo lugar, os elementos circunstanciais, senão totalmente favoráveis à palavra da vítima, ao menos tendentes a não destruir aquela presunção (…) de que a animosidade da ofendida só se dirige contra o verdadeiro ofensor. Os elementos circunstanciais são muitos, a começar pela normalidade do depoente, pois a mentira pode obedecer a fatores biológicos que devem ser esclarecidos com os postulados da moderna fisiopsicologia” (BITTENCOURT, 1971, p. 107).

Dessa forma, tomadas todas essas precauções, nota-se que a palavra da vítima não só vale como prova judiciária, como assume fundamental relevância nos delitos sexuais.

Outro aspecto de grande importância que deve ser lembrado diz respeito à contribuição do comportamento da vítima para o crime sexual. Isso porque existem estudos que têm chegado à conclusão de que, em muitos crimes sexuais, são as próprias vítimas atacadas quem convidam o criminoso, sendo que isso pode ocorrer tanto de modo consciente quanto inconscientemente.

O resultado desses estudos, fundado nas estatísticas sob o aumento dos atentados sexuais, mostra que muitas vítimas revelam um desejo, às vezes incontido, de serem violentadas (fantasias sexuais) e que, justamente por isso, passam a frequentar lugares isolados, aceitar caronas de desconhecidos, ou até mesmo andar sozinhas à noite em locais reconhecidamente perigosos.

De acordo com Edgard de Moura Bittencourt, trata-se de uma questão extremamente delicada, uma vez que “a provocação feminina está ligada a um paradoxo fundamental da conduta sexual da mulher” (1971, p. 185), consistente no fato de que, para suprir suas frustrações, bem como para provar seu poder de atração, ela passa a se mostrar provocante e excitante, o que acaba por contribuir, de maneira decisiva, para a concretização dos delitos sexuais.

Assim, a participação da vítima no resultado fático não pode ser desconsiderada, uma vez que, em muitos casos, seu comportamento tem o poder de excluir o fato típico (haja vista a inexistência de tipicidade) ou, ao menos, a culpabilidade do agente (em virtude do reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa).

Ainda a respeito do comportamento da vítima convém lembrar que existem pesquisas demonstrando que, em muitos casos de crimes sexuais há, por parte da vítima, um verdadeiro desejo inconsciente de ser violentada, sendo que tal fato, de alguma forma, acaba estimulando a deliberação delituosa. 

Dessa forma, é imprescindível que, em cada caso concreto, sejam realizados exames meticulosos acerca daquele desejo inconsciente, pois, a princípio, não se pode negar nem afirmar a culpabilidade do agente.

Edgard de Moura Bittencourt, referindo-se aos crimes contra os costumes (atualmente denominados crimes contra a dignidade sexual), com muita propriedade, esclarece o seguinte: “Quando a lei diz constranger, induzir e seduzir, está admitindo a obtenção da posse da mulher contra a vontade desta ou mediante sua vontade viciada. A participação da vítima no constrangimento, induzimento ou sedução, revelada em profundidade de análise, poderá definir-se contra as aparências que dão origem a grandes injustiças” (1971, p. 184).

Conclui-se, dessa forma, que se a vítima concordar ou contribuir com o resultado fático não há que se falar em crime.

A vontade da vítima pode ser considerada sob diversos aspectos nos delitos contra a dignidade sexual. “Atos contra a vontade, atos mediante vontade viciada, atos em que a vontade é indiferente e, finalmente, atos em que a vontade compõe o fato típico” (BITTENCOURT, 1971, p. 182).

Desse modo, percebe-se que a análise do elemento subjetivo, tanto do agente ofensor quanto do sujeito passivo do delito, indica a sutileza da relação existente entre o delinquente e a vítima.

Assim, especificamente em relação aos crimes sexuais, nota-se, em muitos casos, uma verdadeira atitude coadjuvante da vítima, ou seja, sua vontade também era (consciente ou inconscientemente) a concretização do delito.

Apesar disso, é importante consignar que, às vezes, mesmo que haja participação da vítima na posse violenta de seu corpo, nem sempre o crime deixa de existir. Tal fato pode ser constatado quando o papel desempenhado pela vítima, na gênese do delito, seja infinitamente menor que a atitude perpetrada pelo autor do fato criminoso.

Ademais, na imensa maioria dos casos, o que se verifica é uma sincera resistência por parte das vítimas de crimes sexuais, sendo que a esse respeito é interessante transcrever o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo: “A lei exige que a resistência à consumação do ato sexual seja sincera, mas não requer se prolongue até o instante do desfalecimento ou do transe psíquico” (RT 298-98).

Em resumo pode-se dizer que o conceito de valor expresso na norma incriminadora pressupõe um ato inicial e eficaz do agente sem a participação da vítima. Entretanto, se a vítima aquiescer ou contribuir de maneira significativa, não há que se falar em crime, haja vista a exclusão do fato típico (em virtude da tipicidade deixar de existir) ou da culpabilidade do agente (em decorrência da aplicação da tese conhecida como inexigibilidade de conduta diversa), respectivamente.

Salienta-se, por fim, que, para a validade da referida tese, deve-se levar em conta as peculiaridades de cada caso concreto e, mesmo assim, é importante ressaltar que sua aplicação deve ser feita de maneira extremamente cuidadosa, pois, a imensa maioria dos crimes sexuais são levados a cabo sem que haja a mínima participação da vítima.

7) Considerações Finais

No transcorrer do presente artigo foi possível perceber que remontam à antiguidade os mecanismos legais de amparo à vítima, considerado um dos objetos de estudo mais importantes da moderna Vitimologia.

Com o passar do tempo, em especial após o advento do Direito Romano, a análise da personalidade da vítima, também considerada objeto de estudo da Vitimologia, assumiu grande importância, principalmente para fins de reparação dos danos a ela causados.

Mais recentemente, os estudiosos do assunto passaram a dedicar especial atenção à relação que pode existir entre a vítima e seu agente ofensor, relação essa chamada pela doutrina de dupla penal, sendo que, na maioria dos casos, a vontade da vítima é divergente da vontade do delinquente, enquanto em algumas hipóteses o que caracteriza tal relação é a convergência de vontades, ou seja, neste último caso, de uma forma ou de outra, consciente ou inconscientemente, a vítima acaba colaborando com o desfecho criminoso.

São essas três, enfim, as bases necessárias ao estudo e à compreensão da moderna Vitimologia.

Em relação à classificação das vítimas ficou demonstrado que a maior parte dos vitimólogos adota a classificação formulada por Benjamin Mendelsohn, para quem as vítimas podem ser: a) completamente inocente; b) menos culpada do que o delinquente; c) tão culpada quanto o delinquente; d) mais culpada que o delinquente ou vítima provocadora; e e) vítima como única culpada.

Outro ponto analisado no presente texto tratou da existência, ou não, de autonomia científica da Vitimologia, momento em que se pôde perceber que, para muitos autores, o fato de a Vitimologia apresentar objeto, método e fim próprios comprova sua autonomia científica, o que é corroborado pela grande quantidade de obras publicadas, pelo número cada vez maior de estudiosos do assunto e pela infinidade de eventos relacionados à Vitimologia, não só no Brasil como no exterior.

Também foi objeto de estudo a questão relacionada à fundação da moderna Vitimologia, o que, para a maior parte da doutrina, coube a Benjamin Mendelsohn, ao proferir uma conferência na Universidade de Bucareste, intitulada Um Horizonte Novo na Ciência Biopsicossocial – a Vitimologia, no ano de 1947.

No Brasil, entretanto, o primeiro artigo relacionado à Vitimologia só veio à tona uma década depois, quando um trabalho de Paul Cornil fora transcrito na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Paraná, em 1958.

Além disso, foram estudados os graus de vitimação, os quais são divididos em vitimação primária (surgida no momento da ocorrência do delito), vitimação secundária (levada a cabo pelos agentes públicos que, em tese, estariam incumbidos de fazer justiça) e vitimação terciária (que ocorre quando a própria vítima, após a ocorrência do delito, faz questão de se manter em tal condição visando atingir alguma finalidade subjacente).

Especificamente em relação à vitimação secundária foi possível demonstrar que, nos delitos de cunho sexual, as principais queixas das vítimas estão relacionadas aos comentários desagradáveis e olhares mal intencionados a elas dirigidos por parte dos agentes públicos. Porém, nos delitos em geral (excluídos os de cunho sexual), a falta de informações por parte das autoridades públicas é uma das reclamações mais frequentes aduzidas pelas vítimas, fazendo com que elas passem a ter um descrédito em relação às atividades policiais e judiciárias.

Também foi possível perceber que, para minimizar a ocorrência da vitimação (em especial a primária e a secundária) é imprescindível a criação de: a) programas de acolhimento urgente, também denominados centros de assistência imediata às vítimas; b) programas assistenciais, os quais procuram prestar assistência contínua às vítimas, tanto em nível emotivo como em nível prático; e c) programas de indenização econômica às vítimas.

Na sequência restou demonstrado que, nas hipóteses de crimes sexuais em que a participação da vítima provocadora tenha o poder de influenciar o elemento volitivo do autor do fato, ao menos em tese, torna-se possível a aplicação (de forma coerente e cautelosa) da teoria conhecida como inexigibilidade de conduta diversa, a qual afasta a culpabilidade do agente.

Além disso, foi possível perceber que a palavra da vítima, em especial nos delitos sexuais, assume enorme importância, justamente pelo fato de que, na imensa maioria das vezes, tais crimes são cometidos às ocultas, sendo extremamente difícil se conceber outro elemento direto, além das informações por ela prestadas, para a prova da autoria do crime. Todavia, também ficou demonstrado que, caso outras provas tenham sido coligidas aos autos, estas devem corroborar o que foi dito pela vítima, ou seja, se sua palavra se encontrar dissociada das demais provas existentes, o juiz deve levar isso em conta.

Por fim, procurou-se demonstrar que, em alguns casos de crimes sexuais, as vítimas revelam um desejo, às vezes incontido, de serem violentadas (fantasias sexuais) e que, justamente por isso, passam a frequentar lugares isolados, aceitar caronas de desconhecidos, ou até mesmo andar sozinhas à noite em locais reconhecidamente perigosos. Em outras palavras isso significa que são as próprias vítimas quem convidam o criminoso, sendo que tal fato pode ocorrer tanto de modo consciente quanto inconscientemente, motivo pelo qual é imprescindível que, em cada caso concreto, sejam realizados exames meticulosos acerca da personalidade da vítima, pois, a princípio, não se pode negar nem afirmar a culpabilidade do agente.

 

Referências
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito Civil Brasileiro – Introdução. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
BERISTAIN, Antonio (Tradução de Cândido Furtado Maia Neto). Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
BITTENCOURT, Edgard de Moura. Vítima: Vitimologia: A dupla penal delinquente-vítima. Participação da vítima no crime. Contribuição da jurisprudência brasileira para a nova doutrina. São Paulo: Universitária de Direito, 1971.  
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Juruá, 1996.  
FAYET JÚNIOR, Ney; CORRÊA, Simone Prates Miranda (Organizadores). A sociedade, a violência e o Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.    
FERNANDES, Antonio Scarance. O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995.  
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.  
LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor (Organizadores). Violência e vitimização: A face sombria do cotidiano. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.  
MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos. Introdução às bases criminológicas da Lei nº 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MOREIRA FILHO, Guaracy. Vitimologia: O papel da vítima na gênese do delito. 2ª ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2004.
PIEDADE JÚNIOR, Heitor. Vitimologia: Evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993.
SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
SOUZA, José Guilherme de. Vitimologia e violência nos crimes sexuais: Uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.
 
Notas:
 
[1] Artigo baseado em um curso homônimo ministrado pelo autor aos membros e servidores do Ministério Público do Estado de Goiás, entre os dias 29 de outubro e 30 de novembro de 2012, na modalidade Educação a Distância (EaD). Um resumo do referido curso pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://www.youtube.com/watch?v=FBjdGr9eTYk


Informações Sobre o Autor

Marcio Rodrigo Delfim

Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO (Bolsista/Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – FAPEG), Especialista em Direito Público (com ênfase em Direito Penal) pela Universidade Potiguar/RN, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP (Bolsista da própria Instituição), Graduado em Direito pelo Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP (classificado em 1º lugar – melhor aluno – entre os concluintes do curso de Direito – Turma “A” de dezembro de 2005), Ex-coordenador do curso de Direito da Faculdade Objetivo de Rio Verde/GO, Professor Universitário, Técnico Jurídico (Nível Superior) do Ministério Público do Estado de Goiás, Coordenador Pedagógico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás, Autor de livros e artigos científicos, Membro da Academia Goiana de Direito (ocupante da Cadeira nº 36)


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